Lei de Dir e Bases da Ed. Nacional: um caminho percorrido, um presente desafiante – Prof. Jamil Cury
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: um caminho percorrido, um presente desafiante.
Prof. Carlos Roberto Jamil Cury – PUCMinas – fevereiro 2017
Introdução
A oportunidade dos vinte anos da aprovação e sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nos incita a uma reflexão sobre esta lei tão importante para a educação básica nacional quanto para toda a educação superior.
Aos 20 de dezembro de 1996, houve a sanção desta lei n. 9.394/96 pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, e que foi denominada oficialmente Lei Darcy Ribeiro. Esta lei procede diretamente da Constituição por conta do art. 22, inciso XXIV.
O processo de tramitação legal foi moroso e complexo na medida em que havia dois projetos em tramitação. Um deles, nascido da Câmara dos Deputados, tinha forte participação da sociedade civil, e outro, gerado no Senado Federal, uma presença acentuada do poder executivo após 1995. Foram 8 anos de tramitação durante os quais houve as mais variadas emendas aos projetos. Pode-se dizer que este processo, polêmico e lento, quando se trata de uma lei de educação, não é novidade.[1]
A outra LDB, a lei n. 4.024/61 levou mais tempo: treze anos ! Não é fácil chegar a um marco regulatório da educação escolar pois muitos são os pontos que interessam diferentes atores implicados no assunto, atores sociais com forças diferentes. A educação é um campo de disputas em que pese princípios inseridos na Constituição.O fato dele ser um campo de disputas não é uma novidade. Prova disto são os estudos e pesquisas trazidos pela história da educação. O mesmo pode se dizer quando se trata do capítulo de educação nas Constituições Republicanas proclamadas e dos Planos Nacionais de Educação.[2]
Por outro lado, os estudos e pesquisas demonstram que a instauração de uma lei geral de educação como uma lei de diretrizes e bases da educação nacional foi como que se espessando ao longo de nossas histórica com destaque para alguns pontos que foram se tornando mais claros e mais constantes.
Pequeno esboço histórico
A chegada a uma primeira lei nacional da educação também não foi fácil.[3] É verdade que tivemos, para a então escolas de primeiras letras (ou escola primária ou instrução primária), uma lei geral imperial entre 1827 e 1834. Lei assinada pelo Imperador Dom Pedro 1º, buscou dar forma ao disposto na Constituição Imperial de 1824 em que esta última estabelecia a instrução primária gratuita como componente da cidadania de acordo com o seu art. 179, XXXII. A lei geral de 1827 previa, em poucos artigos, a organização pedagógica, o currículo, o piso salarial igual para professores e professoras e a abertura de escolas.
O Ato Adicional de 1834, a rigor uma emenda constitucional, de acordo com o seu art. 10, definiu que a legislação sobre a instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, no âmbito da instrução primária e de formação de docentes, ficaria como competência das Assembleias Provinciais, sendo que as faculdades de Medicina, os cursos Jurídicos e outras instituições de ensino superior ficariam sob a responsabilidade dos poderes gerais imperiais. Ponto significativo em nossa história, este Ato Adicional estabeleceu uma dupla rede administrativa: a das primeiras letras como encargo das Províncias, eventualmente também a instrução secundária, e a do ensino superior como atribuição dos poderes gerais imperiais.
Mas aqui se faz importante uma assinalação importante: a esta dupla rede administrativa, o sistema social existente a enquadrava dentro de uma sociedade formalmente liberal, mas, de fato, escravocrata. Portanto, a esta primeira dupla rede, correspondia outra duplicidade: a dupla rede social, pela qual os escravos (considerados não cidadãos e apenas força de trabalho) eram proibidos de entrar nas escolas públicas e, pela qual, os filhos das elites poderiam se encaminhar para o ensino superior. O que não quer dizer que não houvesse transgressão a esta regra e nem que confrarias e outros institutos não pudessem ofertar a escola aos escravos.[4]
Contudo, se estas duplas redes condicionaram uma oferta bem reduzida de escola pelas Províncias, nem por isso deixou de haver várias análises de juristas e iniciativas parlamentares no sentido de que os poderes gerais auxiliassem as províncias na ampliação da oferta das primeiras letras. Veja-se, por exemplo, esta análise do jurista Pimenta Bueno (1857) comentando o artigo da Constituição de 1824 sobre a educação no qual ele postula um Ministério Especial da Instrução Pública :
A instrucção primaria é uma necessidade, não desta ou daquella classe, sim de todas, ou de todos os indivíduos… É pois uma necessidade geral, e consequentemente uma divida da sociedade… Esta instrucção deve por isso mesmo não só ser gratuita mas também ser posta ao alcance de todas as localidades…O art. 10 § 2o do acto adicional deu ás assembléas provinciaes a faculdade de legislar a este respeito em relação ás respectivas provincias, e muitas dellas não se têm olvidado desse dever essencial. Entendemos, porém que os poderes geraes não devem de modo algum abdicar a attribuição que este mesmo paragrapho lhes confere de concorrer de sua parte para tão util fim, e mui principalmente no intuito de crear uma educação nacional homogenea e uniforme, que gere e generalise o caracter brasileiro…(p. 440)(grifos adicionados)
Certamente, o choque entre a educação como direito da cidadania, posto na Constituição, e a vigência da escravatura, fazia com que, de fato, o direito era um privilégio e a noção de educação nacional deve ser lido sob uma ótica analítica.
