Homenagem do Professor Francisco Aparecido Cordão no Dia Nacional do Professor – 15/10/2018
No Brasil, o Dia 15 de outubro, desde a publicação do Decreto nº 52.682 pelo Presidente João Goulart, em 14 de outubro de 1963, é considerado oficialmente como o Dia do Professor. A escolha dessa data como feriado escolar dedicado aos Professores, como Profissionais da Educação que atuam no Magistério em todos os níveis, modalidades e formas de ensino, vem marcada por um simbolismo especial. No dia 15 de outubro de 1827, na sequência da Proclamação da Independência do Brasil e da aprovação da primeira Constituição do Império Brasileiro, Dom Pedro I publicou um Decreto Imperial que acabou se tornando importante marco histórico da nossa Educação, na condição de primeira Lei Geral do Ensino Elementar no Brasil, determinando a criação de “Escolas de Primeiras Letras em todas as cidades, vilas e locais mais populosos do Império”. Em decorrência dessa decisão, o Estado Brasileiro acabou se obrigando a investir na formação desses “Professores das Primeiras Letras”, também chamados de “Mestres-escolas” e, assim, foram criados os primeiros Cursos Normais. Ao homenagear a Dona Cynira, minha primeira professora durante os três primeiros anos de escola, ainda na década de 1950, numa Escola Rural Multiseriada, estou trazendo à tona o trabalho dessas competentes e compromissadas normalistas, prestando um tributo a essas professoras de envergadura, como Dona Cynira, que fez grande diferença em minha educação pessoal.
Esta é a motivação principal de minha homenagem especial prestada no dia de hoje a as professoras e todos os Professores que realmente fazem a diferença na formação de seus educandos. Eu aprendi a ser educador com a ação dedicada e competente dessa Professora Normalista Cynira Gonçalves, minha primeira professora na Escola Multiseriada do Bairro dos Rochas, no Município de Avaré, na qual cursei os três primeiros anos do meu Ensino Primário. Foi nessa Escola Multiseriada que tomei gosto pelas atividades de ensino, na medida em que ia aprendendo. Ao ler agora o Decreto Imperial de 15 de outubro de 1817, percebo que a minha primeira professora normalista aplicava com maestria o método do “Ensino Mútuo”, conforme indicado naquele Ato Normativo. Assim, ela podia dar conta de sua tarefa educacional de instruir um conjunto de mais de trinta meninos e meninas em três séries do antigo Ensino Primário. O grande orgulho da Dona Cynira se materializava durante o mês de novembro de cada ano, quando o inspetor federal do ensino primário visitava a Escola Rural e fazia a avaliação oral de seus alunos, para verificar o nível da qualidade do aprendizado dos mesmos, apresentando-lhe seus cumprimentos pelo feito. Ela fazia questão de beijar a face de cada um dos seus alunos, em agradecimento pelo bom desempenho na frente do Inspetor de Ensino, o que demonstrava seu zelo pela aprendizagem de seus alunos. Ela procurava recuperar os seus alunos com maior dificuldade de aprendizagem diariamente, logo após o final das aulas, solicitando a contribuição dos alunos mais adiantados. Se preciso, ela pedia para os pais levarem seus filhos na casa dela nos finais de semana. O que ela não deixava era ele ou ela ficar para traz e deixar de acompanhar a sua turma. A Dona Cynira, como a chamávamos respeitosamente, não desistia de ninguém.
A Dona Cynira Gonçalves, nessa época, era uma jovem e bela professora primária, recém formada no Curso Normal do Instituto de Educação de Avaré. Zelosamente, utilizava o método da educação cooperativa ou do ensino mútuo, estimulando sempre os alunos mais adiantados a ensinar aos alunos menos adiantados. De uma forma ou de outra, éramos todos semi parentes. Assim, todos eram estimulados a ensinar aqueles que estavam aprendendo menos ou mesmo, que ainda não tinham aprendido o que tinha sido ensinado naquele dia ou naquela semana. Obviamente, sempre tinha gente que não ajudava ninguém. Esses eram sempre repreendidos carinhosamente pela Dona Cynira. Ela tentava sempre encontrar uma forma de envolve-los na tarefa solidária da cooperação com aqueles que tinham mais dificuldade de aprendizagem. A minha querida e saudosa Mãe, Dona Maria Leme cujo centenário de nascimento ocorre no corrente mês de outubro, muito zelosa em relação ao aprendizado dos filhos dela, sempre dava todo o apoio e esse comportamento da Dona Cynira, nos estimulando à permanente dedicação nos estudos. Ela sempre dizia que esta era a única saída para “aprender a ser gente” e que todo o esforço era para o nosso bem e por isso nos estimulava a ensinar tudo o que aprendia para os outros, a partir dela própria, que tinha pouca escolaridade. O fato é que, ao tentar compartilhar e ensinar o que aprendera aos seus colegas, a nossa aprendizagem ficava cada vez mais robusta e sólida, além de provocar uma sensível melhoria na nossa autoestima individual e social. Com isso, Dona Cynira sempre dava conta do recado de ensinar com sucesso.
