Ricardo Viveiros toma posse na Academia Paulista de Educação
Ao ocupar a Cadeira de número 30 na Academia Paulista de Educação, o professor, jornalista e escritor Ricardo Viveiros de Paula homenageou o fundador e o patrono da cadeira, Professores José Bueno de Oliveira Azevedo Filho e Joaquim Silva. Viveiros também contou sobre suas experiências profissionais na cerimônia que aconteceu no dia 8 de novembro no auditório da FIESP.
Leia a íntegra do discurso:
“Muito boa noite!
Registro, com imenso respeito, que o fundador da cadeira que ocuparei nesta Academia, o professor José Bueno de Oliveira Azevedo Filho, carinhosamente tratado por seus colegas e alunos por “Bueninho”, foi um educador exemplar. Pessoa de origem nobre teve permanente compromisso com a educação pública como professor de História, por muitos anos. Com destaque na tradicional Escola Estadual Alexandre de Gusmão, no bairro do Ipiranga, nesta Capital.
Também assinalo que o patrono desta mesma cadeira que ocuparei na APE, o jornalista e professor Joaquim Silva, igualmente merece ser lembrado pelo brilhante trabalho como educador e, em especial, pelos seus livros de História – referências didáticas no ensino da matéria. O período entre 1930 e 1945 foi marcado pela ascensão dos regimes totalitários, a crise do capitalismo liberal, e o uso da violência como estratégia para resolução de conflitos políticos. Nesse cenário, a educação escolar foi um palco privilegiado da ação política, e o ensino de História um de seus principais atores. Joaquim Silva, corajosa e fielmente, revelou em seus livros a trama discursiva da cultura política, comprometida com reformas educacionais e interferindo no currículo de História naquele conflitante período.
Muito honroso ter dois ilustres professores de História me antecedendo na cadeira número 30, pois também escrevo sobre esse mesmo tema.
Minha antecessora na cadeira que hoje passo a ocupar, é a acadêmica Maria de Lourdes Mariotto Haidar, professora e doutora pela USP, autora de obras referenciais sobre Educação. Seus livros mais festejados, pela absoluta relevância, são “O Ensino Secundário no Brasil Império” e “A evolução da educação básica no Brasil: política e organização”. Mulher de fibra, capaz e realizadora aumenta, em muito, minha responsabilidade.
Espero corresponder a tudo isso ao integrar esta Casa do Conhecimento, mesmo que longe da qualidade profissional de tão significativos acadêmicos – os do passado e os do presente.
Sinto-me muito feliz por estar sendo empossado na APE, aqui neste auditório da FIESP, por deferência de seu presidente, meu amigo Josué Gomes da Silva. Não apenas porque dedico-me ao cuidado com a Comunicação desta entidade maior da indústria, mas, em especial, porque a FIESP tem se empenhado, de maneira ampla e responsável, nos desafios da Educação e da Cultura. Obrigado, Josué!
Minha gratidão à Profª Drª Marcia Lígia Guidin, pela indicação do meu nome e pelas generosas palavras aqui proferidas a meu respeito, bem como a todas e a todos os demais acadêmicos pela votação unânime que me elegeu.
Minha gratidão ao Prof. Wander Soares que, em 4 de novembro de 2019, então presidente da APE, concedeu-me o diploma de Membro Honorário da Academia Paulista de Educação. Naquela oportunidade, fui saudado pelo acadêmico Prof. Walter Vicioni e recebi o diploma das mãos da acadêmica Profª. Dra. Rose Neubauer – educadores de altíssimo nível.
Meu obrigado especial ao nosso presidente da APE, um guerreiro da Educação, Prof. Hubert Alquéres.
Registro o amor incondicional que tenho pela minha família, que sempre compreendeu minha ausência no trabalho como jornalista, escritor e professor. Marcia, minha esposa, é jornalista, tradutora e professora. Ricardo, o filho mais velho e já falecido, era ilustrador de livros didáticos. Felipe, o do meio, é diplomata da União Europeia, vive e trabalha em Bruxelas (na Bélgica). Miguel, o caçula, está se formando em Direito na PUC-SP. Ambos muito estudiosos e leitores vorazes, dedicados ao hábito de aprender. Meus netos, Juliana e Lucas, ela coordenadora de escola em Zurique (na Suíça) e ele jornalista, também sempre respeitaram e buscaram a Educação e a Cultura. Minha netinha caçula, Mariana, de sete meses, que morreu com o pai no acidente em que foram vítimas da falta de educação de um motorista alcoolizado, tinha tudo para seguir os passos dos demais.
