Emergência Educativa
International Studies on Law and Education 6 jul-dez 2010
CEMOrOc-Feusp / IJI-Univ. do Porto
Emergência Educativa
Jair Militão da Silva
1
Jair Militão da Silva é Professor Associado – aposentado – da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – FEUSP; Livre Docente em Educação pela Universidade de São Paulo – USP; professor no Programa de Mestrado em Educação da Universidade Cidade de São Paulo – UNICID
Resumo:
Como venho refletindo sobre a necessidade de uma urgente ação nos processos educativos no sentido da re-humanização dos diversos agentes envolvidos, ouvindo uma expressão do Papa Bento XVI por ocasião de um seu pronunciamento sobre a situação das crianças e dos jovens, na qual ele falou de uma “emergência educativa” chamou-me a atenção e, penso que este conceito, pode prestar-se para um efetivo exame das políticas públicas de educação em nosso país e em muitos outros. Os trabalhadores da saúde valem-se da expressão “emergência” para designar uma situação crítica ou algo iminente, com ocorrência de perigo; incidente; imprevisto. Esta situação é real ou exagerada pelas lentes da mídia? Infelizmente, uma consulta aos professores das diversas redes de ensino básico pode confirmar a realidade da existência da violência dos jovens, do egoísmo das crianças e da omissão do adulto. Para educar o educando, nessa situação de emergência educativa, urge a educação dos educadores. O aprendizado de como viver a própria humanidade pelo educando necessita do encontro com outro ser humano, autenticamente humano, diante do qual pode espelhar-se e constituir sua identidade. Estamos diante de uma emergência educativa que, para ser bem equacionada, necessita dramaticamente da humanização dos educadores e dos processos educativos.
Palavras Chave:
My reflections on education are often about the urgent need of humanism and so, the challenge launched by Pope Benedict XVI: “education emergency” has called my attention and has seemed useful to me to discuss our public policies. Emergency in health workers language means “critical situation” or “something dangerous about to come”. Is there a real education emergency? Unhappily, teachers of elementary school widely recognoze that there is youth violence, children’s selfishness and omission of the adult. Learning to live as a human being requires well-prepared educators: there is an emergency need of humanization of education.
Keywords:
Public policies in education. Basic Education. Education emergency.
Políticas públicas de educação. Educação básica. Formação de educadores.
Abstract:
Este artigo pretende apresentar uma reflexão sobre a necessidade de uma pronta e efetiva ação educacional junto à grande parcela das crianças e jovens que freqüentam nossos sistemas escolares e que apresentam indícios preocupantes de incapacidade de convívio social construtivo e sustentável em longo prazo.
Como venho refletindo sobre a necessidade de uma urgente ação nos processos educativos no sentido da re-humanização dos diversos agentes envolvidos, ouvindo uma expressão do Papa Bento XVI por ocasião de um seu pronunciamento sobre a situação das crianças e dos jovens, na qual ele falou de uma “emergência educativa” chamou-me a atenção e, penso que este conceito, pode prestar-se para um efetivo exame das políticas públicas de educação em nosso país e em muitos outros.
Valendo-se do termo usualmente utilizado pela área médica – emergência – pode-se retratar o quadro da tarefa que se apresenta aos educadores atuais e futuros.
Os trabalhadores da saúde utilizam a expressão “emergência” para designar uma situação crítica ou algo iminente, com ocorrência de perigo; incidente; imprevisto. No âmbito da medicina, é a circunstância que exige uma cirurgia ou intervenção médica de imediato. 24
Qual seria esta situação a exigir uma intervenção imediata dos educadores sob pena de ocorrência de grave perigo?
Estaremos diante de uma situação de emergência educativa?
A resposta encontra-se no exame da situação apresentada pelos diversos veículos da mídia nos quais se podem ver atos e práticas consideradas desumanas até ao ponto de seus autores serem classificados como não-humanos.
A capacidade de difusão da mídia mostra os inúmeros atentados à vida humana, os atos contra a dignidade de homens, mulheres e crianças, a inusitada violência nas disputas mais simples de interesses triviais. Muitos porta-vozes de variados grupos chegam a afirmar a existência de um novo ser, não mais humano, que não reconhece no outro um semelhante, mas tão somente um inimigo que pode e deve ser eliminado quando atrapalhar. Esses “desumanos”, agora adultos, foram crianças e jovens que passaram pelo sistema educativo que, de alguma forma, pode ter contribuído para essa formação.