Os seus alunos da primeira série do Ensino Primário, com todas as dificuldades que podem ser imaginadas nessas circunstâncias, aprendiam a ler e a escrever até o mês de outubro de cada ano. Na semana da celebração do Dia do Professor, os alunos da primeira série recebiam o primeiro Livro de Leitura Sodré, pois já estavam verdadeiramente alfabetizados. Essa data era marcada sempre com uma grande festa, com direito a refrigerantes e frango assado, para a qual praticamente todo o Bairro dos Rochas era convidado. Os alunos da primeira série eram convidados a mostrar para seus pais e demais convidados, publicamente, que já sabiam ler e escrever, mostrando aos seus pais o seu caderno e lendo, em voz alta, um pequeno texto, de acordo com o que havia sido treinado. Além disso, as famílias eram estimuladas a solicitar aos seus filhos e filhas que lessem para eles, mesmo que fosse à noite, à luz de velas, o que tinham aprendido durante aquele dia de aula. Obviamente, essa era a maneira que a Dona Cynira tinha encontrado para reforçar o aprendizado de seus pupilos diariamente, sempre que possível.
A mensagem da emocionada e competente Professora Normalista nesse dia de festa era sempre muito clara. Para mim foi muito emocionante ouvir isso pela primeira vez. Não esqueci nunca mais. Ouvia extasiado tudo isso, olhando para a minha mãe e para os meus parentes com muito orgulho. Nos anos seguintes essa mensagem era igualmente reforçada, para que todos se lembrassem dessa importante mensagem. A Dona Cynira fazia questão de repetir todos os anos mais ou menos o seguinte, de maneira muito direta, para que todos bem entendessem: “Agora um mundo novo se abre para vocês. Não há mais limites para o conhecimento de vocês. Mesmo que vocês nunca saiam do Bairro dos Rochas e dos limites do Município de Avaré, vocês poderão conhecer o mundo inteiro. Tudo pode ser conhecido por vocês por meio da leitura. Agora vocês não são mais cegos em relação ao conhecimento. Vocês podem conhecer tudo o que vocês quiserem saber. Para isso, basta que vocês tomem gosto pela leitura. Para tomar gosto pela leitura, entretanto, vocês precisam ler, ler e ler. Não podem ter preguiça de ler. Se tiverem preguiça de ler, não vão aprender e ficarão no prejuízo. Por isso mesmo, aconselho que vocês leiam tudo o que cair em suas mãos. O primeiro livro que vocês devem ler com muito carinho e com muita atenção é este Primeiro Livro de Leitura Sodré que vocês estão recebendo no dia de hoje. Ele deve ser lido várias vezes, da mesma maneira que vocês já fazem com a Cartilha Sodré em suas casas, para seus pais e parentes. Após vocês aprenderem a ler direitinho neste livro, muitos outros livros devem ser lidos. Nem sempre serão livros novos, pois estes podem ser muito caros para o bolso dos seus pais, ou mesmo de vocês, mais tarde. Também pode ser um livro velho e emprestado. Os livros podem ser velhos, mas aquilo que está escrito neles pode ser uma grande novidade para vocês, que estarão sempre aprendendo coisas novas. Todas as leituras que vocês fizerem estarão contribuindo muito para a aprendizagem de vocês, que estarão sempre aprendendo e ganhando uma fortuna que ninguém terá condição de tirar de vocês. Tudo o que vocês aprenderem estará enriquecendo a sabedoria de vocês. Só faço um pedido muito especial para todos vocês: Não guardem esse tesouro que vocês estão recebendo somente para vocês. Repartam essa riqueza com todo mundo. Contem suas descobertas para todas as pessoas que vocês puderem. Não sejam egoístas. Contem tudo principalmente para os teus pais e parentes, porque eles vão ficar muito contentes e orgulhosos ao conhecer tudo o que vocês estão aprendendo. Não deixem de dar essa alegria para eles. Sempre que vocês fizerem isto será muito bom para vocês e para eles. Sejam sempre solidários”.