Senhoras e Senhores.
Quando rapazola, nas aulas de Ciências do curso Ginasial no Colégio Santo Inácio, no Rio de Janeiro, fui tomado por um encantamento, muito além do que o real desejo de aprender, na aula em que o professor explicou como nascia uma borboleta. Eu já arriscava escrever versos e, para um aprendiz de poeta, a borboleta é algo inspirador – leveza, cor, magia.
Gostei de estudar a “Metamorfose”. Já era repórter e não sabia, sempre fui muito curioso. Um eterno perguntador: Por quê? Por quê? Por quê? E havia lido, embora muito jovem para entender, o livro de Franz Kafka e ficado meio confuso (sempre detestei baratas). No caso da borboleta, a possibilidade de viver um processo de transformação que lhe permita a possibilidade de voar, descobrir novos lugares, pessoas, viveres é fascinante.
Tempos depois, já no final dos anos 1990, ao assistir ao distópico filme Matrix (vencedor de quatro Oscars), das irmãs norte-americanas Lilly e Lana Wachowski (uichóviske), observei que um dos personagens podia escolher entre “despertar” ou seguir adormecido na sua “matriz”. A metamorfose naquela falsa realidade capaz de libertar alguém do mundo sonhado era como a das borboletas. Na época, já havia relido e entendido Kafka. Então, era capaz de alcançar a transformação pessoal das irmãs cineastas, no seu direito à liberdade na mudança de sexo.
Hoje, diante das questões políticas que nos perturbam, recordo os tempos do colégio dos padres jesuítas, quando fascinado pelas descobertas biológicas que permitiam criar textos fora do “mais do mesmo”, achava instigante uma lagarta nojenta se transformar em uma arrebatadora borboleta.
O professor, educador sensível e inteligente, ensinava de verdade – não deixava apenas decorar para passar nas provas. De maneira lúdica, mostrou que a lagarta com o passar do tempo se tornava um ser guloso, esfomeado e, quando tanta comida a tornava obesa em muito ultrapassando suas necessidades metabólicas, começava a morrer. Nesse momento, acontecia algo fantástico: surgiam as células imaginativas.
Células imaginativas… Sim. Não é figura de linguagem, existem mesmo! Por serem novidade no sistema imunológico da espécie, são atacadas pelas últimas forças da morrediça lagarta. Como atuam em uma frequência própria, não se deixam atingir. Vão se unindo, criando núcleos e, na sequência, conectam-se e se tornam ainda mais fortes. E acontece algo determinante: um gene adormecido desperta e traz um novo ser, e a lagarta alimenta a borboleta que nasce. E não pode ser ajudada a se livrar do casulo, porque, caso isso aconteça, não terá a necessária força para voar.
A metamorfose transforma a lagarta em borboleta, dando-lhe, pela união de objetivos comuns, uma nova existência capaz de – conscientemente – ser muito mais útil, porque na sua diversidade, que alcança 25 mil espécies, esse inseto exerce um papel essencial à vida pela polinização dos ecossistemas, fonte de alimento e bem-estar. Um exemplo motivador para nós, humanos, do que seja, como diz a expressão em Inglês, (éueiquenen) awakening – o despertar.
Estamos vivendo tempos complexos, de insegurança e medo. Não podemos morrer por desconhecimento, por falta de respeito comum. Devemos fazer como ensina a metamorfose da lagarta ao se tornar borboleta. Ter coragem para transformar, unir para vencer os desafios que se impõem. Conscientes e motivados, apesar das adversidades, podemos ser muito mais fortes e mudar o destino.
A estrutura social deve evoluir no aprendizado, é hora de sair do marasmo da simples aceitação do óbvio, das mesmices que a autoajuda oferece e construir um mundo novo. Vamos superar o medo, o consumismo irresponsável, o desamor, o egoísmo, a corrupção crônica e derrubar a violência com educação e cultura. Chega de obscurantismo! Há espaço para nos unirmos como as células imaginativas e formar núcleos que gerem mudança, transmutação, metamorfose.
O mundo é nosso, a vida é nossa. Vamos sonhar o sonho possível e vencer a ignorância construindo novos tempos de paz, com liberdade e justiça social. Com cultura e educação para todos. A indígena guatemalteca Rigoberta Menchú Tum, da etnia Quiché-Maia, Prêmio Nobel da Paz (1992), disse: “Este mundo não vai mudar, a não ser que estejamos dispostos a mudar a nós mesmos”.
Neste contexto, está o desafio de educar.