Evidentemente, temos inúmeros outros adultos que não agem da forma anteriormente descrita, ao contrário, destacam-se por produzir ações cooperativas nas quais predominam a busca de ajuda a si próprios e aos demais. O trabalho nos hospitais, nos transportes, nos vários serviços à disposição da população é feito com compromisso, dedicação e cuidado. O número desses adultos, com muita probabilidade, ultrapassa o daqueles que produzem o “mal”.
A partir destas considerações, então, o que entender como emergência? Não estaríamos, simplesmente, diante de um fato recorrente na história humana, ou seja, o de que sempre houve e haverá pessoas construtivas e pessoas destrutivas? Qual o problema que está a exigir uma pronta e atenta atenção dos educadores?
A emergência está precisamente no que José Renato Nalini, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, presidente da Academia Paulista de Letras expressou em seu discurso de posse na Academia Paulista de Educação em 24 de maio de 2010: “… temos que combater a tirania da criança, a violência do jovem, a omissão do adulto…”
Ou seja, os sistemas educativos orientados pela escola, pela família, pela mídia, estariam formando mais seres humanos não construtivos do que construtivos. As crianças sem limites aos próprios desejos, construindo-se com base em um egocentrismo que não leva em conta o outro; os jovens, anteriormente crianças egocêntricas, não encontrando outra forma de lidar com restrições do que com a violência; e adultos sem saber o que fazer.
Esta situação é real ou exagerada pelas lentes da mídia? Infelizmente, uma consulta aos professores das diversas redes de ensino básico pode confirmar a realidade da existência da violência dos jovens, do egoísmo das crianças e da omissão do adulto.
Que adulto está sendo formado em nossos sistemas educativos?
Pode-se dizer que a educação é o mecanismo encontrado pela sociedade para introduzir os “incultos” e os estrangeiros em uma cultura, dominante naquela sociedade. A cultura é a forma de produzir a vida e o seu significado por um dado grupo e pode-se considerar que a cultura é adequada quando contribui para que perdure a vida dos componentes desse grupo em um ambiente. 25
Quando vemos jovens sem a mínima perspectiva de futuro, quando o horizonte de suas vidas não ultrapassa os próximos dois ou três anos, certamente, estamos diante de uma emergência educativa.
Educar é propor um horizonte para a vida toda do educando e sempre é uma aposta antropológica, ou seja, repousa em uma visão de homem cujo núcleo básico é a crença de que cada ser humano pode se aperfeiçoar.
Este horizonte supõe uma visão sobre quem é o homem, como aprende, como é constituído, seus limites e possibilidades, seu ser e seu dever-ser. O caminho utilizado para a busca do horizonte, para ser compatível e coerente com a visão inicial e final, necessita constante acompanhamento e reflexão, sob pena que desviar-se do objetivo.
Neste processo é fundamental a presença do sujeito educativo que, em primeiro lugar, assume a condução de todo o processo.
Desse modo, é importante perguntar ao sujeito educativo: Qual é a sua aposta no educando, como o vê, que propõe para este como vida?
Apostar no homem como ser com capacidade de raciocinar e amar
Em uma perspectiva humanista, tal como a História registra, o homem tem como pontos constituintes a razão e a capacidade de amar.
Pela razão o homem é capaz de compreender as situações em que se encontra e “ler” os acontecimentos à luz de princípios e valores. A razoabilidade das leituras do mundo pode ser aferida pelo diálogo que surge quando a razão é aplicada como forma de viver e partilhar os diversos problemas que a vida apresenta, superando a violência “sem razão”.
A capacidade de amar faz com que cada homem possa transcender seus próprios interesses e chegue a pensar e agir em favor dos demais. Isto é o que permite aos pais sacrificarem o próprio bem estar para atender a um recém-nascido que não apresenta força própria de reivindicação e que depende apenas do amor dos seus cuidadores para conservar a vida.
