Teoria e prática na educação profissional – Nacim Chieco
Nacim Chieco
Membro da Academia Paulista de Educação
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não tem carne e sangue…
Entretanto, luto.
Carlos Drummond de Andrade
Currículos e fundamentos
Uma questão educacional recorrente consiste na definição, distinção, integração e fixação de cargas horárias de teoria e prática nos cursos de educação profissional. Os currículos dessa modalidade educativa são estruturados por uma parte teórica e uma parte prática, com variadas distribuições de cargas horárias em função de cada ocupação e, nos casos de titulação reconhecida, das normas oficiais em vigor. A integralização dos currículos se dá com as práticas típicas de cada ocupação, mais os conhecimentos científicos e tecnológicos relacionados, tudo derivado do perfil profissional identificado no mundo do trabalho.
A prática profissional curricular é realizada em ambientes de ensino o mais próximo possível dos ambientes reais de trabalho. São laboratórios, oficinas de aprendizagem, plantas piloto, estações de trabalho, salas especiais etc. Em certos casos essa reprodução é materialmente inviável ou muito onerosa, sendo adotadas soluções substitutivas, tais como visitas e estágios orientados ou simulações. Na maioria dos casos, entretanto, é indispensável a presença do aluno para o aprendizado no adequado ambiente escolar.
Em geral e desejável, a docência da prática é atribuída a profissional com experiência no mundo do trabalho, acrescida de formação pedagógica em cursos de licenciatura ou capacitação oferecida pela própria instituição formadora.
As leis da educação e da aprendizagem contam com dispositivos expressos sobre teoria e prática. A Lei nº 9.394, de 1996, de diretrizes e bases da educação nacional, dispõe:
– Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidade:
…
IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
– Art. 35-A …
…
- 8º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação processual e formativa serão organizados nas redes de ensino por meio de atividades teóricas e práticas, provas orais e escritas, …
– Art. 36…
…
- 6º A critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação com ênfase técnica e profissional considerará:
I – a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional
…
- 11 Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:
I – demonstração prática;
A Lei nº 10.097, de 2000, sobre aprendizagem, altera disposições da CLT que estabelece:
– Art. 428…
…
- 4º A formação técnico-profissional a que se refere o caput deste artigo caracteriza-se por atividades teóricas e práticas, metodicamente organizadas em tarefas de complexidade progressiva desenvolvidas no ambiente de trabalho.
Estão assinalados os termos e expressões que serão analisados a seguir.
Termos e distinções
São empregados ou subentendidos no jargão da educação profissional os seguintes termos que precisam ser escrutinados: teoria, prática, atividade e os correlatos ciência, tecnologia, pensamento e ação.
Desde logo, é preciso reconhecer que não há limites precisos entre teoria e prática. Não raras vezes ouve-se a crítica de que tal curso é excessivamente teórico. Na maioria dos casos, não passa de visão amadora e inconsequente. E há uma confusão reinante e ingênua de que a prática se limita às habilidades motoras e a teoria ocorre em sala de aula.
É necessário, antes de tudo, esclarecer os termos em jogo. Conforme o Dicionário Caldas Aulete, a seguir os significados em análise:
– teoria – princípios gerais e fundamentais de qualquer ciência ou arte; …; doutrina // f. gr. theoria, pelo lat. theoria. Teoricamente – de modo teórico, não praticamente. Teórico – especulativo (opõe-se vulgarmente a prático);
– prática – experiência, uso, hábito de qualquer arte, ciência; …; exercício; … longo tirocínio // aplicação das regras, dos princípios (contrapõe-se grosso modo a teoria) // execução do que se concebeu e projetou. Por em prática, realizar // f. gr. praktike, scilicet tekhne (arte de fazer alguma coisa), pelo lat. practica;
– atividade – qualidade de ser ativo; atuação // força, energia // … (fig.) multiplicidade dos trabalhos, das ideias, das empresas de um homem // f. lat. activitas;
– ciência – soma ou conjunto de conhecimentos que se possuem sobre variados objetos; instrução, erudição, literatura // … conhecimentos humanos considerados no seu todo, segundo a sua natureza e progresso // f. lat. scientia;
– tecnologia – o conjunto dos processos especiais relativos a uma determinada arte ou indústria; …; explicação dos termos próprios das artes, ofícios // f. gr. tekhne (arte) + logos (discurso) + ia;
– pensamento – qualquer ato particular do espírito ou operação da inteligência; …; a faculdade de pensar; o espírito. Pensar – meditar // … reflexionar // … raciocinar // f. lat. pensare;
– ação – … ato, feito, obra // … movimento …// f. lat. actio.
Algumas inferências podem ser formuladas a partir desse vocabulário básico.
Ainda que vulgarmente ou grosso modo, teoria, associada à ciência e ao pensamento, se contrapõe a prática, que por sua vez significa atividade ou ação. A tecnologia parece transitar nos âmbitos da teoria e da prática ou aplicação da ciência. Não se trata aqui da questão filosófica da precedência entre ação e pensamento. É uma questão mais prosaica de analisar a separação, expressa ou velada, entre a teoria e a prática nos currículos da educação profissional.
As expressões correntes, até mesmo em textos normativos, “atividade prática” e “atividade teórica” não se sustentam logicamente. A primeira é evidente redundância. Dizer atividade ou prática docente, cirúrgica, doméstica, profissional, até mesmo ilícita, está correto. Mas, “atividade prática”, convenhamos… A “atividade teórica”, ainda que se possa cogitar de atividade mental ou cerebral, também não resiste a um crivo analítico. O melhor, pois, seria empregar os termos de forma isolada e simples: prática e teoria. Quando necessária a ação correspondente nos dois casos, teríamos “praticar” e “teorizar”.
Quanto aos currículos da educação profissional, deve ser inquestionável o caráter pedagógico e prático (escusa pelo pleonasmo) da prática profissional. Até mesmo quando o aluno ou o trabalhador param para fazer cálculo, diante de um problema ou possível melhoria, está pondo em prática conhecimentos de matemática e de outras ciências. Essa distinção, porém, não é facilmente observada nos componentes curriculares relacionados. Por exemplo, em matemática, os princípios, conceitos e teoremas são “teoria”; a aplicação, os exercícios e a solução de problemas, que constituem grande parte da carga horária, são “prática”. O mesmo raciocínio vale para outras ciências, que, a par do aprendizado do aparato conceitual, o processo formativo completo requer muita prática laboratorial. Outro componente, em geral nomeado na parte teórica dos currículos, é o desenho, que, de fato, se desenvolve por meio de inúmeras práticas formadoras de habilidades motoras, com aplicação de regras. Também a informática é predominantemente aplicação da matemática, sendo o seu aprendizado e uso centrados em um vasto e crescente universo de práticas digitais.
Parece que a rígida separação entre teoria e prática nos currículos profissionalizantes não passa de mero artifício organizacional. Teoria e prática se interpenetram e se interagem em todos os momentos e situações de aprendizagem e de trabalho.
Tudo isso para dizer e concluir que a separação usual entre teoria e prática nos currículos educacionais, do ponto de vista lógico e gramatical, é frágil e equivocada. Apenas por força do hábito ou por convenção e conveniência, pode-se admitir e continuar aceitando essa distinção. Ou seja, prevalecem o uso e o costume.
A lógica? Ora, a lógica…
Nota: Embora não tenha feito qualquer referência, este texto encontra respaldo nos ensinamentos do mestre José Mário Pires Azanha, Professor Emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, e no clássico da literatura educacional A linguagem da educação de Israel Scheffler.
São Paulo, julho de 2020