Uma proposta de política de formação de profissionais da educação para uma escola democrática.
Uma proposta de política de formação de profissionais da educação para uma escola democrática
Prof. Dr. Jair Militão da Silva
Resumo: Novas demandas postas à escola e aos que nela trabalham – democratização do acesso e da permanência dos alunos; democratização da gestão; reunificação do conhecimento; autonomia da unidade escolar; trabalho coletivo e por projetos – têm recebido respostas dos governos e da comunidade de educadores que atuam no campo do ensino. Esse cenário e essas respostas exigem do profissional da educação novas competências, que devem ser adquiridas, quando possível, na formação inicial, ou impreterivelmente, na formação contínua, em serviço. Surge a necessidade de conhecer o campo educacional de modo a permitir maior mobilidade do educador nas várias situações que lhe coloca o trabalho educativo.
Palavras Chave: Política Pública de Educação; Formação de Profissionais da Educação; Escola
Democrática.
Abstract: Government policies, school and educators are nowadays asked to provide responses to new challenges: democratization of access and permanence of students; democratization of management; reunification of knowledge; school autonomy; collective work and projects. Under this scenario new abilities of education personnel are required: in their initial formation or at less in their continual formation. It is necessary to know the educational field in order to allow greater mobility of educator.
Keywords: Public policy of education; Training of educational personnel; Democratic school.
A afirmação da democracia, após a Segunda Guerra Mundial, como valor a ser buscado universalmente pelos governos e pelos povos, de modo especial no mundo ocidental, atingiu a escola, apresentando-se sob a forma de reivindicação do direito ao acesso, por todos os interessados, ao ensino. Isso trouxe, especialmente aos sistemas públicos, a necessidade de atender a um grande número de alunos, levando, no Ensino Básico, à duplicação, triplicação e mesmo até à quintuplicação de períodos letivos em um só dia na mesma escola. A falta de pessoal plenamente qualificado fez com que houvesse a necessidade da adesão de profissionais sem a necessária formação pedagógica ou de estudantes-professores ainda em fase de conclusão de formação para o trabalho docente.
À abertura de vagas para todos seguiu-se a luta pela permanência sem a expulsão dos que entravam na primeira série da escolarização e, por fim, a busca de democratização atinge a gestão de escola, sendo reivindicada a participação de usuários e trabalhadores escolares nas tomadas de decisão.
Outra demanda a atingir a escola e aos docentes que nela atuam foi o movimento pela reunificação do conhecimento: a crítica da disciplinarização do conhecimento questiona os docentes sobre a necessidade de encontrarem abordagens
1 Professor Associado da Universidade de São Paulo – aposentado. Docente do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo. Membro Titular da Academia Paulista de Educação.
de ensino que ofereçam aos educandos uma visão mais ampla e global dos fenômenos estudados. Não compete mais ao aluno efetuar a unidade do conhecimento mediante unicamente seu próprio esforço: a escola, através de seus docentes, deve oferecer aos alunos um conhecimento interdisciplinar, com a contribuição das diferentes disciplinas para uma perspectiva globalizante.
A terceira importante demanda a sacudir o trabalho docente tem sido o que se convencionou chamar de o “desmanche dos grandes sistemas”, significando esta expressão a opção gerencial pela descentralização das grandes organizações o que leva à afirmação da necessidade de autonomia das unidades mínimas produtivas ou prestadoras de serviço. Um sistema de ensino como o paulista, por exemplo, com mais de seis milhões de alunos, com cerca de duzentos mil docentes, atendendo a um estado com população várias vezes maior que muitos países, não consegue ser gerenciado de forma centralizada, se quiser oferecer respostas ágeis e adequadas a cada realidade onde se situe.
