Raízes da Crise Educacional Brasileira
Raízes da Crise Educacional Brasileira
Paulo Nathanael Pereira de Souza,
Conselheiro da Fecomércio e Doutor em Educação.
I – Prolegômenos
Como de praxe, seja-me permitido agradecer inicialmente a este qualificadissimo conselho, na pessoa do Isaac, seu coordenador, pela oportunidade que me foi dada de falar sobre este tema, de grande atualidade, e com o qual convivo há mais de seis décadas. Dentre os muitos e complexos problemas com que se debate hoje o Brasil para viabilizar sua modernização e concretizar seus dois maiores objetivos nacionais, a saber: o desenvolvimento socioeconômico e a consolidação da democracia, ressalta o da educação do povo, eis que o caminho de acesso ao primeiro mundo passa necessariamente pela escolarização da população como um todo. Foi assim no passado e é cada vez mais, assim, no presente.
Dadas às forçosas limitações de tempo e mais a amplitude quase ilimitada do assunto, alerto preliminarmente para o fato de haver decidido centrar minhas observações, de preferência, nos problemas de maior gravidade do chamado ensino básico, deixando o superior para outra oportunidade, bem como para o cuidado de não ultrapassar as lindes do ensino formal, aquele que conforma o sistema educacional do país. Não que o ensino superior não arroste com sua cota de graves problemas; fá-lo, e com grande prejuízo para a nação, mas, como acredito que, pelo menos a metade desses problemas advenha dos fracassos do ensino básico; corrigidos estes, aquele deverá ter considerável alívio no seu desempenho. Outrossim, deixo de abordar a chamada educação permanente, não porque dela não goste, mas sim, porque seus encantos e sua atual importância no processo educativo são de tal significação, que merece ela toda uma conferência sobre suas características e suas manifestações, o que também deve ficar para uma próxima vez. Isto posto vamos ao tema que me foi encomendado, a saber: proceder a uma reflexão sobre as raízes da crise, que faz hoje da educação básica brasileira, uma empreitada praticamente falida começarei pelas:
II – Lições do passado
Ao contrário do que se viu na colonização inglesa da América do Norte, onde se desenvolveu nas inóspitas terras do Massachusets e da Virgínia, um processo civilizatório produzido por refugiados, sobreviventes das perseguições religiosas, a saber, réus por questões de consciência, razão pela qual se deram eles prioridade à formação espiritual e intelectual das novas gerações, aqui no Brasil a ocupação do paraíso tropical das nossas costas marítimas se daria dentro das estritas regras do pacto colonial do mercantilismo, segundo o qual a colônia não seria objeto da formação de uma nova nacionalidade e, sim, um centro de predação econômica em favor de uma metrópole em processo de internacionalização de seu comércio. Em razão disso, a sociedade que resultou do povoamento das capitanias, teve estimulada a sua capacidade de trabalho e de exploração das riquezas nativas, enquanto se ignorou totalmente o potencial de desenvolvimento cultural da população. Durante mais de duzentos anos, não fora a preocupação dos jesuítas e, em escala menor, de ordens outras religiosas, que desenvolveram entre os índios, negros e mestiços a catequese ultramontana, com vistas a preservar as almas do aliciamento protestante, feito por piratas, corsários e invasores franceses, holandeses e ingleses, e nada teria havido aqui em matéria de educação. É bem verdade que não se tratava de uma educação letrada, como seria de esperar-se, e sim de um proselitismo católico, apostólico, romano, dentro da conjuntura das guerras religiosas européias dos séculos 16 e 17. A sociedade colonial cresceu, diversificou-se, interiorizou-se territorialmente, mas andou sempre muito longe da escola. Até porque, com o regime escravo de trabalho então vigente – de cada quatro pessoas, três eram escravos – não fazia muito sentido formar-se intelectualmente alguém que não fosse livre. Até porque filosoficamente, educação e liberdade sempre andaram de mãos dadas pelo mundo.
