Francisco José Carbonari toma posse na Academia Paulista de Educação
Ao ocupar a Cadeira de número 20 na Academia Paulista de Educação, o professor Francisco José Carbonari homenageou a patronesse da cadeira, Doutora e Professora Maria Augusta Saraiva. Ele sucedeu a Professora Myrtes Alonso que faleceu em 2022.
Leia a íntegra do discurso do professor Carbonari:
“Boa tarde a todos os presentes!
Cumprimento os membros da Academia Paulista de Educação na pessoa do Professor Hubert Alqueres, seu presidente.
Um agradecimento especial aos professores João Cardoso Palma e Nacim Alves Chieco que propuseram o meu nome para fazer parte desta Academia.
Um abraço carinhoso à profa. Beatriz Sacavazza, amiga de longa data, que toma posse comigo neste ato.
Cumprimento os meus familiares e amigos, aqui presentes, e todos os demais participantes deste ato.
agradeço as palavras a mim dirigidas pelo Prof. Nacim, motivadas muito mais pela velha amizade que pelos meus méritos.
Sinto-me bastante honrado e imensamente grato por receber a honraria que a Academia hoje me distingue. Aqui, diante dos senhores e das senhoras, preservo o sentimento de alegria que experimentei deste o momento em que soube da minha eleição.
Tenho também um grande orgulho por ocupar a cadeira de número 20 que tem como patronesse a Doutora e Professora Maria Augusta Saraiva e por suceder a Professora Myrtes Alonso. Esta satisfação se justifica pela consciência do papel que ambas desempenharam na sociedade brasileira e na educação paulista em particular.
Maria Augusta Saraiva foi uma mulher pioneira e inspiradora. Esteve à frente do seu tempo. Se recusou a assumir os estereótipos da mulher de então, abrindo caminhos não apenas no campo do Direito, mas da luta pelos seus direitos. Foi a primeira mulher a se graduar em Direito pela Universidade de São Paulo, a primeira a exercer advocacia e a primeira a atuar no Tribunal do Júri no Estado. Em 1902, concluiu seus estudos na Faculdade do Largo São Francisco, sendo a única mulher em uma turma de quinze formandos.
Hoje temos no Brasil mais advogadas que advogados, mas nem sempre foi assim, e o caminho trilhado por Maria Augusta foi fundamental para que outras mulheres pudessem ter acesso ao ensino jurídico e se tornassem advogadas.
Além disso, ela fundou o Colégio Paulistano, uma escola de ensino secundário para garotas, e lecionou no ensino primário estadual por quase três décadas. Sua jornada é um exemplo de perseverança, coragem e determinação.
Maria Augusta Saraiva faleceu em 1961. Em 2018, foi a primeira mulher a ser homenageada com um busto pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Pensando na trajetória de vida de Maria Augusta, pode-se imaginar as inúmeras barreiras que ela teve que transpor. As transformações sociais que ocorreram no início do século XX, seja no Brasil ou em qualquer lugar do mundo, não foram fruto do acaso, mas sim um reflexo da coragem, da bravura, da perseverança de mulheres como Maria Augusta, que devem ser lembradas e reconhecidas por tudo aquilo que representam.
A Professora Myrtes Alonso foi uma pedagoga brasileira de grande destaque. Formada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo, se doutorou em Educação na Pontifica Universidade Católica de São Paulo, atuando nesta universidade como professora titular. Sua experiência nas áreas de Formação de Professores, Gestão e Tecnologia Educacional, além da autoria de inúmeras obras na área pedagógica a colocaram nesta academia e trouxeram grande contribuição à educação brasileira.
Suceder a estas duas mulheres, ao mesmo tempo que me envaidece, traz uma grande responsabilidade, que espero dar conta.
Mas, ao me questionar sobre os motivos pelos quais me foi atribuída esta honraria, que certamente está ligada à minha crença na importância da educação, procurei também refletir sobre como a visão que tenho hoje sobre a educação brasileira foi construída. Ela seguramente está ligada as experiência que tive oportunidade de viver como professor e gestor público da educação. E nesse sentido, recordei de uma frase do Prof. Rubem Alves. Disse ele: “Eu cheguei aonde cheguei porque tudo que planejei deu errado”.
O que quero dizer com isto é que a minha vida na educação não foi planejada. Em nenhum momento na minha juventude pensei ou sonhei em trabalhar em uma escola.
A escolha pelo curso de Filosofia, no início dos anos de 1970, num momento conturbado da história desse país, estava muito mais ligada à crença de que era o melhor caminho para viabilizar meu engajamento político na luta que se travava no Brasil naquele instante, do que a opção por uma carreira profissional.