Estas novas demandas postas à escola e aos que nela trabalham – democratização do acesso e da permanência dos alunos; democratização da gestão; reunificação do conhecimento; autonomia da unidade escolar – têm tem recebido respostas dos governos e da comunidade de educadores que atuam no campo do ensino. O aumento do número de vagas, a criação de mecanismos que facilitem o percurso do aluno ao longo dos graus de ensino (criação de ciclos maiores que as séries; progressão contínua, sem reprovação; possibilidade da equipe escolar reclassificar alunos, remetendo-os para estágios mais avançados; classes de aceleração da aprendizagem; recuperação contínua), a criação de projetos interdisciplinares, estudos do meio com o concurso integrado de várias disciplinas, adoção de temas transversais, a aglutinação em áreas de várias disciplinas, a utilização de órgãos colegiados como forma de gestão escolar, o incentivo para que cada unidade escolar crie seu próprio regimento e sua própria proposta pedagógica, são iniciativas que visam atender às necessidades advindas do novo cenário em que se situa o trabalho educativo da escola básica.
Esse cenário e essas respostas exigem do profissional da educação novas competências, que devem ser adquiridas, quando possível, na formação inicial, ou impreterivelmente, na formação contínua, em serviço. O acesso de uma nova clientela à escola coloca a esses profissionais a urgência de adquirir e ampliar seus conhecimentos para além de sua própria disciplina. Surge a necessidade de conhecer o campo educacional de modo a permitir maior mobilidade do educador nas várias situações que lhe coloca o trabalho educativo.
As descobertas recentes sobre a aprendizagem, de modo especial em adultos, revelam a utilidade da existência de conceitos organizadores do campo estudado. Desse modo, as informações e experiências podem estruturar-se de forma a estar disponíveis para transferência para novas situações nas quais o desempenho dependa desses novos conhecimentos.
Nos conhecimentos que se referem ao processo educativo um conceito organizador crucial é o de situação educativa, que pode ser entendida como um percurso, de um ponto a outro, através de um caminho, guiado, com a adesão consciente e livre do educando. Três momentos podem ser destacados para fins de análise e constituição da situação educativa: um ponto de partida – os pressupostos antropológicos e gnosiológicos -, um ponto de chegada – os fins e objetivos -, um caminho – o método -.
A visão antropológica condiciona o agir educativo do educador, dado ser este um ente racional que age segundo objetivos que procura atingir adequadamente ao significado que atribui à realidade, a si próprio e aos seus semelhantes. Um educador
que veja o educando como alguém fadado ao insucesso e incapaz de aprender, dificilmente empreenderá qualquer esforço para colaborar com esta criança, jovem ou adulto. O educador poupará suas energias para serem utilizadas com algum outro educando “com capacidade de aprender” segundo a visão antropológica que oriente seu trabalho educativo. Portanto, é fundamental oferecer aos educadores uma visão antropológica que apresente o educando como pessoa, dotada de inteligência, liberdade e vontade, capaz de ser protagonista de sua própria vida, capaz de acolher a transcendência e conviver com seus semelhantes de forma cooperativa e amorosa.
Em outras palavras, em nossos pensamentos habituais é frequentemente mais fácil nos darmos conta da necessidade de um ponto de chegada, chamado objetivo ou finalidade e mesmo de um caminho ou método. Todavia, a atenção para a importância do ponto de partida costuma ser negligenciada.
Geralmente, não percebemos o peso que possui em nossas ações nossa visão sobre a realidade. Nossas ações estão fortemente condicionadas pela percepção que temos dos fatos e das pessoas. É sabido, por quem atua nas escolas a influência que exerce sobre o professor a visão que tenha sobre seus alunos. É diferente a ação do professor que entra na “5ª. Série F” (considerada a mais fraca da escola) daquela quando entra na “5ª. A” (a dos alunos mais adiantados). Somos seres vivos e inteligentes, isto é, somos movidos por objetivos eleitos em nossa relação inteligente com o ambiente. Adequamos nossos esforços àquilo que julgamos ser possível de realização: se acreditamos que os alunos não aprendem, não ensinaremos; se acreditamos que podem aprender, procuraremos ensinar.
