Revista Veja – Páginas Amarelas – “Jogamos o nível lá embaixo” – 20 fev 2016
“Jogamos o nível lá embaixo”
ENTREVISTA I PAULA LOUZANO
A especialista em política educacional diz que a proposta de currículo nacional feita pelo governo não estabelece objetivos claros para o aprendizado e vai formar alunos menos preparados que os de outros países
RITA LOIOLA
A PROPOSTA da Base Nacional Comum Curricular (BNC) ocupa os dias de Paula Louzano, uma das maiores autoridades brasileiras no estudo de políticas curriculares, desde que foi apresentada pelo Ministério da Educação, em setembro do ano passado. Segundo Paula, doutora em política educacional pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e atualmente pesquisadora visitante da Universidade Stanford, o documento apresenta problemas estruturais graves, além de expectativas baixas em relação ao jovem que pretende formar. Após ela acompanhar por uma década o desenvolvimento de bases curriculares em países como Austrália, Finlândia, Estados Unidos, Portugal, Chile, Cuba e Canadá, suas pesquisas revelaram que um currículo nacional leva tempo para ser criado e tem como fundamento a progressão de conceitos-chave das disciplinas. Mas o governo “inovou”, e pôs sobre a mesa uma proposta inadequada. “Jogamos o nível lá embaixo”, diz Paula.
É boa a proposta de currículo único que o governo disponibilizou para consulta pública? Não, ela tem problemas graves. As disciplinas não conversam entre si e, mais importante, as habilidades que devem ser desenvolvidas em cada uma delas não se organizam em uma progressão clara. Não está explícito que aluno esse currículo deve formar no fim do ensino médio. E esse é o objetivo primordial de qualquer currículo, em qualquer parte do mundo.
Na terça-feira, o Ministério da Educação publicou uma revisão da proposta, ampliando, por exemplo, a parte de história mundial e incluindo pontos de gramática. O avanço foi significativo? São mudanças relevantes. Mas não teremos um currículo de padrão internacional se não houver uma mudança estrutural.
A falha, então, está na raiz da proposta? Para o ensino de qualquer disciplina, é preciso que esteja claro quais são seus objetivos. Essas ideias centrais ou conceitos-chave se encadeiam numa progressão, ano a ano, ciclo a ciclo. O currículo detalha como isso é feito. Professores, diretores, pais e alunos precisam enxergar essa evolução com clareza, para compreender como se dará o aprendizado. No documento do Ministério da Educação, essa progressão não está presente e não há definições claras do que se espera que os estudantes sejam capazes de fazer no fim de cada ano escolar. Em certos pontos, o documento é tão confuso que um leigo não é capaz de decifrá-lo.
Como outros países desenham seus currículos? Apegando-se ao conceito de progressão no ensino. Países como Canadá, Finlândia ou Austrália, bons exemplos nessa área, detalham o que ensinar e dão autonomia na escolha dos modos de transmitir os saberes.
Por que a progressão é tão relevante para o aprendizado? Se o professor e o aluno não sabem quais são seus objetivos no fim do percurso acadêmico, e como cada “degrau” da escada do conhecimento colabora para que cheguem a esses objetivos, eles se perdem em meio aos conteúdos. Por exemplo, é importante na matemática a compreensão das frações. No início, o aprendizado é concreto. O estudante começa aprendendo que um inteiro pode ser dividido em partes como metade, um terço, um quarto. Depois, aprende que isso pode ser representado por frações numéricas. Em seguida, deduz porcentagens, até chegar aos cálculos de juros, por exemplo. Se as etapas são cumpridas, os alunos atingem os níveis mais abstratos de conhecimento. Se perdemos alguma das etapas do contínuo, o aprendizado para. Na proposta brasileira, essa progressão é ausente em língua portuguesa e não está explícita em matemática.
Sua ênfase é nas disciplinas de português e matemática. Por quê? Quando decidem desenhar um currículo nacional, os países começam por essas duas áreas e levam anos discutindo isso. A Austrália, que começou a elaborar seu currículo em abril de 2008 , iniciou as discussões pelos conteúdos de língua e matemática. As demais disciplinas ainda estão em fase de desenvolvimento e implementação. No Brasil, entregamos um esboço de todas as disciplinas ao mesmo tempo, o que tira o foco da discussão.
