Percival Tirapeli toma posse na Academia Paulista de Educação
Percival Tirapeli é professor titular em História da Arte Brasileira pela Universidade Estadual Paulista; pós-doutorado pela Universidade Nova de Lisboa; doutor e mestre pela Universidade de São Paulo. Foi conselheiro do Condephaat (2017/19), membro da Associação Brasileira de Críticos de Artes (ABCA).
Leia a íntegra do discurso de posse do prof. Percival na APE:
“Devo aqui homenagear o eminente médico cardiologista Silvio Carvalhal, indicado como fundador da cadeira n 24, cuja posse foi realizada in memoriam em 2008. O Dr. Carvalhal foi pioneiro no estudo da patologia da Doença de Chagas, pela Unicamp, onde influenciou uma geração de cientistas. Era especialista em arritmias pela Universidade de Barcelona e ocupou cargos relevantes na área de Cardiologia nas sociedades científicas de sua área.
Minha homenagem também ao patrono desta cadeira, Álvaro Lemos Torres, médico reumatologista, que iniciou sua carreira em Avaré, em 1913. Preparador de parasitologia, logo passou para a área de Anatomia e Fisiologia. Fez cursos nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha, e formou sua escola de notáveis nos campos da Cardiologia e Tisiologia, de onde saíram nomes importantes da reumatologia paulista e brasileira.
Dois outros grandes mestres me antecedem, os professores Sebastião Witter e Vinicio Stein Costa, ambos atuantes na área da educação, com cargos em museus. Vinicio Stein Costa como fundador de uma rede de Museus Históricos Pedagógicos e Sebastião Witter como diretor do Museu Paulista da USP. Espelhado nestes dois últimos membros da Cadeira de número 24 poderei traçar alguns indícios coincidentes com minha carreira de 45 anos como professor de Educação Artística, até chegar à titularidade em História da Arte Brasileira no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, a UNESP.
Vinicio Stein Costa, nascido na cidade de Capivari, São Paulo em 1908, foi incansável e longevo, dedicando-se totalmente à implantação de Museus Históricos, nominados, ora Museus Históricos Pedagógicos, ora Museus Históricos Paulistas.
Ao longo de sua atuação, Vinício Stein implantou os 63 Museus em nosso estado. O conjunto de sua correspondência foi reunido em 27 volumes, organizados por cidades, atualmente sob a guarda do Departamento de Museus e Arquivos da Secretaria Estadual de Cultura. De 1957 a 1970, o Serviço de Museus Históricos e Pedagógicos contou somente com o empenho de seu diretor e o auxílio de um único técnico. Stein foi também Conselheiro do Condephaat – e direcionou tombamentos de residências históricas de personagens, para que ali se instalassem os museus que serviriam à memória do local e da cultura paulista. Seu empenho frutificou com a criação, portanto, da primeira rede de museus de tal natureza em São Paulo e no Brasil.
Também não poderia deixar de homenagear o professor José Sebastião Witter, com quem tive a honra de conviver em muitas situações, como quando ele dirigiu o Instituto de Estudos Brasileiros e o Museu Paulista. O Professor Witter, como gostava de ser chamado, foi um migrante nas terras paulistas, vivendo em parte em Fernando Prestes onde nasceu, Guararema e Mogi das Cruzes, onde estudou, e depois foi professor primário, diretor e professor universitário. Na USP foi professor assistente de Sergio Buarque de Hollanda e depois mestre, doutor, livre-docente e titular. Foi professor emérito da USP. Seu grande título, no entanto, segundo ele próprio, foi ser PROFESSOR.
Após ter homenageado aqueles que me antecederam na cadeira 24 da Academia Paulista de Educação, quero agradeçer as elogiosas palavras da professora Rose Neubauer, e a todos que votaram em minha indicação tendo examinado minha trajetória inicial de professor desde a disciplina de Educação Artística na Escola Volkswagem do Brasil até alcançar a titularidade em Arte Brasileira na Unesp.
A disciplina Educação Artística ingressou em 1971 no Currículo Escolar, substituindo a disciplina de Desenho, e em alguns casos Geometria e Trigonometria. Era ampla. Em seu bojo tudo caberia: artes plásticas, música, cênicas, expressão corporal, cultura popular. Polivalência era a palavra de ordem. Porém, qual seria a intenção de um governo militar prestar-se às benesses de estudos cuja expressão artística era perseguida pela censura? Ao professor recém-formado, bacharel em pintura, gravura e desenho, caberia, portanto, adaptar-se em um curso intensivo, anual, para inteirar-se da pedagogia da polivalência. Foram anos de luta para que as escolas aos poucos entendessem a nova disciplina, em que coubesse o universo da expressão humana, porém, cada professor em si jamais abarcaria a multidisciplinaridade. A cada um caberia dar o máximo de si e entender que daquele momento em diante não mais bastaria a cópia de obras de arte, mas sim a livre expressão; não mais a leitura da obra, mas a criação e a experimentação.