De qualquer modo, o Município da Corte, no Rio de Janeiro, abrigava, desde 1837, o Colégio de Pedro II o qual seria o referente paradigmático para a instrução secundária nas províncias. Assim, a organização pedagógica do Pedro II com seu currículo e seu regimento serviu como paradigma para a educação nas Províncias (depois Estados), seja nas instituições públicas, seja nas instituições particulares. Esta referência passou a ser conhecida pelo marco legal da equiparação, caso contrário seus certificados não teriam valor oficial. Com isto, o poder público não só passa a velar pela instrução pública como também volta a pôr sob sua supervisão os estabelecimentos particulares. Tal supervisão e autorização de funcionamento se tornou explícita com a Reforma Couto Ferraz de 1854.[5]
Outro ponto importante neste a caminho de uma lei de diretrizes e bases é a obrigatoriedade da educação, no caso de então, da instrução primária.
Paulino José Soares de Souza (Filho), ministro dos Negócios do Império, em 6 de agosto de 1870, após considerar que a instrução primária é a que desperta o maior interesse, por abranger todas as classes da população e tender à satisfação da primeira aspiração intelectual… e que em um país civilizado ninguém deve deixar de saber pelo menos ler e escrever…(diz): vou ao ponto de entender que os poderes públicos devem impô-lo como uma obrigação a todos os que estão na idade escolar…
Em seguida propõe:
Se ha objeto, do qual devamos ir em auxílio das províncias é, sem contestação, o ensino público (Apoiados). Sempre entendi que a atribuição de legislar sobre instrução pública não é exclusiva das assembléias provinciais e que o encargo que tem pesado unicamente sobre as províncias de promoverem o ensino, pode ser partilhado pelo Estado, que as deve auxiliar nesta parte, logo e quando lhe for possível. (Muitos apoiados) (p. 72-73)
Junto a esta proposição de uma espécie de regime de colaboração, o Ministro atribuía aos poderes gerais, baseado no Ato Institucional, competência para atuar no ensino primário. Bastaria elaborar uma lei geral.
Pode ser que a proposta de Paulino de Souza tenha ecoado em uma outra reforma educacional do Império: a Reforma Leôncio de Carvalho, do Decreto 7247 de 19 de abril de 1879. O artigo 2o incluía a obrigatoriedade da instrução primária no Município da Corte e se os pais não matriculassem os seus filhos haveria penas na medida em que não cumprissem tal obrigação nas escolas públicas ou particulares ou por meio de instrução em casa.
Outro dispositivo da Reforma de 1879 permitia a subvenção oficial dos poderes gerais, em locais distantes, aí incluídas as províncias às escolas particulares que inspirem a necessária confiança.
Vê-se que, lentamente, ainda que de modo pontual, não plenamente consumado, vai se gestando um caminho do que viriam a ser as de diretrizes e bases da educação nacional.
A República não alterou significativamente o quadro herdado do Império. A própria gratuidade, em nível nacional, não está presente no texto constitucional, algo que havia na do Império. A gratuidade e mesmo a obrigatoriedade ficariam a critério dos Estados (ex-Províncias) e que, segundo art. 5o da Constituição de 1891, garantia-se a autonomia federativa.[6]
Por outro lado, a Constituição determinou a laicidade do ensino nos estabelecimentos públicos consoante o art. 72, § 6o, deixando o ensino religioso de constar nos seus currículos. Do ponto de vista jurídico, na educação, este mandamento proibitivo era de âmbito nacional.
Aqui, não se pode deixar de assinalar o importante papel assumido pelos Estados que, por meio de Reformas do Ensino, em especial nos anos Vinte, promoveram a introdução de novos métodos de ensino, com base no escolanovismo, como aumentaram as oportunidades de acesso nas escolas públicas de ensino primário, ainda que muito aquém de uma universalização.[7]
A Revisão Constitucional de 1925/1926, por meio de emendas de parlamentares, buscou restabelecer, em nível nacional, a gratuidade e estabelecer a obrigatoriedade no ensino primário. Também a bancada católica tentou restabelecer o ensino religioso nas escolas públicas. Mas as emendas não foram aprovadas.
Mas é a partir da Revolução de Trinta que a dimensão nacional vai ganhar espaço, especialmente quando da Assembleia Nacional Constituinte de 1933/34. Já haviam sido criados, em 1930, o Ministério da Educação e Saúde Pública e, em 1931, o Conselho Nacional de Educação com atribuições específicas. Este se posicionou a respeito da educação nacional.
Como consequência dessas atribuições, na sessão do Conselho de 27 de junho de 1931, o conselheiro João Simplício Alves de Carvalho apresentou proposta de criação de uma ou mais comissões para o preparo e a redação de um plano nacional de educação a ser submetido ao Governo da República e dos Estados. Em 27 de junho de 1931, João Simplício Alves Carvalho apresentou duas propostas, sendo uma delas referente ao PNE:
Proponho que o Conselho Nacional de Educação,… designe uma ou mais comissões para o preparo e a redação de um plano nacional de educação, que deve ser aplicado e executado dentro de um período de tempo, que nele será fixado. Esse plano procurará satisfazer as exigências da atualidade brasileira, tomando em consideração as condições sociais do mundo, e assegurará, pela sua estrutura e pela sua aplicação, o fortalecimento da unidade brasileira, o revigoramento racial de sua gente e o despertar dos valores indispensáveis ao seu engrandecimento econômico; e, depois de estudado e aprovado pelo Conselho Nacional de Educação, será submetido ao exame do Governo da República e á consideração dos Governos dos Estados. E estabelecerá, apanhando todos os aspectos do problema educativo… [8] (grifos adicionados)
Esta demanda, como se viu, já vinha do Império e dos anos 20. Mas tal empenho ganhará força e maior visibilidade por meio dos esforços e pressão de vários grupos, especialmente aquele articulado em torno da Associação Brasileira de Educação e a vinda a público de várias estatísticas educacionais que, em confronto com as da Argentina, Uruguai e Chile, nos deixavam em situação vexatória. A discussão em torno da gratuidade e da obrigatoriedade, à vista da situação precária em termos de acesso e de vagas, trouxe consigo a discussão de recursos para dar conta destas prestações educacionais.