O ponto de partida, portanto, tem um duplo aspecto a ser considerado: a realidade objetiva do educando (sua história, sua situação familiar, sua experiência – entendida como a vivência com significado -, seus métodos próprios de aprendizagem; suas possibilidades) e a nossa subjetividade que encontra essa realidade (o educando). Entre a realidade fora de nós e nossa ação temos nossa subjetividade composta de sentimento, liberdade, vontade.
Os pressupostos antropológicos e gnosiológicos, ou seja, a visão prévia sobre o que é o homem , o que e como conhece, deve ser considerada tanto para o educando quanto para o educador. O ser antropológico e gnosiológico do educador condiciona sua maneira de ver o ser antropológico e gnosiológico do educando.
Uma conhecida fábula ilustra este tema da subjetividade que deve ser levada em conta: a coruja, ao sair para caçar, encontrou o gavião que também iniciava sua jornada em busca de alimento. Ela resolveu avisar ao gavião que não molestasse seus filhotes. O gavião perguntou como ele saberia quais eram os filhotes da coruja. Ela disse: – São os mais lindos! E cada um foi para o seu lado.
A coruja, ao chegar, horas depois, ao ninho, teve a triste visão de seus filhotes despedaçados, sobrando apenas alguns restos de seus corpos. Desesperada perguntou aos vizinhos o que tinha acontecido. Eles disseram que o gavião havia devorado os filhotes. A coruja foi imediatamente ao ninho do gavião e perguntou-lhe porque havia feito aquilo. Ele, totalmente confuso, disse: – Pensei que não fossem seus filhos, pois eram muito feios.
Essa pequena história nos chama a atenção para a importância do olhar com o qual vemos a realidade. Como distinguir os verdadeiros “filhos da coruja?”.
Uma visão antropológica pode ser condensada em afirmações sobre o homem, de modo a responder à pergunta: Quem é o homem?
O homem é um ser capaz de constante aperfeiçoamento. É dotado do desejo do bem, da verdade, da justiça. Desenvolve-se mediante a superação de fases que se apresentam com necessidades específicas e caracterizadoras do momento. Cada fase
deve ser vivida como ocasião de fazer experiência significativa que contribui para uma vida feliz. Esta experiência deve tornar a realidade plena de significados e de demandas que são respondidas na condição de pessoa, ou seja, de ser que descobre o belo, o bom, o verdadeiro, na relação com as outras pessoas.
O homem é um ser dotado de esperança e esta espera pode se dar a partir da percepção de que a realidade possui um desígnio bom, sendo amiga e não inimiga. O semelhante que partilha comigo desse desígnio não é meu objeto de posse, mas antes, alguém com quem condivido um destino bom.
O homem aprende segundo o que pode captar e, desse modo, o exemplo do educador é fundamental, não se substituindo pela palavra falada ou escrita.
Os fins e objetivos expressam a visão teleológica que o educador tem sobre o homem. Um consenso atingido pela comunidade educativa internacional indica como fins da Educação os quatro pilares propostos pela UNESCO e que são: Aprender a conhecer; aprender a fazer; aprender a viver juntos, a conviver com os outros; aprender a ser.
Aprender a conhecer é ser introduzido na totalidade da realidade e, desse modo, perceber-se como pertencente a uma história que começou antes de mim. É aprender a buscar a totalidade dos fatores e a objetividade.
Aprender a fazer é descobrir o trabalho como forma de interação e construção social. É reconhecer o próprio limite e a necessidade do outro para que eu possa viver. É também, encontrar um método de fazer e ver-se como criador e construtor que colabora para a manutenção da vida humana na terra.