O francês Jacques Delors tem, hoje, 98 anos. De origem humilde, formou-se em Economia pela Sorbonne e, após a Segunda Guerra Mundial, trabalhou como bancário. Foi ministro da Economia e Finanças da França e um dos principais autores do Tratado de (maastricti) Maastricht, que desenhou a criação da União Europeia (UE). Presidiu a Comissão Europeia entre 1985 e 1995, indicado pelo conterrâneo François Mitterrand e pelo alemão Helmut Kohl. De 1992 a 1996, presidiu a Comissão Internacional sobre Educação para o século 21, da Unesco. Nesse período, foi autor do relatório “Educação, um tesouro a descobrir”, em que se definem os “Quatro pilares da Educação”.
“À educação cabe fornecer, de algum modo, os mapas de um mundo complexo e constantemente agitado e, ao mesmo tempo, a bússola que permite navegar através dele”, afirmou Delors, doutor pela Universidade de Lisboa, Portugal.
Durante seu trabalho na Unesco, o economista que se tornou um grande educador apontou como principal consequência da sociedade do conhecimento a necessária aprendizagem ao longo de toda a vida, fundamentada em quatro pilares, que são, a um só e mesmo tempo, do conhecimento e da formação continuada. Esses pilares, os saberes e as competências, são apresentados aparentemente divididos. Entretanto, as quatro vias estão interligadas em perfeita sinergia com um objetivo único: a formação holística do indivíduo.
São os pilares de Delors: Aprender a conhecer – Porque é necessário tornar prazeroso o ato de compreender, descobrir, construir e reconstruir o conhecimento para que não seja efêmero, para que se mantenha ao longo do tempo e para que valorize a curiosidade, a autonomia e a atenção de modo constante. É preciso, também, pensar o novo, reconstruir o velho e reinventar o pensar. Fugir do “mais do mesmo”.
Aprender a fazer – Não basta preparar-se com cuidados para se inserir no setor do trabalho. A rápida evolução por que passam as profissões pede que o indivíduo esteja apto a enfrentar novas situações de emprego e a trabalhar em equipe, desenvolvendo espírito cooperativo e de humildade na reelaboração conceitual e nas trocas, valores necessários ao trabalho coletivo. Ter iniciativa e intuição, gostar de certa dose de risco, saber comunicar-se, resolver conflitos e ser flexível.
Aprender a conviver – No mundo atual, este é um importantíssimo aprendizado. É valorizado quem aprende a viver com os outros, a compreendê-los, a desenvolver a percepção de interdependência, a administrar conflitos, a participar de projetos comuns, a ter prazer no esforço comum.
Aprender a ser – É importante desenvolver sensibilidade, sentido ético e estético, responsabilidade pessoal, pensamento autônomo e crítico, imaginação, criatividade, iniciativa e crescimento integral da pessoa em relação à inteligência. A aprendizagem precisa ser integral, não negligenciando nenhuma das potencialidades de cada indivíduo.
Com base nessa visão dos quatro pilares do conhecimento, podem-se prever grandes consequências na educação. O ensino-aprendizagem voltado apenas para a absorção de conhecimento e que tem sido objeto de preocupação constante dos professores deve dar lugar ao ensinar a pensar, ao saber comunicar-se e pesquisar, ao ter raciocínio lógico, fazer sínteses e elaborações teóricas, ao ser independente e autônomo; enfim, ao ser socialmente capaz.
Teria imaginado tudo isso alguém que não tivesse lutado para vencer na vida? Uma pessoa que não tivesse sido salva da pobreza pela educação? Não sei. Jacques Delors uniu a consciência do poder libertador do aprender ao conhecimento que, por mérito próprio, soube conquistar para sua carreira. Economista e professor, estabeleceu ponte lógica entre a formação de qualidade e o mercado de trabalho. Foi teórico e prático na concepção de seus pilares da educação, respeitados e adotados em todo o mundo. Delors é uma das figuras internacionais que transcendeu as oportunidades políticas, abandonou o pensamento individual e abraçou o compromisso com o interesse coletivo. Recebeu prêmios e honrarias de vários países.
O sucesso da educação no Brasil depende apenas de nós mesmos. De nossas escolhas a cada nova eleição para que sejam criadas e realizadas políticas públicas responsáveis e de qualidade. Caminhos que nos garantam um futuro melhor, mais justo e capaz. Cultura e educação, ciências irmãs, garantem soberania, independência, liberdade, desenvolvimento.
Senhoras e Senhores.