A urbanização que se dava no país foi mais um ensejo para postular mudanças na educação. E é neste contexto que se deu a publicação do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932.
O Manifesto de 1932 entende que um dos pilares da reconstrução nacional teria que ser por meio de um plano de reconstrução educacional. Diz ele a esse respeito:
No entanto, se depois de 43 annos de regimen republicano, se dér um balanço ao estado actual da educação publica, no Brasil, se verificará que, dissociadas sempre as reformas economicas e educacionaes, que era indispensavel entrelaçar e encadear, dirigindo-as no mesmo sentido, todos nossos esforços, sem unidade de plano e sem espirito de continuidade, não lograram ainda crear um systema de organização escolar, á altura das necessidades modernas e das necessidades do paiz. (p. 33)
E, em outro trecho, denunciando a dupla rede, lê-se:
De facto, o divórcio entre as entidades que mantêm o ensino primário e profissional e as que mantêm o ensino secundário e superior, vae concorrendo insensivelmente, como já observou um dos signatários deste manifesto ” para que estabeleçam no Brasil, dois systemas escolares paralellos, fechados em compartimentos estanques e incommunicaveis, diferentes nos seus objectivos culturaes e sociaes, e, por isso mesmo, instrumentos de estratificação social”. (p.56-57)
No mesmo ano de 1932, na V Conferência Nacional de Educação, realizada em Niterói, a promotora do evento – a Associação Brasileira de Educação (ABE) – põe como objetivo da mesma sugerir, no anteprojeto de Constituição da Assembleia Nacional Constituinte de 1933, um plano de educação nacional.
Assim, como desfecho deste processo, a Constituição de 1934 dará amplo espaço à educação. Coube à União, como competência privativa, pelo art. 5o XIV, o traçar as diretrizes da educação nacional. Estas seriam de competência privativa do poder legislativo por conta do art. 39, n. 8, letra e, com sanção presidencial. Além disso, abrirá um capítulo próprio da educação. Nele, vários dispositivos concorreram para que a educação tivesse um perfil nacional tais como a gratuidade, a obrigatoriedade, a vinculação de impostos para a área, o plano nacional de educação a ser elaborado pelo Conselho Nacional de Educação e a liberdade de ensino autorizada. O ensino religioso, de matrícula facultativa, retorna aos currículos oficiais. Já o inciso XIX, letra l, do art. 5º. não impede à União o legislar sobre a instrução primária. Contudo, o § 3º do art. 5º, face ao inciso XIV, não exclui a legislação estadual supletiva ou complementar sobre as mesmas matérias.
Nesta Constituição, contudo, faculta-se, no art. 9o, à União e aos Estados celebrar acordos para a melhor coordenação e desenvolvimento dos respectivos serviços, e, especialmente, para a uniformização de leis…
Apesar de tais avanços, certamente significativos e até hoje bandeiras de uma educação como direito juridicamente protegido, os anos 30 e 40, pode-se ler, por exemplo, quando da tramitação do Plano Nacional de Educação de 1936/37 na Câmara dos Deputados, o seguinte trecho de um discurso de Raul Bittencourt, deputado e relator da Comissão Especial relativa a este Plano:
A par da democracia, a Carta de 1891 consagrava a Federação, os Estados autônomos, com liberdade relativa, sujeitos a princípios gerais, e só a União soberana. Quando se tratava da educação primária, entretanto, os Estados se comportavam como nações livres e quando consideravam os problemas do ensino secundário e superior os Estados eram reduzidos a departamentos de um governo central, como se fôramos uma República Unitária. (Diário do Poder Legislativo de 24/8/1937, p. 39889)
Contrastando com essa prática dualista advinda da Carta de 1891, o deputado afirma o caráter federativo da organização política brasileira da Constituição de 1934 e do Capítulo sobre a educação.
O golpe que conduziu ao Estado Novo teve repercussões na educação, vão conhecendo contornos mais nítidos na dimensão social pela clara distinção entre público e privado, especialmente o fim da vinculação, os privilégios da rede privada e a censura aos livros.[9]
Mesmo não tendo conseguido levar a diante o projeto de um Código da Educação, em 30 de janeiro de 1941, Vargas e Capanema convocam, via Decreto n. 6.788/1941, a chamada 1a. Conferência Nacional de Educação e de Saúde em vista de uma organização e de um programa nacional de educação.[10]
A lei n. 4.024/61
A redemocratização trouxe a Constituição de 1946 e com ela seu art. 5o, XV, d, o das diretrizes e bases da educação nacional como competência privativa da União, bem como vários dispositivos de 1934 no capítulo da educação como gratuidade, obrigatoriedade, vinculação de impostos e a liberdade de ensino autorizada.
A lei de diretrizes e bases da educação nacional, sancionada em 1961, após 13 anos de tensa disputa no Congresso e na sociedade civil, conheceu dois momentos importantes em sua tramitação. O primeiro, na Câmara, no qual o campo de disputa era o da maior ou menor presença da União na sua relação com os Estados. O segundo momento, na sociedade civil, mais tenso, opôs projetos públicos versus projetos privados. O projeto final sancionado foi uma lei de compromisso entre estes dois momentos. Finalmente, já sob o regime parlamentarista, veio à luz a lei n. 4.024/61 que confirmou a gratuidade, a obrigatoriedade, a vinculação orçamentária e o plano nacional de educação. E também contemplou várias demandas do ensino privado como possibilidade de recursos públicos e o ensino religioso nas escolas oficiais. Desse modo, a organização da educação nacional continuava a se desenhar por um federalismo bastante dependente dos setores ligados à economia e à divisão dos impostos.