É bem verdade que os jesuítas, com o passar dos anos, e tendo se formado os primeiros núcleos populacionais, como Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Vicente e São Paulo, evoluíram da rarefeita catequese inicial, para uns poucos colégios, onde o trivium e o quadrivium da pedagogia medieval se praticaram com alguma intensidade, dada a necessidade de se atenderem os filhos da incipiente fidalguia cabocla, que, não raro, se dirigiam à Europa para doutorar-se em direito ou teologia, e voltar à colônia, depois de formados, a fim de exercitar os poderes políticos reservados à elite econômica a que pertenciam. Como dizia Capistrano de Abreu: “Sem Jesuítas não teria havido um mínimo de processo civilizatório no Brasil colonial”.
Tudo pioraria com a expulsão desses padres, determinada por Pombal em meados do século 18. É bem verdade, que para substituí-los o rei criou classes leigas, denominadas Aulas Régias, que não prosperaram por duas razões, que se tornaram inerentes a pouca importância que sempre se deu por aqui à educação popular: falta de recursos financeiros para custeá-las (o subsidio literário que lhes foi destinado revelou-se insuficiente) e falta de professores, dada a miséria, que se lhes pagava por aula.
Como se sabe, em 1808, com a chegada da família real à colônia e o bloqueio marítimo da Europa, decretado por Napoleão, os filhos da elite brasileira, não mais podiam cursar o ensino superior de Coimbra, Salamanca, Paris ou Nápoles. Pediu ela ao príncipe regente a criação de escolas, que os atendessem por aqui mesmo. No lugar de começar pelas escolas de base, D. João as criou superiores, como a de Medicina que foi a primeira (talvez porque os médicos abundassem na corte transladada, pela necessidade de cuidar dos males da rainha louca, D. Maria I). E assim começou no Brasil, o sistema educacional de ponta cabeça, ou seja, do telhado para o alicerce, o que tornou todo o ensino formal naquilo que, desde então, tem sido: cursos não integrados entre si, todos elitistas, livrescos, eruditos e voltados para as necessidades das minorias econômicas e sociais.
Como a educação não se constituiu, no passado brasileiro, em uma prioridade na preparação do povo para a construção e o fortalecimento do destino nacional, não estranha que, modernamente ainda, tenhamos que pagar um alto tributo por essa displicência, e que a educação do povo não venha satisfazendo às exigências conjunturais do desenvolvimento atual da nação. Essa é a primeira e a mais funda raiz da crise que aí está. E o que dizer:
III – O ESTADO DA ARTE ATUAL DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA.
Ademais da falta, no passado, de valorização da educação, como instrumento fundamental do desenvolvimento nacional, o que se vê, no presente, é o esforço do governo e da sociedade, no sentido de tentar resgatar o tempo perdido, com a realização não só da universalização do ensino básico para toda a população, como também, com a conquista dos padrões de qualidade para esse mesmo ensino, cujos resultados têm deixado a desejar, a ponto de se haver tornado essa prioridade muito mais presente nos discursos, do que nos fatos. Quanto à extensão das oportunidades de matrícula às massas populares nos ensinos fundamental e médio, há que reconhecer um certo sucesso das políticas atuais, sobretudo no que diz respeito ao fundamental, em que a oferta de vagas chega a quase cem por cento da demanda. O mesmo sucesso não se pode creditar ao ensino médio, eis que, nele, se localiza o calcanhar de Aquiles da educação básica deste país. Não só no quantitativo de matriculas – apenas 1/3 dos que se formam no fundamental chegam ao grau seguinte – mas também no qualitativo, eis que, os poucos matriculados nesse grau de ensino se evadem por desinteresse em relação ao que lhes é ensinado.
A principal razão do insucesso e da falta de qualidade desses graus de escolaridade reside no fato de ainda não se ter conseguido obter um mínimo de pertinência na sua ministração. Pertinência, senhores, é um conceito criado pela UNESCO, para medir o grau de aproveitamento da aprendizagem entre os alunos do ensino formal, aproveitamento esse que se traduz pela intima coerência entre o que e o como se ensina, dentro do requerido pelas aspirações das novas gerações e os reclamos da sociedade, em determinadas etapas de suas contínuas transformações. Nesta nossa era do conhecimento, em que as inovações cientificas e tecnológicas presidem as metamorfoses culturais, políticas e econômicas, a escola não pode deixar de valorizar o saber geral mínimo a ser portado pelos alunos, nem outrossim, ignorar as linguagens didáticas fundamentadas nos avanços da tecnologia da comunicação, a qual deverá referenciar todo o protagonismo de cidadania das gerações futuras. Apesar disso, o que faz hoje a escola brasileira? A não ser nas raras e conhecidas exceções, onde se consegue praticar um bom ensino, o que se vê como regra geral, é a continuidade de ação dos modelos obsoletos, não só da organização escolar, mas também do linguajar pedagógico, o que provoca o desinteresse dos alunos, o desperdício dos recursos e a frustração profissional dos professores. Estarei sendo severo demais? Então, quero convidá-los a refletir sobre os dados que se seguem, frutos das avaliações nacionais e internacionais para medir o estado da arte do ensino básico brasileiro na atualidade.