A mudança não foi fácil, a partir da aceitação de uma disciplina com conteúdo tão intenso como extenso. Não haveria como decorar conteúdos, mas senti-los, não apenas ler, mas entender a abstração de novos códigos não verbais. Os códigos visuais, sonoros e gestuais. Tudo isso em aulas de 50 minutos! Anos se passaram durante a ditadura militar, e a disciplina ganhava novos contornos. Não apenas ensinar ou transmitir o saber e o pensar, mas aprender para operar.
No período pós segunda guerra o ensino da arte nas escolas passou por várias experiencias incluindo aquelas como a Escolinha de Arte do Brasil, das Escolas Pestalozzi (trabalhei em uma delas por apenas seis meses) e nos estabelecimentos de recuperação e assistência àqueles com deficiências intelectuais.
A discussão foi grande na década de 80, e intensificou-se ao término da ditadura em 1985: aplicava-se na disciplina apenas a livre expressão, deixando que o aluno descobrisse por si as possibilidades de fazer arte como lazer, divertimento e até mesmo para acalmar, descansar os alunos das disciplinas consideradas sérias, importantes. Este direcionamento foi, porém, substituído pela ênfase na interrelação entre o fazer, a leitura da obra de arte e sua contextualização histórica, social, antropológica e estética da obra. Depois dessas etapas, agora sim o aluno estaria pronto para a criação, para o prazer estético.
No Brasil formos orientados pela incansável e batalhadora Profa. Dra. Ana Mae Tavares Barbosa, da Escola de Comunicações e Artes da USP, na aplicação de métodos que possibilitassem maiores conhecimentos aos profissionais da Arte Educação ao atuar no processo de ensino-aprendizagem. A ela se devem as novas possibilidades do ensino de artes, por meio do referencial da Abordagem Triangular na qual se sugerem três eixos norteadores: a contextualização da obra dentro da História da Arte, da vida do artista, o momento histórico em que viveu e a materialidade da obra. O segundo eixo é a apreciação artística, quais os métodos de análise e a relação com outras obras. O terceiro eixo, agora com o aluno aquecido, ele poderá fazer arte enriquecido pelas experiências já vivenciadas. Os embates em busca de diretrizes culminaram com o Terceiro Simpósio Internacional sobre o Ensino da Arte e a sua História, em 1989.
A mim, no Instituto de Artes da Unesp, desde os anos 88 me coube auxiliar na implantação da Licenciatura Plena de Educação Artistica e instrumentalizar os alunos com as leituras críticas dos movimentos artísticos do Renascimento à Contemporaneidade, com as teorias dos pensadores alemães como Erwin Panofsky, Henrich Wölflin, as teorias da Gestalt, com Rudolf Arheim e os professores da Bauhaus como Wassily Kandisnky e Paul Klee. Estes foram alguns dos pensadores que me foram apresentados pelo meu saudoso mestre Wolfgang Pfeiffer, nos estudos do mestrado e doutorado na ECA USP.
Ainda sempre no intuito de melhor preparar os discentes para futuros docentes, foram 40 anos de pesquisas in loco aprimorando estudos junto ao Grupo de Pesquisa Capes, Barroco Memória Viva, talvez o mais longevo da Unesp, viagens de estudos semanais às cidades históricas de Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e uma para as Misiones argentinas e paraguaias. Naqueles momentos de duas ou até três viagens anuais, os alunos puderam observar a conservação do patrimônio sacro e civil colonial, o patrimônio imaterial das festas sacras e profanas, a cultura popular nos ateliês dos artesãos.
A formação dos alunos universitários teve continuidade na formação, pioneira no Brasil, de arte educadores nos museus para um novo público que se criava. Aqui faço um paralelo entre a minha trajetória e a dos meus dois antecessores nesta cadeira, Sebastião Witter, no Museu Paulista, e Vinicio Stein Costa. Primeiro estive no Conselho de Artes do Museu de Arte Moderna, depois, foram 10 anos colaborando no Educativo com Emanoel Araujo na Pinacoteca e esporadicamente no Museu Afro/Brasil. Idealizei a primeira exposição do Centro de Referência em Educação Mário Covas. Colaborei extensamente com a implantação do Museu Boulieu em Ouro Preto, ministrei palestras e escrevi para o Museu Casa Portinari em Brodowski.
Do Museu Paulista pude pleitear o empréstimo das mais antigas obras dos tempos da colonização portuguesa, a cruz de 1532, a pia batismal de Abarebebê, 1555 e a verga da igreja de São Vicente de 1559, peças de valor inestimável que foram ao Palácio dos Bandeirantes para exposição, quando da visita do Papa Bento XVI em 2007. Durante todo o período de curadoria do Acervo dos Palácios pela Dra. Ana Cristina Carvalho, pude participar doe seu Conselho e nos três palácios realizar exposições como curador, uma delas, O nome do Brasil, de itinerância por museus municipais, tal como fizera Vinicio Stein Costa.
