Discurso de Posse do Acadêmico José Mário Pires Azanha
ACADEMIA PAULISTA DE EDUCAÇÃO
Discurso de Posse do Acadêmico Titular
JOSÉ MÁRIO PIRES AZANHA
(Não dispomos da íntegra do discurso completo do Acadêmico José Mário Pires Azanha. No entanto, esta parte, em que faz o elogio do Patrono da Cadeira nº 19, em que estava sendo empossado, vale por si mesma e decidimos publicá-la).
A vida pessoal e pública do Doutor Carlos Pasquale foi extremamente simples. Nasceu em Piracicaba, em 1906, fez seus estudos primários no Grupo Escolar da Consolação, em São Paulo, e aqui também fez os estudos secundários no famoso Ginásio do Estado. Por influência do pai, formou-se médico na então Faculdade de Medicina de Pinheiros, em 1931.
Ainda estudante lecionou Química e Ciências Físicas e Biológicas no Ginásio do Estado, no São Bento, no Oswaldo Cruz e no Paulistano, do qual acabou sendo coproprietário e diretor. Os estudos médicos o detiveram apenas até que completasse seu doutoramento no ano seguinte ao da formatura (1932). Daí para frente, até sua morte súbita, em 1970, dedicou-se inteiramente à educação, na docência e na administração, nas esferas particular e pública, nas quais chegou a ocupar altos cargos. Casou-se e teve duas filhas.
Essa é a singela trajetória da vida de Carlos Pasquale. Nenhum lance dramático, nenhum profundo drama pessoal que o distinguisse de tantos outros homens de sua época, nenhum escrito notável que perpetue a sua memória.
No entanto, estamos aqui, há quase trinta anos de sua morte, para render-lhe homenagens, numa sessão da Academia Paulista de Educação. Quais as razões para isso?
Antes de tentar responder a esta pergunta, cabe-me esclarecer que — tendo sido escolhido para saudar Carlos Pasquale — sinto-me como o verdadeiro homenageado, pela honra de falar de tão notável figura de homem e de educador.
Tive o privilégio de conviver com Carlos Pasquale durante os anos de 64 a 66, nos quais ele ocupou a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP). Essa instituição, na época, mantinha um convênio com a Universidade de São Paulo para manutenção do extinto Centro Regional de Pesquisas Educacionais “Professor Queiroz Filho”. Na qualidade de pesquisador nessa instituição, cabia-me coordenar o Programa de Assistência Técnica nos Estados do Norte e Nordeste (PATE), mantido com recursos federais e vinculado ao INEP. Esse Programa se iniciara em 1962 para uma duração prevista até o final de 1963, mas pelo entusiasmo e pelo empenho do Professor Laerte Ramos de Carvalho, então Diretor do CRPE, o INEP deu continuidade ao Programa por alguns anos mais. Como o PATE mantinha equipes técnicas em quase todos estados do Norte e Nordeste, o Doutor Carlos Pasquale resolveu associá-lo a dois empreendimentos que ele se propusera na direção do INEP: a feitura do primeiro Censo Escolar Nacional, iniciado em 3/11/64, e a elaboração do Anuário Brasileiro de Educação, 1964. Principalmente por causa dessas atividades, convivi com o Doutor Carlos Pasquale, pelo menos dois ou três dias por semana, aqui em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nessa convivência, tive oportunidade de algumas observações cuja lembrança retive como lições de vida. Quero referir-me a três delas.
Nas suas viagens de ida ao Rio, onde era a sede do INEP, ele pagava sua estada no hotel e as passagens do próprio bolso. Tendo testemunhado esse gesto em várias oportunidades, numa delas perguntei-lhe a razão, pois as viagens eram a serviço. Ele respondeu-me que a sede do órgão que dirigia era no Rio e residir em São Paulo era um problema particular dele. “Não posso dar ao INEP um duplo prejuízo: o da ausência eventual e o financeiro”, disse-me ele. Parece-me que nestes tempos, em que viajar em férias com a família, às custas do erário público, vai se tornando banal, o “episódio encerra uma lição lúcida e forte”, como diria Eça de Queiroz.
Outra lembrança. Quando fui convocado ao Rio para tomar conhecimento dos formulários por meio dos quais seria feito o imenso levantamento de dados para composição do Anuário Brasileiro de Educação, tive oportunidade de assinalar muitos defeitos que poderiam comprometer a confiabilidade das informações. Doutor Pasquale aceitou as críticas e atribuiu ao CRPE de São Paulo a refeitura dos formulários, enfrentando com isso desagradáveis questões de relacionamento com o pessoal do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, até então responsável pelo trabalho. Parece-me que o episódio, marca de humildade e responsabilidade científicas no recebimento de críticas e de coragem pública na correção de erros, é exemplo de que as iniciativas em educação, conduzidas com desinteressado espírito público, não são compatíveis com a autossuficiência e a arrogância.
Uma última lembrança. Talvez a mais importante. Carlos Pasquale sucedeu a Anísio Teixeira na Direção do INEP, no difícil ano de 1964. Desse fato, quero registrar aqui o depoimento de Péricles Madureira do Pinho, íntimo amigo e colaborador de Anísio Teixeira:
“Passo a depor sobre o que foi a atuação de Carlos Pasquale no INEP, substituindo nosso grande companheiro Anísio Teixeira. Naquele grave momento da vida brasileira, Carlos Pasquale representou a prudência, a lucidez, o equilíbrio. Num dos mais altos postos da educação brasileira, desde o seu discurso de posse, identificou-se com o espírito do órgão modelado pelo seu eminente antecessor, e passou a trabalhar lado a lado com todos nós os veteranos da casa, mais companheiro nosso do que chefe.