Primeiro, os dados nacionais das sucessivas avaliações levadas a cabo na primeira década do século 21, através das provas do SAEB (Avaliação do Ensino Básico) e do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), promovidas ambos pelo MEC.
IV – SAEB, IDEB E PISA.
Primeiro a SAEB, com a pontuação mínima em Português no ensino fundamental (4ª série e 8ª série). Seria, respectivamente, de 200 e 300 pontos a meta a alcançar; o máximo que se teve em cada ciclo foi 169 e 232 pontos. No ensino médio, 3ª série, a pontuação mínima deveria atingir 350 pontos: no entanto o máximo obtido foi de 266.
Quanto à Matemática, a pontuação respectiva para a 4ª e a 8ª séries do fundamental deveria ser também de 200 e 300 pontos, mas só se conquistou o máximo de 177 e 245 respectivamente; na 3ª série do ensino médio, para um gabarito de 350 pontos, o que se conseguiu foi o escore de 278.
Quanto aos resultados do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação), em 2010, os números foram os seguintes no ensino fundamental: nas quatro primeiras séries, 4,2 para uma meta de 6,0; 3,7 nas quatro ultimas também para uma meta de 6,0. Quanto ao ensino médio como um todo, para a mesma meta 6,0, conseguiu-se o máximo de 3,6 na pontuação.
Como se vê não são pontos e sim desapontos! A escola brasileira de educação básica está longe de assegurar um mínimo aceitável de aprendizagem a seus alunos. O mesmo panorama se repete nas avaliações internacionais, de que o Brasil participa, a saber: “Educação para todos”, da UNESCO e “Pisa”, da OCDE. Na avaliação da UNESCO, que mede o índice de desenvolvimento da educação, o Brasil alcançou, em 2009, um índice pior do que o de 2005, o que significa estar havendo retrocesso e não avanço na qualidade do ensino básico. Dos 128 países avaliados, o Brasil obteve o 88º lugar, o que o situa abaixo da Croácia, de Cuba, do Cazaquistão, da Argentina, da Venezuela, da Bolívia, do Equador e de outros tidos como menores e quiçá piores.
Quanto ao PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), nos “ranking” de Leitura, Matemática e Ciências, o Brasil, entre os 65 países avaliados, ocupou em 2010, as posições respectivas de 53º, 57º, o que o coloca, aqui na América Latina abaixo da Colômbia, do Uruguai, do México, do Chile; e no plano mundial com resultados piores do que os da Coréia do Sul, da Austrália, de Israel, de Portugal, da Turquia e da Tailândia. Sendo o escore de referência nessas provas a média 6,0, o Brasil obteve 4,1 em Leitura, 3,8 em Matemática e 4,0 em Ciências!