Todavia, a experiência mostra que o ser humano não nasce com determinantes biológicas que orientem seus comportamentos em uma única direção. Os modos de atender ao desejo de vida podem ser criados das mais variadas formas. Por exemplo, as práticas para proteger-se dos rigores do ambiente, de processar a alimentação, de organizar as relações humanas de cada grupo variam conforme as pessoas e o contexto. Essas formas são aprendidas em cada grupo concreto e reside aqui a importância da educação para a formação da identidade cultural de cada ser humano.
Esta formação da identidade acontece ao longo da vida de cada homem e tem como condicionantes o tempo, o espaço, as relações interpessoais, as heranças biológicas.
Em nossa cultura atual, com formas de atender aos desejos de modo quase imediato, tendo em vista a presença dos produtos prontos, das comunicações instantâneas, ocorre a sensação de que o condicionante temporal foi superado. Não dependeríamos mais do tempo para realizar nossos desejos e a “instantaneidade” nos leva a esquecer que a formação da identidade humana acontece com uma duração temporal necessária. Igualmente, são necessárias práticas que se consolidem para formar uma identidade, que se institucionalizem, ou seja, que se tornem hábitos em cada pessoa e em cada grupo e, para isso, os rituais são fundamentais. 26
Grandes educadores que a história registra criaram processos educativos que levaram em conta estas dimensões de tempo, espaço, ritmo humano, limites e possibilidades das pessoas. Como exemplo disso, pode ser citado São Bento, cuja Regra de Vida vem orientando a formação de identidades por mais de quinze séculos. Esta Regra funda-se, entre outras coisas, na organização do tempo, do espaço e das relações interpessoais.
Estas reflexões anteriores podem nos levar a pensar qual tem sido a proposta de nossos sistemas escolares aqui no país: que mensagem a organização do tempo e do espaço passa? E a forma como se dão as relações interpessoais? Que valores estão sendo propostos às nossas crianças e jovens? Onde cada educador pretende chegar com seu educando quando o está conduzindo para aperfeiçoar-se? Será que o educador ainda acredita que o educando pode aperfeiçoar-se?
Em outras palavras, qual é a proposta efetiva que nossas escolas estão realizando com nossos jovens e crianças? Penso que estas perguntas podem orientar a avaliação das políticas públicas de educação para o ensino básico, sem menosprezar outros indicadores de desempenho acadêmico, os quais, contudo, não podem estar descolados destes mais voltados para a verificação da formação da identidade de cada educando.
Se reconhecermos nosso tempo como um tempo de emergência educativa torna-se útil examinarmos a história para identificarmos outros eventuais momentos similares e estudarmos respostas que contribuíram para equacionar adequadamente os problemas que se apresentaram.
É ainda, com São Bento que podemos encontrar um momento de interesse para estas reflexões. De fato, a Europa do século VI encontrava-se em uma verdadeira situação de emergência educativa.
São Bento propôs centros de humanização – os mosteiros – nos quais a razão e a capacidade amar fossem preservadas e, gradativamente, emanaram destes espaços geográficos a criação de espaços humanos, criando sujeitos comunitários que propuseram novas formas culturais de viver e significar a vida; essas formas mostraram-se mais adequadas para a preservação da vida pessoal e coletiva e serviram como resposta para a emergência educativa da época.
A proposta educativa contemplou o ritmo humano ordenando cada dia, cada mês e cada ano, com liturgias para cada situação, aptas a produzir uma memória formadora da identidade cultural das pessoas.
De fato, os estudos sobre formação de identidade mostram a importância da presença dos demais componentes do grupo de referencia no qual esteja inserida a pessoa.
O exame dos processos formativos feito em diversos grupos sujeitos relevou um itinerário formativo que denominei “pedagogia do sujeito coletivo”
2.
2 Para aprofundar o conhecimento sobre Pedagogia do Sujeito Coletivo, consultar Jair Militão da Silva, A autonomia da escola pública: a re-humanização da escola. Campinas, Papirus, 2006, 9ª edição
A formação da identidade inicia-se com um encontro entre as pessoas, prossegue com a vivência de tarefas comuns nos quais juízos sobre a realidade são construídos e conciliados; os compromissos gradativamente assumidos vão criando uma identidade grupal que afeta e conforma a identidade pessoal. A relação com a realidade circundante confirma ou não a identidade grupal e pessoal e as obras que surgem do empenho do grupo e das pessoas vão marcando a presença no ambiente. A identidade mantém-se mediante o continuo apelo à memória que recorda quem é a pessoa, quais seus valores, seus objetivos, suas prioridades. Portanto, um sujeito 27
educativo é um sujeito humano com objetivos vitais, com princípios e valores orientadores da ação, com horizonte para a própria vida e com uma visão de mundo que luta para concretizar.
