Artigo – Variações sobre horas e fraquezas do ensino médio no Brasil
Nacim Walter Chieco é Membro da Academia Paulista de Educação e ex-Presidente dos Conselhos Estadual e Municipal de Educação de São Paulo
São as horas, que descem por um fio
de cabelo de sol,
e vivem num contínuo corrupio,
mais obedientes do que o girassol.
De Guilherme de Almeida, A dança das horas. São Paulo, 1919
A definição das horas de um currículo constitui passo essencial de toda reforma educacional. Juntamente com o corpo docente e a base física formam o tripé da capacidade de atendimento de cada escola. O total de horas de um curso compõe a chamada carga horária. As unidades de tempo geralmente utilizadas são: minutos, horas, dias, semanas e anos. Como a própria medição física do tempo, as cargas horárias educacionais são fruto de convenção ou norma estabelecida por autoridade pública, de forma monocrática ou colegiada ou representativa. Ou seja, por meio de ato de governante ou de conselho ou do poder legislativo. A norma estabelece, em geral, a carga horária total mínima de cada curso, a ser observada pelas redes e instituições de ensino públicas e privadas. As instituições de ensino ficam com alguma margem de regulamentação própria quanto ao horário de funcionamento da escola, duração das aulas e, obviamente, horas adicionais além da mínima. A carga horária aumentada é pouco praticada nas redes públicas e fortemente adotada em instituições privadas de alto desempenho.
O ensino médio brasileiro encontra-se em fase de revisão e reforma. Em 2017, foi legalmente estabelecida a carga horária de 3.000 horas a ser desenvolvida ao longo de 3 anos. Cogita-se, agora, em manter esse padrão e alterar o conteúdo curricular e a estratégia de oferta dos itinerários formativos. Os itinerários seriam alterados para percursos de aprofundamento mais a educação profissional e técnica. O conteúdo restabeleceria o foco nos conhecimentos básicos necessários para os estudos superiores, para o trabalho e para a cidadania. Espera-se que tal mudança se traduza em real avanço e não simples troca de seis por meia dúzia.
A título de reflexão sobre as horas do ensino médio, em especial das redes públicas, podemos formular algumas hipóteses e possíveis implicações. Como alvo ideal a ser buscado a longo prazo, inalcançável nos dias atuais, essa etapa da educação básica seria desenvolvida em tempo integral pleno, ou seja, em 8 horas diárias, 40 semanais, durante 3 anos, com carga horária anual de 1.600 e total de 4.800 horas, em escola de turno único e exclusivo de ensino médio. Transporte, alimentação, recursos didáticos e assistência incluídos. No período noturno a escola proporcionaria atividades extracurriculares, artísticas e culturais, aos próprios alunos e à comunidade.
Em curto e médio prazos, é preciso levar em conta as disponibilidades e a situação real dos sistemas públicos de ensino e projetar algo progressivamente viável na direção daquele futuro alvo ideal. Assim, abordemos algumas hipóteses.
A duração das aulas em minutos deve caminhar celeremente para a hora verdadeira do relógio, isto é, para 60 minutos. O artifício da hora-aula de 50 ou 45 ou, até mesmo, de 40 minutos precisaria ser superado. Tal expediente tem sido adotado para suprir a demanda de vagas e aumentar os turnos de funcionamento da escola, com inevitável prejuízo ao ensino. Para a superação desse quadro, duas políticas precisariam ser vigorosamente implementadas: a ampliação e modernização das redes físicas e, com negociação e envolvimento corporativo, o ajuste da jornada de trabalho dos docentes. A jornada, preferencialmente integral no mesmo estabelecimento, deve compreender o tempo de sala de aula e o de estudo, planejamento e avaliação.
O necessário tempo de deslocamento dos docentes ou dos alunos, em torno de 5 minutos, estaria incluído na aula de 60 minutos, exceto os intervalos maiores intra e entre turnos. Dificuldades organizacionais específicas, relacionadas à preparação e finalização das aulas de determinados componentes, devem receber tratamento também específico em função das necessidades e conveniências operacionais.
Inicialmente, cada turno diário teria 5 aulas de 60 minutos cada. Semanalmente, 25 aulas. Anualmente, 40 semanas, 1.000 horas. Carga horária total de 3.000 horas. Nesse regime, continua viável o funcionamento da escola em dois turnos diários e o noturno com 4 aulas presenciais e, opcionalmente, uma remota.