Aprender a viver juntos, a conviver com os outros é descobrir-se como pertencente a uma comunidade humana sem a qual eu não vivo. É passar de um simples estar no mesmo espaço para um estar com o outro em solidariedade de destino. É reconhecer a inelutável dignidade de cada ser humano que não pode ser instrumentalizado para nenhum projeto, por mais aparentemente nobre que este seja, e, assim, de modo especial no trabalho educativo, valorizar a intenção, o processo e não os resultados como produtos.
Aprender a ser é aprender a tornar-se pessoa, o que significa descobrir o que nos constitui, ou seja, o desejo de felicidade.
Outro elemento constituinte da situação educativa é o método. O método, a rigor, confunde-se com a totalidade da educação, uma vez que nele estão presentes os pressupostos antropológicos e gnosiológicos, as finalidades e os objetivos. Método é caminho. Educar é caminhar em companhia do educando, sabendo o educador de onde parte e para onde quer chegar. É caminhar com a adesão consciente e voluntária do educando.
É importante ter claro quem é o sujeito educativo, quem conduz o processo educativo. Na educação básica, de modo especial, torna-se crucial ter presente a importância da família como sujeito educativo por excelência ao qual a escola presta ajuda subsidiariamente.
Quando a educação ocorre na instituição escolar caracteriza-se por ser intencional, sistemática e progressiva.
A escola organiza seu trabalho educativo em um currículo que é o conjunto de experiências que ela oferece ao educando. Um currículo pode ser compreendido e avaliado conforme sejam seus temas (presentes ou ausentes), os juízos de valor sobre estes temas e as formas de veiculação destes temas.
Em uma organização escolar, o trabalho pessoal de cada educador deve estar articulado com o dos demais educadores e, desse modo, o trabalho coletivo é
fundamental para que objetivos comuns e procedimentos articulados e adequados a estes objetivos ocorram.
Para isto, o Projeto Pedagógico da Escola, no caso do Ensino Básico, ou o Plano de Desenvolvimento Institucional, no caso das Instituições de Ensino Superior, são guias para a ação dos profissionais da educação. Desse modo, os educadores precisam desenvolver a capacidade de planejar, trabalhar coletivamente, relacionarem-se com seus pares, educandos, familiares, todos os envolvidos no processo educativo.
Outros conceitos, além de situação educativa, tais como, educação escolar, organização escolar, currículo, ciclo didático, entre outros, contribuem para capacitar o docente a pensar sua prática e, se necessário, modificá-la. A noção de ciclo didático como a forma pela qual o docente realiza seu trabalho de ensino-aprendizagem com os alunos, permite pensar o planejamento, a execução e a avaliação como momentos em que, respectiva e predominantemente, se dá a seleção de conteúdos, o desenvolvimento metodológico e avaliação não só do “aprendido”, mas também do “ensinado”.
Um maior conhecimento do campo educacional não ocorre, geralmente, de forma espontânea: há a necessidade de estudos sistemáticos, nas modalidades que as situações concretas permitam: seminários, leituras dirigidas, cursos de atualização, etc. O importante é que o docente perceba a necessidade dessa formação e tenha oportunidade de realizá-la de forma sistemática e continuada.
As novas solicitações que se apresentam ao trabalho docente exigem também do educador uma nova capacidade de superar a atuação individual rumo a um trabalho partilhado, coletivo. A busca de uma nova interdisciplinaridade e as novas responsabilidades postas à equipe escolar visando a autonomia da unidade pedem que se possibilite ao educador ter a competência para atuar coletivamente e com incidência no institucional da escola.
Trabalhar coletivamente, em nossa cultura organizacional escolar, não é o “natural”: há necessidade de um esforço que vença a inércia institucional sustentada na existência de papéis fixamente ordenados, em que os ocupantes dos cargos agem como atores e não como sujeitos. Um ator só atua a partir do papel que lhe é atribuído previamente por alguém que fez a “descrição do cargo”. Um sujeito relaciona-se inteligentemente com a realidade, julgando-a e posicionando-se, de modo a optar responsavelmente por suas decisões. Um sujeito é capaz de dizer: – “concordo”, “não concordo”; “gostei”, “não gostei”.