No que se refere aos currículos, a lei impôs para todos os sistemas de ensino, 5 disciplinas obrigatórias para o ensino secundário (§ 1o do art. 35) e apontou para um sistema geral de educação quando tratou da educação dos excepcionais. No art. 92, atribui-se ao Conselho Federal de Educação a incumbência de elaborar o plano de educação aplicável a cada um dos Fundos de Educação: o do ensino primário, o do ensino médio e o do superior.[11]
A ditadura militar de 1964 impôs novos percalços para a educação como a censura e a perseguição a dissidentes. E abandonou os dispositivos relativos aos Fundos elaborados pelo CFE em favor de Planos Nacionais de Desenvolvimento.
A Carta de 1967, já sob o golpe civil-militar de 1964, suprimiu a vinculação entre o financiamento da educação escolar e a porcentagem da receita resultante de impostos arrecadados[12], . Ao mesmo tempo, ela ampliou a obrigatoriedade do ensino primário para 8 anos.[13] E continuou determinando a competência privativa da União (art. 8o, XIV) em estabelecer planos nacionais de educação e de saúde bem como diretrizes e bases da educação nacional (art. 8º, XVII, q).
As consequências da ditadura se fizeram presentes na alteração da lei n. 4.024/61 pela redação dada pela lei n. 5.692/71, pela lei n. 5.540/68 e posteriormente pela lei n. 7.044/82. O impacto sobre o conjunto dos docentes em seus salários e carreiras foi bastante significativo.
O retorno da obrigatoriedade de recursos para a educação constitucionalmente posta só veio mediante a emenda Calmon, emenda n. 24/83 regulamentada pela lei n. 7348/85.
A redemocratização e a Carta de 1988
As lutas pelo retorno à democracia significaram uma grande participação da sociedade civil na elaboração da Constituição de 1988. Ansiava-se por um país com mais direitos sociais, direitos políticos e sem desconsiderar os direitos civis. A Constituição da República de 1988 reconheceu o direito à educação como o primeiro dos direitos sociais (art. 6º) assim como um direito do cidadão e dever do Estado (art. 205). E, por essa razão, estabeleceu princípios, diretrizes, regras, recursos vinculados e planos de modo a dar substância a esse direito. Ao explicitar esse direito, elencou sob a forma de assinalação de formas de realizá-lo tais como gratuidade e obrigatoriedade com qualidade e com proteção legal ampliada, e com instrumentos jurídicos postos à disposição dos cidadãos para efetivá-la criando prerrogativas próprias para os cidadãos em virtude das quais eles passam a usufruir de ou exigir algo que lhes pertence como tal.
Desse modo, as diretrizes e bases da educação nacional continuam como atribuição privativa da União (art. 22, XXIV) e o capítulo da educação na Constituição tem propiciado vários avanços no campo[14] e avanços que logo foram incorporados no capítulo de educação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) de 1992. Neste sentido, o ECA antecipa dispositivos que viriam a constar das diretrizes e bases. Contudo, era preciso elaborá-las para colocar a lei geral da educação à altura da Constituição e de modo mais pertinente ao conjunto do campo educacional. Por exemplo, era preciso acertar a nomenclatura das etapas do ensino, era preciso explicitar novos conceitos e prescrições postas na Constituição como direito público subjetivo, gestão democrática e conteúdos mínimos.
O Congresso Nacional tomou a iniciativa em propor, ainda em 1988, um projeto de lei referente às diretrizes e bases da educação nacional. As turbulências econômicas e políticas que atingiram tanto o governo Sarney como o governo Collor fizeram com que o projeto de lei não fosse tempestivamente apreciado. Esta apreciação começará a ganhar espessamento com o governo Itamar Franco e os esforços de seu ministro da Educação Murilo Hingel com apoio considerável de muitos educadores e especialistas.
Durante o mandato Itamar Franco, há tanto a extinção do Conselho Federal de Educação quanto a (re)criação do Conselho Nacional de Educação, órgão incumbido de normatizar as leis educacionais, e a determinação de uma avaliação externa a ser levada adiante no âmbito do ensino superior, com a chegada da Lei n. 4.024/61 com a redação dada pela lei n. 9.131/95.[15] Com isso, ressurge um órgão legal para interpretar as leis educacionais e propiciar a continuidade da ordem jurídica e capaz de arbitrar o andamento dos sistemas de educação.[16]
Ao mesmo tempo, estava em curso no mundo um clima propício à crítica ao Estado de Bem Estar Social. Cooperava com isto, de um lado, a queda do Muro de Berlim, o fim do socialismo real, as teses do fim da história e, de outro, as consequências da crise do petróleo. O capitalismo tomava outros rumos específicos questionando o papel do Estado na condução da economia e nos direitos sociais.
Neste quadro tramitava o processo de elaboração da nova LDB conducente à solução do caráter híbrido existente na lei ainda advinda do regime anterior e à conformação de coerência à CF/88. Tudo isto levava a uma complexidade que vinha tanto de uma história remota como recente. E, nesse processo, projetos distintos disputavam a hegemonia na explicitação de princípios gerais postos na Constituição.
Os dois projetos, tramitando pelo Congresso, disputaram, de modo vigoroso, o campo civil e parlamentar, sendo o projeto provindo da Câmara bem mais analítico e o outro, advindo do Senado, bastante sintético. A medida do calor de ambos tinha como referência a maior ou menor intervenção do Estado na educação escolar, seja na administração pública, seja no segmento privado. O projeto analítico, criticado por ser detalhado, se contrapunha ao sintético, criticado por ser genérico e liberal. E esse calor subiu mais quando o governo eleito em 1994 e empossado em 1995 fez uma opção pelo projeto sintético, aderindo às teses da diminuição da presença do Estado em vários campos de atividade.
Contudo, o capítulo da educação na Constituição constituiu-se como uma espécie de regulador, cujo conteúdo permanente tornou, no caso da educação, mais limitado tanto o impacto das políticas mais afeitas ao Estado Mínimo, quanto a consciência do caráter federativo da República.