Gradualmente, as redes aumentariam a jornada diária para 6 aulas, 30 semanais, 1.200 anuais e 3.600 de carga horária total. Nessa condição, continuam viáveis os dois turnos diários, mas inviável o noturno.
Com 7 aulas diárias, 35 semanais, 1.400 anuais e total de 4.200 horas, a escola só pode funcionar em um turno. Estaria a um passo do almejado tempo integral pleno de 8 aulas diárias.
A cada aumento de 600 horas da carga total, deveriam ser promovidos ajustes curriculares, predominantemente com aumento de aulas da parte nuclear da formação comum básica: português, matemática, língua estrangeira moderna, artes, educação física e fundamentos de informática.
Tradicionalmente, a semana escolar tem sido de 5 dias, de segunda a sexta, basicamente por razões trabalhistas. É preciso, porém, apoiar e estimular a oferta de atividades extracurriculares aos finais de semana.
O desejável é que cada docente tenha jornada integral na mesma escola. Obviamente, há variações de demanda em função das diferentes cargas horárias dos componentes curriculares. Todavia, a presença e atuação do professor na escola não deve se limitar à sala de aula. Atividades de assistência e apoio aos alunos constituem importante fator de produtividade escolar.
Tais hipóteses redundam, inevitavelmente, em novas exigências de espaços e revisão da oferta de vagas. Os estabelecimentos, novos ou existentes, precisam ser planejados, construídos e reformados, tendo em vista as atuais demandas locais e as futuras mudanças.
Tudo isso depende de persistentes políticas públicas de investimento, por todos os entes federativos, em ampliação e melhoria das redes físicas, em formação e valorização dos profissionais do ensino e em inovação tecnológica. Particularmente para evitar a evasão ou o não ingresso no ensino médio, seria extremamente relevante a adoção de bolsa destinada a alunos economicamente vulneráveis para inclusão, permanência e conclusão dessa etapa do ensino.
O Brasil precisa, urgentemente, sair de incômodas e desconcertantes posições em escalas comparativas internacionais. O gasto público anual por aluno da educação básica no Brasil, incluído o ensino médio, de 2.981 dólares, é o terceiro pior entre 42 países, segundo dados do relatório Education at a Glance 2023 da OCDE publicados na Folha de S. Paulo de 13/9/2023. Estamos abaixo dos vizinhos Argentina, com 3.367, Colômbia, com 3.497, Chile, com 4.867, e Costa Rica, com 4.936. Só ultrapassamos a África do Sul, com 2.906, e o México, com 2.406. Não seria o caso de atingirmos os níveis da Suíça, com 17.598, ou o primeiro lugar de Luxemburgo, com 23.577 dólares por aluno. Mas, devemos ao menos nos aproximar da média desse conjunto de países que é de 10.510 dólares, juntamente com países como Eslovênia, Irlanda e República Tcheca.
Outro dado comparativo igualmente frustrante e inaceitável, sobretudo diante do pretendido desenvolvimento econômico sustentável, constante do relatório citado de 2022, publicado na Folha de 10/9/2023, é o percentual de alunos do ensino médio que fazem educação profissional. Em 11 países a Áustria figura em primeiro lugar com 74% e o Brasil em último com 8%. Persistem na nossa cultura e na nossa sociedade, com maléficos efeitos nas políticas públicas, por um lado, o tradicional viés bacharelesco e, por outro, o arraigado preconceito contra as profissões manuais. Gilberto Freire e Roberto Da Matta, entre outros, identificaram e escrutinaram essas retrógradas distorções. É preciso romper esse círculo vicioso de rejeição à formação e ao exercício de profissões manuais. Não se trata de opor mãos e cabeça. Ao contrário, a humanidade só evoluiu por força da produção manual e intelectual. Há algum fundo de verdade na figura de que com as mãos são forjadas as cabeças. Em tom de humor, o narrador do belo documentário Francofonia, sobre o fantástico acervo do Museu do Louvre, afirma que “a mão é mais inteligente que a cabeça”.
Além dessas crônicas fraquezas, há o sofrível desempenho dos alunos do nosso ensino médio, contínua e fartamente demonstrado em avaliações nacionais e internacionais.
Cabe esclarecer e enfatizar que as variações ora formuladas sobre o ensino médio precisam conectar-se e integrar-se a uma necessária reestruturação de toda a educação básica.
SP, setembro de 2023