No mundo moderno, nestes velozes e competitivos tempos de informação global on-line, o conhecimento mais do que nunca se tornou essencial à sobrevivência, ao progresso de qualquer ser humano. Sem educação de qualidade – aliás, como tal, não se pode conceber diferente –, o mundo está condenado à estagnação, ao atraso. O progresso nasce no aprendizado, no crescimento, no saber cada vez mais amplo e melhor.
Do latim (signare) insignare, que significa “assinalar” no sentido de “mostrar algo a alguém”, o professor, em todos os níveis, hoje transcendeu a esse distanciamento original e se integrou ao aluno na busca de um aperfeiçoamento mútuo nas relações da educação. Ensinar e aprender são um só caminho de mão dupla, permanente e humilde prática de quem, de fato, quer evoluir.
O pioneiro educador, Anísio Teixeira, que implantou o ensino público no Brasil, disse: “Quando monto na asa de um pensamento, uma ideia, eu voo nessa ideia como se ela fosse uma ave”. Como o sonho, o saber é ilimitado. Aprende mais, quem busca mais. Quem tem a coragem de voar nas asas da criação, descortinando outros inimagináveis horizontes.
Hoje, a tecnologia de ponta oferece as chamadas “máquinas de ensino”. É o computador que, por meio de específicos programas (lineares, ramificados etc.), educa à distância. Adaptados à estrutura mental dos alunos, os micros e os seus complexos softwares começam a pretender substituir o professor na sala de aula. Engano. Nada substitui o olhar do mestre, o carinho pelo aluno, a capacidade de ler a alma de cada um e, com arte e compromisso, buscar a melhor forma para que consiga aprender.
Em entrevistas e palestras que dou, tenho recebido uma pergunta: “O senhor está preocupado com a inteligência artificial?”. Minha resposta é simples: “A inteligência artificial não me preocupa, o que me preocupa é a burrice natural –que segue viva e crescente!”
Conheci e tive o privilégio de conviver com dois emblemáticos professores brasileiros, neste país de tantos abnegados e capazes mestres: Paulo Freire e Darcy Ribeiro, nascidos e mortos nas mesmas épocas, ambos vieram ao mundo no início dos anos 1920 e desapareceram em 1997. Entretanto, seus ensinamentos e marcantes exemplos ficaram para a eternidade, como cabe aos homens e às mulheres de boa vontade que não passam pelo mundo como apenas uma brisa, mesmo que de pura poesia.
Freire e Darcy, na melhor demonstração do que significa ser professor num país pobre e em desenvolvimento, passaram suas vidas lutando pela democratização do ensino, pela erradicação do analfabetismo. Ambos se arriscaram na luta contra a obscuridade do populismo que, sempre, preteriu a educação para melhor manipular o povo, triste vítima da desinformação, do desconhecimento. Sob um compromisso acima das próprias realidades, foram perseguidos, presos, torturados e amargaram o exílio em nome do direito à liberdade, à educação e à cultura para todos nós.
Em 1994, na Alemanha, passei uns dias em companhia de Darcy Ribeiro e outros intelectuais brasileiros. Participávamos do evento internacional “Brasil – Confluência de Culturas”, quando nosso País foi tema da quadragésima sexta Feira do Livro de Frankfurt. Darcy já estava bastante doente, vítima do câncer que acabou tirando-lhe a vida. Conversamos muito, rimos muito (ele sempre elegante e bem-humorado) e, num inesquecível jantar, ele me disse que, entre tudo o que havia feito na vida (escritor, político, antropólogo e administrador público), nada lhe encantava mais do que ser educador. Darcy criou leis, defendeu crianças e indígenas, fundou universidades e foi o idealizador dos Centros Integrados de Educação Pública, os Cieps, um conceito mais tarde implementado pela prefeita Marta Suplicy, na capital paulista, com os Centros Educacionais Unificados (Ceus).
Senhoras e Senhores.
Muito além de apenas no “Dia do Professor”, a cada 15 de outubro, é preciso todos os dias lembrar os mestres que, pelo imenso Brasil, mesmo muitas vezes sem o respeito e o salário que merecem, iluminam (em alguns cantos, até com um lampião de querosene) os caminhos que garantem aos brasileiros um futuro de liberdade, justiça, paz e desenvolvimento. Lembrar sempre, com ternura e gratidão de quem nos ensinou as primeiras, segundas e terceiras letras. Porque tão importante quanto saber ler, é entender e pensar sobre cada conteúdo e transformar a vida para melhor. O que depender de mim, terei aqui na APE mais um espaço de aprendizado, trabalho e luta.
Muito obrigado!”