Vinte Anos da lei n. 9.394/96
A redação final da LDB, obediente por princípio à CF/88, teve uma sofrida solução com a sanção da Lei n. 9.394/96 tornando-se, de fato e de obrigação legal, um campo obrigatório de referência educacional.
A opção pelo projeto sintético, ainda que jungido de aspectos provindos do projeto analítico, se deu também dentro de uma educação escolar nacional complexa (para efeito de sua administração, gestão, financiamento e controle)[17]. O próprio Darcy Ribeiro (1997) o atesta:
…o Senado aprovou um texto enxuto, libertário e renovador. A Câmara dos Deputados o acolheu quase inteiro e até melhorou com emendas…(p. 9)
E em outro trecho, ele se expressa:
A nova LDB muda muita coisa, porém o faz mais incentivando transformações nos vários níveis de ensino do que ordenando rigidamente normas estatutárias. Os sistemas estaduais de educação são fortalecidos e incentivados a ir adaptando a educação em seus Estados às prescrições da lei mas fazendo com respeito às próprias tradições e singularidades. (p. 10)
Darcy Ribeiro confirma a dinâmica da flexibilidade e agora também a da avaliação.
A nova lei determina, ainda, que o Ministério da Educação organize sistemas regulares de avaliação da qualidade do ensino para os cursos primário, médio e superior. A inexistência dessas avaliações gerais era uma das carências maiores do nosso sistema nacional de educação. Ela permitirá rever periodicamente as autorizações de licença da docência dadas a várias instituições de educação, inclusive para universidades. (p. 11)
A LDB aprovada, segundo Cury (1997) se calca em dois eixos: flexibilidade e avaliação.[18]
Contudo, a recenticidade da lei, sua escritura algo diferentes da lei. n. 5.692/71 e da lei n. 5.540/68, junto com imprecisões terminológicas, reforçaram a necessidade de uma hermenêutica que viabilizasse o novo texto legal.[19]
Essas dificuldades, associadas à inevitável postulação de grupos interessados em alterar aspectos específicos da lei recém – aprovada, conduziram, nesses vinte anos, a mais de 40 alterações sob a forma de leis no corpo legal da lei então sancionada. Aliás, a primeira alteração, anunciada até no dia da sanção, foi a do artigo 33 relativo ao ensino religioso, já em 1997.
Desse modo, no interior dessas 40 leis, habitam 178 mudanças inclusive com alterações das alterações[20], antes do Projeto de lei de Conversão n. 34/16. Este projeto, já aprovado pelo Senado, em 8/2/2017 traz 41 alterações significativas no que se refere ao ensino médio e também em outros artigos da lei. Ela foi e tem sido objeto de muito debate. É a única alteração ocorrida na LDB por meio de uma Medida Provisória.
São 47 Decretos regulamentadores. Se somarmos as leis (40) com os decretos (47) temos um total de 87 alterações. Se tomarmos o conjunto das alterações processadas pelas 40 leis mais os decretos, teremos uma soma de 225 alterações.
Uma tal quantidade de alterações (87), praticamente 89% do texto, conquanto possível em qualquer lei, é indicativa de que algo poderia ter sido melhor redigido na versão original. Mas se considerarmos as 178 alterações legais com o seu impacto sobre os artigos, teremos 193% de mudanças. [21]
São mudanças de toda a ordem: acréscimo de componente curriculares, ampliação da obrigatoriedade, introdução de dias comemorativos, redefinição da educação profissional, conceituação de profissional da educação, entre outros.
Um ponto a ser destacado na LDB é a maior consciência e presença do direito à educação infantil e o direito à diferença. A LDB, apoiada na Constituição, passou a reconhecer, diria Bobbio (1992) direitos de especificação tais como os relativos às fases da vida, às pessoas com deficiência, às populações indígenas e negras entre outros.[22]
Além disso, há que se assinalar outras leis concorrentes e complementares à própria educação escolar derivadas ou não de emenda constitucional passaram a ser de domínio conexo. No primeiro caso, pode-se citar, como paralelas e concorrentes à LDBEN, também as leis n. 10.436/02 (língua de Libras), a 11.161/05 (língua espanhola)[23] e a lei n.11.738/2008 do piso salarial profissional nacional dos professorado do magistério público da educação básica.
Relativamente ao Ensino Superior temos a Lei do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, lei n. 10.861/04 (Lei do SINAES) que redefine artigos da Lei n. 9.131/95 e tem o seu complemento na Portaria MEC n. 2.051/04 regulamentando a figura do Conselho Nacional da Avaliação da Educação Superior(CONAES). A Lei n. 11.096/05 do Programa Universidade para Todos (PROUNI) e suas respectivas regulamentações por Portaria ou Decreto também significam uma alteração significativa nas relações público/privado. A Portaria MEC n. 2.051/04 regulamenta a lei do SINAES e o Decreto n. 5.245/04 regulamenta o PROUNI.
É importante ressaltar a significativa normatização desses assuntos no Conselho Nacional de Educação. Mediante Pareceres e Resoluções, o CNE, de certo modo, “pavimentou” a chegada da lei para o âmbito nacional naquilo que são suas atribuições.[24]
Mediante o Decreto 6.096, de 24 de abril de 2007, com o objetivo de dar às instituições condições de expandir o acesso e garantir condições de permanência no Ensino Superior, foi criado o Programa do Governo Federal de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (REUNI).
Ao lado da ampliação do acesso, com o melhor aproveitamento da estrutura física e do aumento do contingente de recursos humanos existente nas universidades federais, está também a preocupação de garantir a qualidade da graduação da educação pública.
Paralelamente, um esforço para criar um marco regulatório no âmbito da inovação tecnológica, por meio de incentivos relativos ao ambiente produtivo, foi a aprovação da Lei n. 10.973/04.[25]
Tangente à pós-graduação, deve-se destacar a existência do Plano Nacional de Pós-Graduação: 2005-2010 e do de 2011-2020.