Mas, situações inesperadas surgiram, e me tornei professor de filosofia no Colégio São Luiz, em São Paulo, logo ao sair da Faculdade. Mais tarde, de Filosofia da Educação nos cursos de Magistério de nível médio e com novas oportunidades se apresentando segui a carreira acadêmica tornando-me professor e diretor de Faculdade de Educação do Centro Universitário Padre Anchieta em Jundiaí.
Essa experiência no magistério, fez com que as questões educacionais passassem a fazer parte da minha vida.
Nesse período as minhas reflexões estavam centradas na crítica à política educacional implantada no país, e no papel da escola, na construção de uma sociedade mais justa e menos desigual. Nesta perspectiva a pergunta e a reflexão que se me colocava à época, era qual o papel social da educação e quais eram os compromissos dos professores para sua transformação.
Posteriormente novas portas se abriram, e fui indicado para ser membro do Conselho Estadual de Educação, por uma deferência da Profa. Rose Neubauer, instituição que presidi por 4 mandatos e onde aprendi muito.
Novamente as oportunidades surgiram e desta vez na gestão pública e me tornei Secretário Municipal de Educação de Jundiaí e mais tarde Secretário-Adjunto da Educação do Estado de São Paulo, a convite do Dr. José Renato Nalini.
Essa passagem da sala de aula e da direção de uma Faculdade, para a gestão de uma rede pública de ensino foi um momento de conflito, que certamente é experienciado pela maioria dos gestores públicos no Brasil e que muitos dos que estão aqui presentes também passaram. Ao assumir este papel, aprendi muito sobre educação já que tive que enfrentar o desafio de demonstrar que as ideias proclamadas nos discursos acadêmicos, tinham consistência e viabilidade e a minha visão sobre os problemas da educação e os caminhos para sua transformação começaram a mudar.
E esse desafio da coerência entre o discurso do passado e a prática propositiva de uma política pública no presente, exigiu um esforço imenso. Foi preciso compreender que somente discursos não são suficientes, que as palavras que não levam a ações propositivas não são boas palavras e que os diagnósticos sem a elucidação dos caminhos a serem seguidos podem cair no vazio.
Esse conflito também me fez compreender que há uma questão central à qual não temos dado a necessária atenção e, que muitas das críticas às ações da gestão pública da educação não consideram: “não se chega à escola que todos sonhamos sem passar pela escola que podemos construir no momento presente”, ou seja, a prática do possível dentro da conjuntura dada. Para chegar à escola que queremos temos que passar necessariamente pela escola que podemos hoje, ou corremos o risco de ficar sem nenhuma. Nesse sentido qualquer projeto sério a ser proposto em termos de política pública deve trazer a indicação do “como fazê-lo”. E é exatamente quando se indaga esse “como fazer” que surgem as dificuldades. Os recursos não são infinitos e nem sempre possuímos quadros funcionais adequados às ações necessárias.
Esta visão foi construída pela compreensão de que a gestão pública, no seu cotidiano, não é composta somente de grandes ações, mas é composta de um dia a dia em que estão presentes o clientelismo, os interesses de grupos, corporações e sindicatos, e pressões políticas. Para o gestor público é difícil conviver com o grande abismo entre o desejado e o possível, entre o horizonte buscado e as decisões do dia a dia. Aprendi que os grandes projetos são construídos de pequenas escolhas.
E essa experiência me trouxe um grande ganho pessoal pois possibilitou conhecer os dois lados – o lado da academia, com todo o seu olhar crítico ao analisar e avaliar os contextos educacionais e o lado do gestor público que precisa olhar e considerar o cotidiano escolar e ter consciência dos limites entre o querer e o poder.
E foi esse contato com o cotidiano escolar, que me fez aprender mais sobre a educação. Sempre soube que a educação acontece na escola, na sala de aula, mas se tornou essencial para mim, na função de gestor, conversar com os professores e os alunos, para compreender um processo em que o ator principal é a criança.
E nessas andanças, diferentes olhares me foram permitidos.
Peço licença para ler um pequeno relato que escrevi sobre uma dessas experiências. Foi o diálogo que tive com um menino de 8 anos, aluno da rede municipal de ensino de Jundiaí:
- “Quem é você? Ele me perguntou.
- Eu me chamo Francisco Carbonari, sou secretário da educação de Jundiaí.
- O que é isso, o que você faz?
- Assim como sua diretora “toma conta” desta escola, eu sou o responsável por todas as escolas da cidade.
- Nossa…
- E você, quem é?
- Eu sou o Maicon.
- Quantos anos você tem, Maicon e em que série você está?
- Eu tenho oito anos e estou no 2º ano.
- Posso pedir uma coisa?
- Pode. O que você quer?
- Eu quero morar na escola, você deixa?
- Morar na escola? Mas por quê?