A existência de autênticos sujeitos nas unidades escolares só é possível quando ocorre a re-humanização das relações entre as pessoas e, para além do funcionário, surge a pessoa do educador.
O surgimento da pessoa pode acontecer em um clima próprio que é o comunitário, o coletivo, isto é, um ambiente onde haja grupos de referência dos quais seja possível participar e se desenvolva um sentido de “nós ético”.
A dinâmica das organizações burocráticas, para ser superada, pede a existência de sujeitos coletivos que não visem unicamente seus interesses corporativos, mas tenham uma atitude e uma atuação pluralista.
O conhecimento disponível para a formação de sujeitos coletivos pluralistas encontra-se no campo da educação comunitária e a educação escolar em muito pode beneficiar-se com este intercâmbio.
A autonomia da escola pode ocorrer de forma a contribuir para a melhoria da qualidade de vida de estudantes, trabalhadores em educação e população em geral, quando consistir em um processo de re-humanização das relações de trabalho,
possibilitando o surgimento de sujeitos comunitários capazes de atuar na dinâmica organizacional da escola e que se mantenham como instituintes e conheçam os mecanismos do instituído.
Isso implica em saber que uma prática inovadora pode entrar no cotidiano da escola se ocupar um tempo, um espaço e ser incluída no orçamento da mantenedora.
Estes tempos de novas demandas colocadas aos educadores exigem destes a aquisição de novas competências que favoreçam uma atuação mais humana e, pelo menos, com uma taxa menor de sofrimento, na maioria das vezes, desnecessários e que tornam a vida cotidiana de alunos, familiares e equipe escolar um desafio constante.
Um teste decisivo para uma avaliação do grau de busca da democratização do atendimento escolar é o posicionamento dos dirigentes diante da chamada demanda passiva.
As autoridades educacionais, mesmo as bem intencionadas, podem cair em um equívoco que contribui para minar o ânimo dos agentes públicos que buscam a democratização e produzir resultados contrários aos esperados na população. Esse equívoco é considerar a demanda como apenas constituída por aqueles que batem à porta das escolas por ocasião das matrículas. A esses podemos denominar de “demanda ativa”.
Há, contudo, um grupo que não procura espontaneamente a escola e isso por diversas razões; só iniciarão ou retomarão o processo de escolarização se forem procurados e convencidos da necessidade da matrícula. Podemos chamar a estes de “demanda passiva”.
Sejam crianças e jovens migrantes que chegam às grandes cidades sem nunca terem freqüentado a escola, ou dela terem saído muito cedo, sem tempo de, ao menos, alfabetizar-se, com idade acima da esperada para suas necessidades escolares e sentindo-se constrangidos, não têm coragem de procurar por matrícula; sejam, ainda, os próprios pais que matriculam seus filhos pequenos nas escolas enquanto eles próprios também necessitariam matricular-se para serem igualmente alfabetizados, mas não o fazem, muitas vezes, também constrangidos.
Evidentemente, a equipe da unidade escolar pode dar-se por satisfeita e considerar ter cumprido o dever se conseguiu acomodar a todos os que a procuraram, o que em muitas regiões já pode ser considerado um verdadeiro ato de heroísmo dos educadores.
Porém, para os dirigentes da rede escolar, responsáveis pela totalidade ou por parte regional do sistema, se realmente buscam a democratização da sociedade, não deve bastar atender aos que “ativamente” procuram a escola; é necessário ir em busca da “demanda passiva”, como gesto demonstrativo da vontade política de atender a todos, gesto que sinaliza para todos os integrantes do sistema educacional que o objetivo é realmente atender a todos.