Em virtude da emenda 14/96, a do FUNDEF foram modificados artigos importantes do capitulo da educação da Constituição Federal. Do conjunto dessa emenda procedeu a Lei n. 9.424/96 sancionada a 24 de dezembro de 1996, publicada no Diário Oficial de 26/12/1996, mais conhecida como a Lei do FUNDEF.
A lei do FUNDEF, para efeito de políticas educacionais do ensino fundamental, em matéria de financiamento, teve um impacto tão grande ou maior do que a própria LDB. Afinal, ela tange ao mesmo tempo o pacto federativo e o sistema de financiamento do ensino obrigatório seja pela sub-vinculação, seja pelo maior controle dos recursos destinados à manutenção e desenvolvimento da educação.
Já em respeito ao art. 214 da Constituição, teve-se a Lei n. 10.172/01, mais conhecida como Plano Nacional de Educação (PNE). Sua tramitação revelou a reedição da concepção de participação dos dois projetos: o do executivo, mais sintético, menos abrangente e mais restrito na sua elaboração, e o da sociedade civil mais analítico,mais abrangente que contou com ampla participação em especial a partir dos Fóruns Estaduais e do Fórum Nacional em defesa da Escola Pública.. A lei aprovada no Congresso, a rigor uma expressão continuada da LDBEN em matéria de metas, objetivos e financiamento, apresentou um realismo no diagnóstico da educação nacional e teve sua eficácia dependente, em maior parte, do financiamento. Contudo, esse último ponto, ao ser sancionada a lei, sofreu vetos presidenciais. Eles significaram uma perda substantiva quanto ao caráter obrigatório do Plano podendo-se dizer que ele, praticamente, se tornou um Plano declaratório.
A emenda constitucional n. 53/2006, ainda sobre o art. 214 da Constituição, substituiu a emenda 14/96 e cria o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e cuja lei regulamentadora é lei n. 11.494/2007. Ambas com grande impacto sobre o conjunto da educação básica.
Mais recentemente, em 11 de novembro de 2009, o Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional 59. Esta trouxe importantes modificações no capítulo da Educação da Constituição da República de 1988. Por meio dessas alterações, a educação básica obrigatória e gratuita passou a vigorar como direito público subjetivo para faixa etária de 4 a 17 anos, o atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, deve contar com os vários programas suplementares como material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.
Por outro lado, o art. 214, ora emendado pelo mesmo dispositivo supracitado, estabeleceu, em seu inciso VI, que a meta de aplicação de recursos públicos em educação deverá ter o Produto Interno Bruto (PIB) como referência proporcional. Tal medida confere com a ampliação de responsabilidades por parte dos entes federativos, especialmente com a da faixa etária ínsita na emenda. Ora, em função disso tudo, a universalização do ensino obrigatório deverá contar necessariamente com formas de colaboração entre todos os sistemas de ensino dos entes federativos.
Mais do que isto, os sistemas existentes contarão doravante com um inédito sistema nacional de educação. Esse desfecho, inédito em nossa história da educação, patenteia uma realidade que, embora latente, jamais havia sido explicitada em nossa evolução de políticas públicas. Tal desfecho comunga com vários dispositivos da Constituição de 1988, da legislação infraconstitucional, especificamente com a aprovação da lei n. 13.005/2014 e com o anseio de muitos educadores que viam nesse sistema o aumento do asseguramento e da garantia do direito à educação.
Pode-se afirmar, doravante, o sistema nacional de educação existe como conceito e como positivação jurídica. Ou seja, após sua tramitação, aprovação e sanção de acordo com o processo legislativo, o sistema nacional de educação passou a existir juridicamente e, vigente e em vigor, se torna de observância obrigatória, dado que aprovado por amplo consenso nas casas legislativas do Congresso Nacional.
A LDB Desafiada.
Muitas foram também as avaliações relativas ao texto final da Lei com copiosa bibliografia a respeito.[26]
Ao lado dessa literatura, seria importante analisar a atuação de sujeitos coletivos, impossível no espaço desse esboço, como a do Conselho dos Secretários Estaduais de Educação (CONSED), o da União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), o do Fórum dos Conselhos Estaduais de Educação e a da União dos Conselhos Municipais de Educação. Muitos outros sujeitos também se puseram a campo a fim de discutir os projetos e sugerir alternativas como é o caso dos Fóruns Estaduais em prol do Ensino Público, do Fórum Nacional do Ensino Público, da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, de associações profissionais de docentes, associações científicas, organizações não-governamentais e pesquisadores.[27]
Um primeiro desafio é a congruência do SNE com a LDB. Afinal, se o Sistema já existe por mandamento constitucional, em que ele realmente consiste ? A pergunta que se faz, nesse momento, à vista do art. 13 da lei n. 13.005/2014, é: qual é ou será sua composição/organização para que a consistência tenha a devida eficácia ? pois a eficácia, complementar à vigência, é tanto aquela que produz efeitos jurídicos mediante regulamentações de situações pertinentes ao assunto, como aquela denominada de efetividade que outra coisa não é senão a realização da norma em termos de sua concretude sociopolítica. O valor proclamado e positivado como dever ser (existir), então, torna-se um ponto de partida de valor afim de que se aproxime ou mesmo se confunda com o valor consistente no ser da realidade (consistir).
Nesta lei, há a criação de uma nova arena educacional do regime de cooperação, estabelecida pelo § 5o do art. 7o da lei n. 13.005/14: a instância permanente de negociação e cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.Entre coisas outras desta novel instância cabe pactuar entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios…a implantação dos direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configurarão a base nacional comum curricular do ensino fundamental. O mesmo se dá com o ensino médio e com a qualidade.