Todavia, hoje, é possível registrar a existência de uma ausência de formação para ser sujeito; ao contrário predomina o que se vem sendo chamado de “pensamento débil”. A proposição de um “pensamento débil” como condição para escuta não preconceituosa do ser caminhou para a negação da existência de valores e princípios aptos a orientarem as relações humanas.
A “escuta não preconceituosa do ser humano”, precisamente, revela a necessidade de verdades nas quais possa fundamentar sua vida e suas decisões, sob pena de tornar-se presa fácil dos tiranos pessoais ou institucionais.
Como fontes desse pensamento débil podem ser indicadas o Relativismo e o Niilismo e a fuga da afirmação de objetivos e valores com validade universal no tempo e no espaço.
Para educar o educando, nessa situação de emergência educativa, urge a educação dos educadores.
Educadores que sejam efetivamente sujeitos educativos.
Esta pode ser uma indicação real para a proposição de políticas públicas em educação: planejar e efetivar a formação de educadores para além de aspectos informativos e cognitivos, incluindo a atenção com princípios, valores, atitudes.
Formação de educadores: uma nova pauta adequada à emergência educativa
A formação inicial e continuada dos educadores de nossos sistemas escolares tem sido marcantemente fundada nas questões de conteúdo ou de didáticas das diversas disciplinas. Todavia, cada vez mais, é evidente a necessidade de formação efetiva para a condução comportamental das crianças e jovens. A equipe escolar precisa, cada vez mais, tornar-se pedagoga dos educandos. A pouca ajuda que a maioria das famílias oferece para a formação de muitos jovens e crianças faz com que a escola tenha aumentada sua responsabilidade.
Trata-se, desse modo, de criar condições para que os educadores escolares saibam como formar e não apenas informar seus educandos.
Os conhecimentos antropológicos, gnosiológicos e teleológicos, constituintes da situação educativa, devem fazer parte da formação dos educadores: o que é o ser humano? Em que ele deve tornar-se? Como aprende?
Esse conhecimento, para ser útil aos educadores, deve ser oferecido mediante vivências efetivas, práticas que permitam a experiência de viver como ser humano que é condição para compreensão de si e do outro.
Assim, as políticas de formação de educadores precisam contemplar um plano que supere a oferta de cursos desconexos e que atendem muitas vezes mais aos interesses do ofertante do que do demandante.
Os sistemas escolares devem prever um itinerário formativo para seus educadores que leve em conta a dimensão temporal da formação humana. Uma parte da carga horária do trabalho docente deve ser reservada para a formação de cada educador e um plano adequado às suas necessidades deve ser gradativamente, efetivado.
Nesse sentido, de muita utilidade para cada sistema escolar será a existência de um lugar institucional especificamente destinado a zelar pela formação de cada educador. 28
Educação de qualidade, capaz de atuar em uma situação de emergência educativa é aquela em que os educadores possuem qualidade de vida humana adequada ao relacionamento com os educandos.
De fato, para propor um estilo de vida solidário e construtivo aos educandos, os educadores precisam ter experimentado esta vida e desejar que ela se espalhe para todos.
Desse modo, um itinerário formativo para os educadores deve contemplar o maior número de dimensões vitais, tais como, cuidados corporais, emocionais, intelectuais, relacionais, transcendentais, entre outras.
Uma sociedade está interessada e prioriza sua continuidade de forma sustentável quando valoriza seus educadores, o que significa valorizar suas crianças e jovens.
Uma autêntica educação, formativa, realiza-se pelo encontro entre educadores e educandos como pessoas e não meros indivíduos mortificados em sua dimensão global, vivendo apenas papéis sociais, tais como, aquele que não sabe e aquele que sabe, aquele que manda e aquele que obedece.
O aprendizado de como viver a própria humanidade pelo educando necessita do encontro com outro ser humano, autenticamente humano, diante do qual possa espelhar-se e constituir sua identidade.
Estamos diante de uma emergência educativa que, para ser bem equacionada, necessita dramaticamente da humanização dos educadores e dos processos educativos.