Entre os alunos sempre houve uma desconfiança do professor que é artista, mas que também é barroco. A dúvida chegou a tal ponto que em uma das viagens em particular, uma corajosa mensageira me indagou um tanto constrangida se eu fora padre e casado com uma freira, a Laura. Não, disse, sou um artista contemporâneo, xeroqueiro, amante do arte pós-moderna, como minha tese de doutorado, defendida no Museu de Arte Contemporânea da USP, com 500 metros quadrados de exposição e uma banca invejável: Walter Zanini, Ana Mae Barbosa, Wolfgang Pfeiffer, a semioticista Dirce Ceribeli e a artista Regina Silveira. Ah, sim, falou a aluna mensageira, acho que nos enganamos. Tive que explicar que arte sacra e estudo do barroco vinham lá do seminário que cursei e das primeiras aulas que ministrei sobre Barroco Mineiro, com o livro de Lourival Gomes Machado. Que eu conhecera Damián Bayon, Ramon Gutiérrez e até Germain Bazin. Tá bom assim, me disse quase que se levantando. E é por isso que o senhor faz exposições no Museu de Arte Sacra e nos traz aqui nas cidades mineiras. E o senhor orienta só sobre barroco! Logo percebi que almejava uma vaga no mestrado ou doutorado.
Devo terminar, porém, ainda um pouco de paciência: relato em breves palavras a experiência de ter ministrado durante 10 anos, de 1978 a 1988, a disciplina Educação Artistica para operários da Escola de I e II Graus Volkswagem do Brasil. O desenho, a leitura e a interpretação das peças no desenho técnico, eram em princípio a prioridade. Os computadores chegariam só na metade da década de 80. Além dessa meta, de serem ferramenteiros, pude realizar a multipluralidade em voga naqueles tempos: teatro e música junto à disciplina de Português; vídeo com História e Ciências; escultura e bricolagem com a habilidade dos soldadores que faria inveja a qualquer escultor; artesanato com a diversidade humana lá encontrada com pessoas de todo o Brasil, e a culinária com os encontros com seus familiares aos sábados
Aquele período fora coincidente com meu mestrado e doutorado. Muitas e muitas vezes confundi seus cérebros ao vaticinar que seus filhos não seriam ferramenteiros. Haveria instrumentos que se chamariam computador, que leriam e fariam os projetos e que eles próprios seriam substituídos por robôs! E que a arte seria feita por computadores. Eram as ideias de Vilém Flüsser e Mario Schenberg, que ouvíamos aqui e alí em salas do campus da USP. Não sei se acertei de fato, porém os operários produziram peças que causaram admiração; viajaram e fruiram de obras barrocas e modernas e puderam refletir isso em seus futuros e no de suas famílias, com algumas pitadas de pensamentos filosóficos.
Agora sim, termino como Mário de Andrade, que iniciou uma aula inaugural em 1938, confessando não saber o que seja o Belo nem a Arte. Afirmou que todo artista deveria ser um artesão, discursou sobre a imprevisibilidade do artesanato, da desnecessidade do virtuosismo e na solução pessoal dada pelo artista ao fazer uma obra de arte – atitude imprescindível e inensinável.
Mário de Andrade, que me guiou pelos caminhos do barroco paulista, barroco esse encoberto de fuligem, da pátina do progresso e do tempo de São Paulo! Creio eu ter podido fazer brilhar o ouro da nossa arte colonial, e peço-lhe licença para trocar a palavra Arte pela palavra Imagem.
A imagem — que hoje nos é oferecida sem que a procuremos, na rua, nos livros e celulares — durante milênios foi mítica. Na Antiguidade o texto a explicava – e McLuhan aprofundou esse tema do código da linguagem e da palavra impressa, que levou o texto a dominá-la em quinhentos anos. A imagem mecânica, ou seja, a fotografia do início do século 19, veio a ocupar parte do espaço físico nos jornais espantando o mundo – uma imagem passaria mesmo a valer por mil palavras. Ganhou movimento no cinema, seguida pelo som. Foi proclamada como nova modalidade da arte. Com a televisão, a imagem invadiu nossos lares. A beleza, ou o Belo de Mário, foi substituída pelo feio, pela violência, a imagem das massas. A morte tornou-se banal, assim como as cenas de guerra. Em nossa era digital, a imagem caminha em nossas mãos. Somos escolhidos pelo Big Brother a sermos uma imagem padronizada, vestidos pelo consumismo da moda. Que imagens frenéticas são essas que nos hipnotizam, nos levam a ficarmos horas vendo-as, cada uma apenas por segundos, acumulando-as em nossos cérebros sem termos tempo para saber o que vemos. Quais imagens decodificaremos em nossas salas de aula, para as crianças que já nascem com as imagens digitais nas mãos? Aquelas de movimentos contínuos que nos levam a pensarmos que somos infinitos? A imagem teria extrapolado o texto ou teria retornado como mítica? Gerada por uma inteligência artificial, um demiurgo que, iluminado por novas tecnologias, teria tomado o lugar de Platão?
Com um mero comando de voz minha imagem tomará o lugar do autorretrato de Van Gogh. Eu não sou mais eu. Sou uma imagem desejada, a ser consumida pelo outro.
Em mais um segundo, apenas o mundo me verá como quero ser.
Hoje talvez não sejamos mais nós mesmos, mas sim imagens que circulam nas mãos de quem quer que seja. Se pararmos um minuto, faremos uma selfie para lembrarmos como somos.
Que sua selfie seja, ao menos, bela.”