Outro desafio é o da sustentabilidade financeira do Plano.Há a tormentosa questão do financiamento a qual, se em tempos de bonança econômica já era complexa, em tempos de crise, além de complexa se torna complicada.[28]
A referência ao PIB (chegar aos 10% em dois tempos) é muito clara na emenda constitucional e na própria lei n. 13.005/2014.[29] Tal sustentabilidade é crucial. Esta cláusula constitucional é condição de possibilidade para sucesso do PNE. Sua não efetivação será mais um retorno ao fracasso dos PNE passados (1936/37; 1961/62 e 2001-2011).[30]
Entretanto é preciso fazer uma anatomia do que significa Produto Interno Bruto (PIB). O PIB é um indicador macroeconômico medindo o crescimento (ou não) da atividade econômica de um território ou de uma região.[31] Neste sentido, ele pode variar muito para cima ou para baixo de um ano para outro. Mas fique claro que PIB não é moeda, mas referência de atividade econômica.[32]
E, até por relação direta com este desafio, outro, urgente e difícil, e de responsabilidade final do Conselho Nacional de Educação: a elaboração do Parecer e da Resolução referidos à Base Nacional Comum Curricular. Este dever promana diretamente da LDB e da lei n. 13.005/2014 na meta 2, estratégia 2.1; meta 3, estratégia 3.2 e meta 7, estratégia 7.1.
Como se sabe o currículo não é um campo neutro. Ele é uma campo de disputas. Na história dos Conselhos, a eles foi atribuída a tarefa de estabelecer a ordo sub lege deste terreno essencial da educação. Se até 1988, todas as Resoluções relativas a esta matéria foram decididas à luz do currículo mínimo, após 1996 coube ao Conselho o estabelecimento de diretrizes para os componentes curriculares.
Ora, direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento próprios da BNCC, se apresentam como um tertius datur, entre a rigidez de um currículo estabelecido desde a mais remota tradição legal e a amplitude das diretrizes curriculares nacionais.
Os direitos de aprendizagem e desenvolvimento apelam para o finalismo da cidadania e dos direitos humanos. Os objetivos já descem para um plano mais próximo do que se espera das etapas e modalidades da educação em termos de aprendizagem e de seu desenvolvimento.
Tarefa árdua, difícil, especialmente quando se sabe que o Brasil desenvolveu uma comunidade de especialistas em currículo, abriu a base nacional comum curricular para a consulta pública, ampliando o campo de disputas.
E aqui se situa a reflexão sobre os vinte anos da LDB com todas as mudanças e alterações que ela teve. Vale a pena discutir e propor seu redesenho ? Com o Congresso que temos, com o governo existente, limitado no tempo de um mandato-tampão, esquecido do financiamento da educação estabelecido no PNE, reabrir a LDB para refazê-la não seria abrir uma “caixinha de pandora” ?
Eis que agora surge a Medida Provisória n. 746 de 22 de setembro de 2016, hoje PLS 34/16, alterando substancialmente o formato do ensino médio, seja na carga horária mínima, seja no currículo, seja na articulação com a educação profissional. Mais do que isto, inclui pessoas com “notório saber” para ministrarem conteúdos da educação profissional e altera a lei do FUNDEB.
A Medida Provisória é um ato vertical do Poder Executivos que deve ter as características de urgência e relevância a fim de enfrentar situações emergentes. Que o ensino médio seja relevante, não há dúvida. Mas qual a urgência desta etapa ? não é urgente a disseminação das creches ? não é urgente uma avaliação profunda do segundo ciclo do ensino fundamental ? Mas sobretudo, esta urgência não foi enfrentada por lei, pela lei do Plano Nacional de Educação ? Não é esta lei a que deveria conduzir a reforma do ensino médio à luz dos pressupostos do PNE e de sua meta 3 com as respectivas estratégias ? Não seria o caso de acionar o Conselho Nacional de Educação para o enfrentamento da alteração do ensino médio ? Mais do que isto, os princípios da LDB e as metas do PNE correm o risco de naufragar com a aplicação mínima dos recursos advindos dos impostos vinculados, justamente quando se tem a ampliação da faixa etária e quando se postula uma educação de qualidade.
Conclusão:
Apesar de vários avanços alcançados, estes ainda não foram suficientes para cumprir os dispositivos constitucionais e legais de nosso ordenamento jurídico. A realidade educacional continua apresentando um quadro severo muito aquém dos benefícios que a educação desencadeia para o conjunto social e se encontra longe das promessas democráticas que ela encerra.
A LDB e o PNE nos põem diante de um desafio instaurador de um processo que amplia a democracia e educa para a cidadania, rejuvenesce a sociedade e irriga a economia.
Estamos diante da necessidade de uma saída urgente para uma educação de qualidade. Uma saída que obedeça aos ditames da razão que a educação inaugura. O Estado que não assume essa via decreta sua perdição. A Sociedade que não busca essa saída aceita a autoridade da submissão e refuga o caminho da autonomia.
Para sair de uma condição que nos constrange, em vários aspectos, a um confinamento educacional próprio do século 19, é preciso que a Sociedade e o Estado pactuem um novo esforço em prol da educação sem o qual não ultrapassaremos os limites dos avanços até agora celebrados. O futuro não espera! Só uma política de Estado, cuja expressão maior são a LDB e o PNE, que presentifique o potencial da educação será capaz de superar as contradições e as barreiras que impedem a construção de uma democracia mais ampla.
Se quisermos associar democracia e modernidade, ou o país como um todo toma a decisão inadiável e necessária de priorizar a educação básica, tornando a efetiva como tarefa inadiável à luz do PNE ou perderemos, todos, a velocidade da História.