Como explicar resultados tão vergonhosos, como esses, sabendo-se, como se sabe, que tanto o desenvolvimento, quanto a democracia, se apóiam fundamentalmente na boa educação do povo? A explicação está na falta de pertinência, a saber, na descorrelação existente dentro do sistema, entre os processos pedagógicos e as aspirações das novas gerações, somadas às tendências contemporâneas do avanço científico e tecnológico. Os modelos praticados continuam caducos e repetem cansativamente a filosofia iluminista em educação, segundo a qual, para culturalizar a população mais carente, material e intelectualmente, bastaria estender às massas, que ultimamente invadiram as escolas, as mesmas lições teóricas do eruditismo, que só beneficia as elites. As novas gerações, que nascem e crescem familiarizadas com os processos digitais da comunicação, não mais aceitam os cursos discursivos e livrescos do passado. Ao deparar-se com a escola museológica, abandonam os cursos, e se tornam aquilo que, nos países de língua espanhola, se chama de geração ni-ni (ni estuda, ni trabaja). A formação apenas teórica e decorativa nos conceitos de uma ciência já obsoleta, voltada desde ontem para as elites e para o fortalecimento do “status” das cúpulas sócio-econômicas (parafraseando Afrânio Peixoto sobre a literatura, pode-se dizer que a educação é o sorriso da sociedade), está fora de cogitação. Exige-se, hoje, que a escola não só transmita uma cultura básica, como também seja prática e customizada em relação ao futuro acadêmico e/ou profissional das novas gerações. Do contrario os diplomas, quando obtidos, poderão ser inúteis. É preciso situar os alunos na riqueza contemporânea do saber, usando a linguagem por eles requerida como fácil de entender e com vistas a seu progresso pessoal e ao da nação. Caso contrário, a escola perderá sua importância como “player” principal do processo educativo eficaz, cedendo-a a agencias outras de educação informal, que ultimamente pululam nos meios de comunicação.
E, como fazer para reverter essa situação de crise? As grandes reformas têm-se mostrado inúteis, eis que seu texto reflete sempre mais a consolidação do poder dos burocratas do sistema, do que soluções pedagógicas endereçadas à qualificação do ensino. Cada reforma no Brasil parece guardar um pouco da lição de Lampeluza, no seu romance “O Leopardo”, a saber: faz-se reforma para que tudo permaneça como está… Para cortar os males atuais da educação brasileira será preciso, antes de mais nada, formar melhor os professores, dando-lhes capacidade suficiente para que mostrem aos alunos o lado prático e aplicativo de cada proposição teórica dos programas de ensino, além de dar-lhes a expertise para o uso didático das tecnologias da TI, em vez fazê-los meros repetidores de lições cediças e superadas sobre o saber antigo.Urge transforma-los em assessores e condutores dos alunos, na busca do saber que lhes convém, na pesquisa individual e permanente da Internet e das bibliotecas. Isso tudo, acompanhado do fortalecimento da carreira e dos salários do magistério, eis que o professor brasileiro é o mais mal pago dos profissionais de formação universitária neste país.
Para tanto, faz-se mister libertar as escolas das amarras burocráticas que, hoje, as imobilizam na rotina, convertendo-se os órgãos superiores do sistema a saber: MEC e Secretárias de Educação, de meros controladores de procedimentos ronceiros, em consultores pedagógicos de cada unidade escolar, na elaboração de seus PDIs (Planos de Desenvolvimento Institucional), sempre em associação com entidades empresariais e grupos sociais atuantes. Até porque, se a razão última de educar as pessoas está em dar-lhes o uso consciente da liberdade, é muito difícil usar para isso escolas destituídas de liberdade na sua opção pedagógica. Essas são algumas das raízes atuais e pertinentes da crise que aí está.
Para finalizar, há também que gastar mais em educação no Brasil – os 4% ou 4,5% do PIB, significam muito pouco – além de serem pessimamente geridos. Há que aumentar esses percentuais e inverter as prioridades do sistema, eis que hoje se gasta mais com os alunos do ensino superior e menos com os dos cursos básicos. A Coréia do Sul gasta 19% do PIB com educação sendo a parte do leão endereçada ao ensino básico. E na comparação entre o custeio dos diversos graus de ensino no Brasil, com os dispêndios feitos pelos países da OCDE, fica claro que estamos longe do bom senso nessa matéria, se não, veja-se a seguinte tabela de custos do aluno ano:
OCDE |
Brasil |
Ensino Fundamental |
|
US$6.437,00 |
US$1.556,00 |
Ensino Médio |
|
US$8.006,00 |
US$1.538,00 |
Ensino superior |
|
US$12.336,00 |
US$10.294,00 |
*Dados da UNESCO, citados por Arnaldo Niskier numa sua conferência, na Universidade da Columbia (USA).
CONCLUSÃO
Grato pelas atenções que me dispensaram e desculpem-me pela maçada desta longa exposição.
Palestra proferida pelo Prof. Dr. Paulo Nathanael Pereira de Souza, Reitor da Unisciesp, e Doutor em Educação, dia 12 de maio de 2011, sede da Fecomércio.