A Dona Cynira era uma pessoa muito entusiasmada com o seu ato de ensinar e ela ficava sempre muito emocionada ao perceber o mínimo aprendizado dos seus alunos. Ela fazia questão de pedir para que seus alunos, sempre que possível, quando fossem à cidade procurassem fazer uma visitinha para ela para contar o que estavam aprendendo de novo, mesmo após deixarem de ser alunos dela. Quando ela recebia a visita de um ex-aluno, ela sempre o recebia com muito carinho e festa. No dia da entrega do Primeiro Livro de Leitura Sodré, entretanto, o entusiasmo da Dona Cynira parecia não ter fim. Assim, ela continuava a sua oração rimando com emoção: “Vocês vão perceber que o conhecimento não está só nos livros, os quais devem ser lidos cada vez mais, sem preguiça. É assim que vocês tomarão gosto pela leitura. Se isto acontecer, vocês não vão mais querer parar de ler livros e vão perceber que isto é muito bom. Vocês vão gostar muito quando isto acontecer. O conhecimento também pode ser encontrado revistas novas e velhas. Ainda podem ser encontrados em almanaques, daqueles que são distribuídos nas farmácias, ou mesmo em jornais, como aqueles que embrulham as coisas que são compradas pelos seus pais na cidade. Aproveitem tudo isto como fonte preciosa para vocês adquirirem novos conhecimentos, para vocês aprenderem mais, para vocês saberem cada vez mais de tudo aquilo que vocês quiserem saber. Não existe limite para o enriquecimento do saber de vocês. O limite é aquele que vocês colocarem para vocês mesmos. Pelo amor de Deus, leiam tudo o que cair nas mãos de vocês. Eu acho que tudo tem que ser lido. Qualquer coisa. Mais do que isso: Tudo o que lerem de interessante contem para os outros. É muito importante dar oportunidade para que os seus coleguinhas também possam ler tudo o que vocês leram e acharam interessante. Contem também para os seus pais e parentes. Não guardem o conhecimento que vocês estão conhecendo só para vocês. Aprendam a dividir com os outros tudo aquilo que é bom e útil para o crescimento de vocês. Por isso mesmo, durante todo o tempo no qual vocês continuarem sendo meus alunos, a partir de hoje, como já estão fazendo os seus colegas mais antigos na escola, farei questão absoluta, valendo ponto para somar à nota mensal, que vocês me entreguem toda segunda feira, inicialmente, ao menos uma frase e depois uma página daquilo que vocês leram e aprenderam na semana. Faço isto porque entendo que vocês não devem se dedicar apenas na aprendizagem da leitura, mas também da escrita. Acostumem a escrever aquilo de que vocês estão aprendendo para que vocês não esqueçam. Não confiem apenas em guardar seus novos conhecimentos na memória. Aprendam a escrever o que vocês estão aprendendo, para poder usar esse conhecimento depois, quando precisarem. Faço votos para que vocês, a partir de hoje, abram os olhos para conhecer muito, cada vez mais. Não desperdicem esta oportunidade de ouro e esta riqueza que vocês estão recebendo aqui na escola e que deverá ser aprimorada, para que vocês continuem aprendendo ao longo da vida de vocês. Esta nova aprendizagem depende apenas da força de vontade de cada um de vocês”.
Se não foi exatamente isto o que ouvi da Dona Cynira naquele dia no qual, muito emocionado, eu recebi o meu Primeiro Livro de Leitura Sodré, foi exatamente isto que veio à minha memória no dia de hoje, olhando para a foto de Dona Cynira, que se encontra em meu escritório de trabalho. Pedi muito para que ela, onde estivesse, em seu descanso eterno na Casa do Pai, me inspirasse nesta escrita. Essa foto que estou anexando ao meu texto, foi tirada pela minha querida esposa Salete, também competente Professora Normalista e brilhante Alfabetizadora (eu a conheci, alfabetizando crianças, jovens e adultos em Juquiá, no Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do rico Estado de São Paulo), tirou quando de nosso último encontro, antes do falecimento dela, já idosa, em Avaré. Estou anexando a foto tirada naquele memorável dia à esta homenagem póstuma que estou fazendo à Dona Cynira, com muita emoção e saudade, como uma forma de melhor prestar a minha homenagem a todos os demais professores e professoras, com os quais tive a honra de muito aprender ao longo de minha vida de estudante, bem como, também, a todos os professores e professoras com os quais tenho tido a honra de conviver e trabalhar, num processo de mútuo aprendizado, ao longo de mais de cinquenta anos de atuação no magistério e em cargos de direção e de assistência técnica na área da Educação Profissional, bem como na dedicada atuação em Conselhos de Educação nas instâncias Municipais, Estaduais e Nacional. A partir destas aprendizagens iniciais com Dona Cynira, não só aprendi a ler e escrever, mas tomei gosto pela leitura, pela escrita e pela partilha solidária dos meus saberes. Tenho procurado exercitar essa partilha como educador ao longo dos anos e, de modo especial, com muita humildade, na condição de Conselheiro da Educação. Espero, com este singelo depoimento, que o exemplo de Dona Cynira Gonçalves possa contribuir para a reflexão da prática de cada Professor ou Professora em se ato de planejar e executar atividades de ensino, bem como avaliar resultados de aprendizagem, como importantes diagnósticos para seus prognósticos voltados para o zelo contínuo pela aprendizagem de todos os estudantes, nunca desistindo de nenhum de seus educandos. Para concluir esta homenagem a todos os Profissionais do Magistério, Professoras e Professores, chamo o testemunho do Imortal Educador Brasileiro Paulo Freire, nosso Patrono da Educação Nacional: “Educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo”.
São Paulo, 15 de outubro de 2018.
Professor Francisco Aparecido Cordão
Peabiru Educacional