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[1] Cf. Buffa, 1979; Martins, 1976; Villalobos, 1969
[2] Cf. Oliveira, 1996; Cury, 1978 ; Cury 1998
[3] Cf. Saviani, 2011, especialmente pgs. 119-130; Chizzotti, 1996
[4] Cf. Barros. 2016. Importante aqui a distinção entre escravos e negros libertos ou mesmo as pessoas após a lei do Ventre Livre. Mas não era interdito aso escravos o acesso às letras por vias não oficiais como irmandades e iniciativas autônomas. Por outro lado, muitos membros das oligarquias propiciavam educação escolar doméstica a seus filho. Cf. Vasconcelos, 2004
[5] Um Decreto de Dom João VI, assinado em 28 de Junho de 1821, publicado no dia 30 do mesmo mês, permitia a qualquer cidadão o ensino e abertura Escolas de primeiras letras, em qualquer parte deste Reino, quer seja gratuitamente, quer por ajuste dos interessados, sem dependência de exame ou de alguma licença… Será com a Reforma Couto Ferraz que o ensino privado passa a ser autorizado pelo poder público.
[6] Nas Constituições Estaduais de 1892 apenas São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina e Goiás adotaram a gratuidade associada à obrigatoriedade na instrução primária.
[7] Cf. Nagle, 1974
[8] Cury, 2013.
[9] HORTA, 1994
[10] Sobre esta Conferência, cf. Nagle, 1974
[11] Saviani, 1978; Villalobos, 1969;
[12] A vinculação retornou apenas para os Municípios, na emenda da Junta Militar de 1969, e fora do capítulo da educação, ou seja, no art. 15, §3º, letra f.
[13] A denominação ensino primário na Carta de 1967 se converterá em ensino de primeiro grau na lei n. 5.692/71.
[14] Cf. Ranieri, 2000
[15] Cf. MedidaProvisória n. 661 de 18/10/1994 e seguintesaté à MP n. 1126 convertida na Lei n. 9131/95.
[16]Menos do queantecipar a LDB, a lei n. 9.131/95 foi uma espécie de lei-ponte do tipo regulamentação préviadentro de uma previsibilidade de que o projetosintético seria aprovado.
[17] A referênciaaqui é à complexidade nãosó de umpaíscontinental e culturalmente diverso, comotambém dos delineamentos do pacto federativo.
[18] Cf. Cury, 1997, especialmente às pp. 98 – 111 em que se opõe flexibilidade à precariedade e avaliação de produto à avaliação de produto considerando o processo.
[19] Atribuem-se taisimprecisões ao afã de prestigiaremvida o antropólogo Darcy Ribeiro, autor do projeto do Senado. Coube ao Conselho Nacional de Educação regulamentar esta nova legislação por meio de Pareceres e Resoluções. Esta atividade normativa importa muito na interpretação da lei e na sua aplicação normatizada.
[20] Saviani (2016) dedica todo o capítulo quarto a estas modificações.
[21]Essevolume de alterações parece indicarumprocessocontínuo, quasequepermanente, de atividade propriamente legiferante de educaçãodevido ao própriocarátersintético da LDBEN aprovada. Isso obriga os executivos, emrotatividadepolítica, a alterar o ordenamento legalparapoderlevaradianteprogramas de governo. Cf. Couto, 1997. A Medida Provisória 476/2016, a do ensino médio, é mais uma continuidade da descontinuidade e isto quando se tem um Plano Nacional de Educação recém aprovado.
[22] Cf. Parecer CNE/CEB 17/01, Res. 02/2001 e Res. CNE/CEB 01/04 e CURY, 2005.
[23] Esta lei está revogada pela MP 746/2016
[24] Ainda não há um levantamento mais consistente do papel exercido pelos Conselhos Estaduais e Conselhos Municipais na “pavimentação” estadual e municipal desta mediante seus pareceres e resoluções dentro de suas competências.
[25]Em 15/10/06, o Executivo encaminhou ao Congressoprojeto de leique altera e promove a lei de incentivosfiscais, lei n. 11.196/05, beneficiando as pessoas jurídicas que aplicarem empesquisas científicas e tecnológicas de acordocom a lei n. 10.973/04.
[26] Cf. Castro 1998; Cury, 1997 e 2000; Demo, 1997; Frauches (org), 2000; Catani e Oliveira, 2.000 , Brzezinski (org.) 2003, Saviani, 2016 e Palma Filho (2005), entreoutros.
[27]Entrevistascomatores privilegiados, nesse processo, ainda estão por serem feitas.
[28] O projeto Emenda Constitucional n. 241, já provada em segundo turno pela Câmara, embora não desconstitucionalize o art. 212, implica em limites severos à função redistributiva e supletiva deste mesmo artigo impondo, praticamente, a reversão da meta 20 do PNE.
[29] Na tramitação da lei e mesmo da emenda constitucional, este foi o ponto mais discutido e até hoje é motivo de debates.
[30] A PEC 241/26, atualmente em discussão, busca congelar os recursos da educação aos mínimos constitucionais. Com isto a referência ao PIB confrontará a emenda 59/09 a uma outra emenda, caso a PEC venha a ser aprovada. De todo o modo, a ampliação da obrigatoriedade e outras metas e estratégias decorrentes estão em perigo de virem a se tornar letra morta. Com isto, mais uma vez o PNE tornar-se-á um texto sem força.
[31] O PIB – 2014 no Brasil foi de 5,52 trilhões, sendo o PIB per capita de 27.230,00.
[32] Neste momento crucial de nossa história política, na vigência tampão de um governo até 2018, as perspectivas são nebulosas. Já houve propostas sugerindo o retorno da desvinculação dos recursos da União (DRU) como o texto denominado “ponte para o futuro” em que a desvinculação total é anunciada. O passado da desvinculação (1937-1945; 1967- 1983) é simplesmente uma retrogradação na manutenção e desenvolvimento da educação em todos os sentidos. A experiência não recomenda.