A história da educação escolar mostra que mudanças realmente significativas, no rumo da democratização, só acontecem quando inseridas em uma busca de atender a todas as crianças e jovens existentes na área do sistema considerado. Mudanças qualitativas localizadas, tópicas, têm um grande valor paradigmático, e para elas podem contribuir centros de pesquisa, universidades, Ongs etc. Para o dirigente do sistema público, o desafio é implantar com eqüidade a qualidade disponível na rede e, nesse sentido, a busca de atender a todos é critério de avaliação das ações.
A cultura escolar brasileira oscila entre duas grandes tendências que podem, genericamente, ser denominadas de democrática e de aristocrática.
A tendência aristocrática entende a ação educativa como destinada a selecionar os melhores que, graças à combinação de seus dons naturais individuais e as oportunidades apresentadas, merecem os melhores lugares sociais e destinam-se ao comando da sociedade. Desse modo, da educação infantil à superior, os mais aptos é que devem triunfar, sendo os “sem dom para estudos” destinados à “transferência compulsória”, passando por “o prazo da matrícula já acabou”.
A tendência democrática considera que as pessoas, as crianças, os jovens, são diferentes uns em relação aos outros, mas possuem uma igualdade fundamental de direitos e deveres.
Considera, ainda, que o ensino básico não é seletivo, mas um direito e uma necessidade para todo cidadão. O ensino superior deve respeitar as “vocações” pessoais e sociais e deve ser ampliado para um número cada vez maior de jovens e adultos.
O problema é que o educador vive sob influência destas duas tendências e, por vezes, buscando concretizar uma delas depara-se com o instrumento da outra. A dominante pode ser considerada a aristocrática e a estrutura organizacional das redes escolares está, geralmente, mais apta a atuar seletivamente do que democraticamente. Por isso, é necessário criar e cultivar uma sensibilidade democrática nos que buscam a democratização.
Exemplo dessa sensibilidade foi a ação da equipe escolar de uma escola pública municipal da capital paulista que, apoiada decididamente pela direção da unidade, movimentou-se em busca de alunos na comunidade circundante, visitando as moradias e promovendo ampla divulgação e chamamento de crianças e jovens para a matrícula. O interessante é que fizeram isso com genuína sensibilidade pública, pois não “estava faltando aluno” na escola.
Cabe à autoridade governamental, periodicamente, proceder à chamada escolar da população em idade escolarizável, mas isso só ganhará em eficácia se contar com a ação capilar das unidades escolares, inseridas na comunidade de usuários atuais e potenciais.
Por ocasião da matrícula das crianças, no momento do preenchimento das fichas, os funcionários administrativos, sensibilizados pelo desejo de atender a todos, perceberam em muitos pais a existência do analfabetismo ou a necessidade de retomar os estudos. Aproveitaram a ocasião e lhes propuseram a volta às aulas, conseguindo muita adesão.
Em conseqüência, coube à equipe escolar mais trabalho, em termos organizacionais e pedagógicos, mas o clima existente na escola compensou o esforço. As pessoas da escola recuperaram a alegria de trabalhar com sentido e utilidade social. Como diz o educador e filósofo Garcia Hoz, a alegria advém da obra bem feita.
As grandes intenções e grandes objetivos tais como o da democratização da sociedade em geral e da educação em particular, concretizam-se mediante uma ação no cotidiano humano e, por isso, são necessários gestos dimensionados a cada realidade, mesmo que aparentem ser simples, pois podem possuir eficácia e ser um caminho para o objetivo visado.
Procurar atender à demanda passiva é saudável para todo o sistema, inclusive para aprimorar o atendimento à demanda ativa.
Para aqueles que trabalham na área da saúde pública, o conhecimento da necessidade de curar a todos em uma epidemia é corrente. Não podem ficar focos que venham a desencadear novos processos.
No atendimento escolar é necessário desenvolver sempre mais a percepção da necessidade da eqüidade, que significa um atendimento conforme as necessidades de cada um, dos que ativamente buscam a escola e dos que devem ser buscados pelos educadores. Isso é claro, quando acreditamos e trabalhamos pela democratização da sociedade em que vivemos.