Sua atuação foi durante dois anos a de um homem de trabalho, interessado apenas nas suas tarefas, na missão a cumprir. Surpreendeu os que não o conheciam, confirmou seu passado e foi com todas as letras um homem de bem”. (Documenta, 117, ago. 1970, p. 25).
A esse depoimento, quero apenas acrescentar uma observação que ouvi do Doutor Pasquale, quando ele disse que não podia permitir que a inveja e o ódio, que movimentaram órgãos de segurança, alcançassem um homem como Anísio Teixeira. Acrescentou ainda que embora divergisse de Anísio em questões ideológicas respeitava a sua obra em prol da educação brasileira. O depoimento de Péricles Madureira foi uma clara demonstração de que esse respeito se traduziu na sua própria ação na Direção do INEP.
Ainda nesse órgão, Carlos Pasquale promoveu a 1ª e a 2ª Conferências Nacionais de Educação, respectivamente, em Brasília (1965) e em Porto Alegre (1966); na 1ª levou a posição do INEP a respeito da necessidade de reformulação do Plano Nacional de Educação de 1962, em face da instituição do salário-educação. No fundo, a revisão — apesar da época — “teve um caráter fortemente descentralizador e incluiu normas tendentes a estimular a elaboração dos planos estaduais”; na 2ª conferência, o INEP propôs uma reformulação das normas referentes à formação e aperfeiçoamento de professores para o ensino primário em face da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961. O projeto do INEP sobre a temática foi em grande parte aprovado na forma de recomendações que, ainda hoje, poderiam orientar e inspirar ações sobre o problema. Embora os tempos de exceção facilitassem a imposição de novas normas a partir dos órgãos centrais, Carlos Pasquale preferiu a discussão e simples recomendações, na linha do que os educadores de então pensavam sobre o assunto. Na questão do aperfeiçoamento houve apenas a proposição de um conjunto de sugestões de ação, a serem compatibilizadas com as condições regionais e locais. Nada que remotamente se assemelhasse à pirotecnia paramétrica dos dias de hoje, que desconhecem a variedade imensa das situações educacionais na busca de soluções centralmente unificadas e com pretensões de avanços que se resumem, no mais das vezes, a simples importação de um jargão pseudo-científico.
Aliás, Carlos Pasquale sempre afirmou que o êxito de uma escola ou de um sistema público de educação depende de um tripé: corpo docente, direção e condições materiais. No entanto, dizia ele, apenas é possível interferir plenamente na formação docente e na provisão de recursos, porque na direção intervêm fatores de difícil controle que são a capacidade de liderança pessoal e os interesses políticos. Coerentemente com essa visão ele investiu na melhoria das condições do trabalho docente e em mecanismos de provisão de recursos e, neste último ponto, seu feito maior foi a criação do salário-educação, instituído pela Lei n° 4.440/64, cuja ideia acabou incorporada à Constituição Federal de 1988.
Embora entendesse que na gestão de escola ou de sistemas interferem fatores psicológicos e políticos, procurou sempre promover eventos ou apoiar iniciativas que contribuíssem para um melhor conhecimento da realidade educacional brasileira que atenuasse os efeitos daqueles fatores. Daí o apoio ao Programa de Assistência Técnica aos Estados do Norte e Nordeste, a instituição das Conferências Nacionais de Educação, a realização do Censo Escolar, a publicação do Anuário Brasileiro de Educação, os Colóquios Regionais sobre os Sistemas de Ensino (em colaboração com a UNESCO), a publicação de Conferências Interamericanas de Educação, etc.
Uma de suas últimas contribuições para a educação nacional foi a elaboração de uma emenda que incorporou ao projeto de reforma do ensino primário e médio a escolaridade fundamental de oito anos, “solução em favor da qual ele batalhava anos seguidos, vendo-a desde há dois adotada no seu Estado natal” pela Administração Ulhoa Cintra. (Esther de Figueiredo Ferraz, Documenta, n° 117, 1970, p. 25).
Não pretendo estender-me mais sobre iniciativas de Carlos Pasquale para não ser superficial em pontos que exigiriam profundidade de análise.
Quero apenas assinalar um traço de seu caráter que é essencial para compreender plenamente a importância desse homem no panorama da educação brasileira.
Esse traço foi muito bem assinalado por Esther de Figueiredo Ferraz, na homenagem que lhe prestou, no Conselho Federal de Educação, na ocasião de sua morte. Disse ela:
“O importante em Carlos Pasquale não era tanto o que ele fazia, mas como o fazia. Jamais encontrarei em minha vida quem se entregasse à sua obra com tamanho entusiasmo, tão grande ardor, com uma paixão que lhe tornava breves como segundos os dias inteiros consagrados ao estudo e à solução de um problema”. (op. cit. p. 13)
Ele foi realmente um homem apaixonado. E sem a marca da paixão nada se faz de grande em educação. A sua paixão, contudo, não era pela projeção pessoal nem pelos ouropéis que acompanham as posições de poder. A ele pode-se aplicar o que Platão escreveu sobre a educação dos governantes, no capítulo VII da República:
“Se, porém, os mendigos e os esfomeados de bens pessoais entram nos negócios públicos, pensando que é daí que devem arrebatar o seu benefício, não é possível que sejam bem administrados. (…) Ora, a verdade é que convém que vão para o poder aqueles que não estão enamorados dele; caso contrário, os rivais entrarão em combate”. (Platão – A República, cap. VII, 521ab)