A proposta de currículo foi posta em consulta pública e deve ser encaminhada até o melo do ano ao Conselho Nacional de Educação. Esse é um bom processo de construção de um currículo nacional? A consulta pública tem valor, porque torna o processo democrático e aberto. O currículo reflete nosso projeto de nação. Mas a consulta não substitui o conhecimento que se acumulou no mundo a respeito do tema. Até mesmo países com excelentes sistemas de educação olharam para as experiências internacionais ao elaborar seu currículo nacional. O principal problema com o atual processo de discussão é que ele deveria ter sido dividido em etapas. Primeiro, debate-se um documento com o perfil do aluno que queremos formar, os objetivos gerais do currículo e sua estrutura. Depois, entra-se no detalhe de cada disciplina de maneira progressiva, começando por disciplinas centrais como língua portuguesa e matemática. E o mesmo deve ocorrer com a implementação. Ela deve ser gradual, paulatina.
Quanto tempo devemos investir na conclusão do currículo? Um currículo nacional não se faz do dia para a noite. O processo é longo porque requer um esforço técnico e também um esforço político. É mais importante alongar o processo e ter um documento sólido e de padrão internacional do que correr agora e enfrentar o arrependimento no futuro. Além disso, são necessários no mínimo dois anos para que as redes de ensino, as escolas e os professores se apropriem desse material.
O currículo proposto é adequado em relação ao conteúdo? Em língua portuguesa, os eixos e subeixos de aprendizado não deixam explícitos os objetivos da disciplina. No geral, os currículos de língua nativa adotados em outros países organizam-se em quatro linhas: leitura, escrita, gramática e oralidade. No Canadá, por exemplo, os eixos são comunicação oral, leitura e escrita. A lógica precisa ser assim, simples. No projeto brasileiro, os eixos aparecem, mas a divisão dos objetivos de aprendizagem segue outra lógica, sob o guarda-chuva das “práticas e campos de atuação”. Acontece que um currículo não é um trabalho acadêmico, mas um documento escrito para qualquer pessoa entender.
Um relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) traz o Brasil entre os dez países com pior rendimento escolar em leitura. O projeto pode nos tirar dessa situação? Os problemas gerais do projeto se repetem nesse particular. No caso da leitura, deve-se deixar bem claro qual é a complexidade do texto que o aluno deve ler em cada ano. Não basta dizer que ele deve localizar uma informação que está explícita ou implícita.
Se o currículo for adotado como está, o Brasil vai formar bons alunos? A expectativa é muito baixa em relação ao que se espera nos países desenvolvidos. Em comparação com os Estados Unidos, o que nossos alunos devem estar aptos a fazer no 9o ano, em manejo da língua nativa, um americano já faz no 5º ano. Em matemática, no fim do 1º ano, um aluno francês deve saber contar até 100, um canadense ou um americano, até 120. O currículo propõe que se ensine a contar até 30 no 1º ano e até 100 no 2º ano. Jogamos o nível lá embaixo.
O projeto ajudaria a equiparar as escolas públicas às privadas? A maior parte das crianças de escolas particulares aprende a centena na pré-escola. Ou seja, o currículo nacional vai aumentar a desigualdade. As escolhas que os países fazem na educação têm impacto no seu futuro. Aonde queremos chegar com esse currículo de ambições tão modestas? Um currículo poderá ser um excelente instrumento de justiça social se der a todos os jovens ferramentas semelhantes para enfrentar a vida ao saírem da escola. Se fizer o contrário, criará desigualdades difíceis de superar.
Um ponto polêmico ó a “contextualização”, a ideia de que o ensino deve levar em conta as circunstâncias do aluno. Isso funciona? A contextualização do ensino é importante e necessária. Mas a proposta determina que 60% do conteúdo seja ditado pelo currículo nacional e 40% seja contextualizado de acordo com a região do aluno. Não sei como essa ideia será posta em prática em disciplinas como matemática. É um enigma a maneira como os professores obedecerão a essas proporções.
A proposta de currículo conversa bem com o Exame Nacional do Ensino Médlo (Enem), do jeito que ele ó aplicado hoje em dia? É injusto medir todos os alunos por um exame universal como o Enem se o currículo não garante que eles vão seguir um caminho comum, que os levará a dominar cada um dos conceitos cobrados no teste.