- Ah! Venha ver o banheiro. Olha, tem água quente no chuveiro, tem até toalha, e veja como ele é grande para a gente se enxugar…”
Essa conversa com Maicon, reafirmou a minha convicção na importância da escola pública para aqueles que nela estudam. Se para alguns a escola não é mais o único lugar onde se aprende e, talvez nem seja o principal, para outros ela continua sendo a única oportunidade de pensar uma nova vida.
Porque além de desenvolver habilidades e competências, a escola pública deve apresentar um modelo de espaço para a criança que muitas vezes é bastante diferente do que ela tem em casa. E isso quer dizer que a aprendizagem da criança na escola deve significar a possibilidade de pensar uma existência melhor, um futuro diferente, sonhar com uma vida mais feliz.
O pedido do Maicon não foi atendido; ele não pode morar na escola. Minha esperança foi que a escola passasse a morar dentro dele.
As duas perguntas feitas por aquele menino, marcaram minha vida e meu trabalho como gestor. Refazendo na memória o caminho percorrido, é significativo que essas perguntas tenham sido feitas, por uma criança de 8 anos. “Quem é você?”, “O que faz um gestor público?” Embora respondidas ali prontamente, elas parecem ter permanecido comigo e representam, de certa forma, uma síntese do que tentei fazer.
Diante da infinidade de aspectos que permeiam a gestão pública e das limitações enfrentadas, o desafio é identificar aquilo que realmente pode fazer diferença na vida das crianças, e então fazer escolhas.
O bem cuidar na educação pressupõe múltiplas ações – desde as grandes diretrizes que definem uma política educacional, até os pequenos cuidados introduzidos no dia a dia da escola, que dão suporte à aprendizagem e sentido ao conhecimento.
Vivemos hoje, um momento de crise, onde se discute o papel do Estado e particularmente sua atuação na educação.
E uma coisa que aprendi nos anos de convivência com o Prof. José Mario Pires Azanha e na leitura dos seus textos foi que a crise educacional brasileira é parte de uma crise mais ampla que é inegavelmente política. E que vivemos hoje uma situação política peculiar, que em função das experiências autoritárias passadas, fizeram com que as exigências de discussão, consenso, transparência e da criação de inúmeros mecanismos de controle, se transformassem de modo exacerbado, no critério único para viabilizar soluções para a escola, o que em muitos casos inviabiliza a ação comprometida da gestão.
Evidentemente que a legitimidade política da reivindicação, por uma maior discussão e no encaminhamento dos interesses coletivos é inegável, mas há que enfatizar que ela conduziu gestores públicos, muitas vezes sem maior análise, a exigirem que as questões educacionais passassem a ser discutidas e resolvidas em assembleias e fóruns, com resultados muitas vezes indesejáveis, como ensinou o prof. Azanha,
Mas, particularmente no momento de crise que vivemos hoje, as expectativas são múltiplas pois estamos diante de um mundo novo, repleto de possibilidades, é verdade, mas também de muitas armadilhas.
Um mundo novo porque suas fronteiras estão em constante deslocamento, parecem aproximar-se cada vez mais, e a velocidade e a quantidade de informações são por demais intensas, exigindo novos perfis profissionais e determinando mudanças profundas nas ações educativas.
Um importante aspecto da educação nesse contexto, a ser considerado diz respeito à necessidade de medidas que, cada vez mais, democratizem o acesso e permanência na escola e, principalmente, garantam um ensino de qualidade, entendido como direito ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade, habilitação para inclusão no mercado de trabalho, com competência e qualificação técnica, possibilidade de expressão e desenvolvimento de dons e habilidades individuais e, além disso, capacidade de análise crítica da realidade e inserção consciente nela, como ensinou a profa. Guiomar de Mello.
Considerando-se este momento da organização escolar, nossas obrigações atuais são enormes e eu me sinto feliz e privilegiado por viver esse momento
Terminando minha fala, cito novamente as palavras do educador paulista, professor José Mário Pires Azanha
“Todo esforço educativo repousa em uma esperança: a da possibilidade de modificação humana, sem essa esperança o ensino se transforma num ritual destituído de significado.”
Nossas ações enquanto Educadores precisam compartilhar dessa esperança que, no fundo, é a esperança no futuro. E todos sabemos que o país não dará o salto qualitativo para se inserir entre as nações desenvolvidas, se não resolver a questão da qualidade da sua educação.
Por fim gostaria de retomar o início da minha fala e dizer que permaneço fiel as minhas origens. Um caipira do interior de São Paulo, neto de imigrantes italianos que escolheram esse país para construírem suas vidas com muita esperança. A eles devo muito do que sou. Sou herdeiro desses homens e dessas mulheres que bravamente, desde 1893, cultivam uvas, sonhos e tradições em Jundiaí.
Se, para Drummond, o mundo é grande e cabe na janela sobre o mar, para mim, a educação é grande e cabe na mochila de quem quiser sonhar.
Obrigado!”