Discurso de Saudação ao Acadêmico Scipione Di Pietrro Neto.
DISCURSO DE SAUDAÇÃO AO
ACADÊMICO SCIPIONE DI PIERRO NETO
PELA ACADÊMICA AMÉLIA A. DOMINGUES DE CASTRO
15/6/1999
Senhor Presidente da Academia Paulista de Educação, Professor Solon Borges dos Reis.
Autoridades aqui presentes e representantes das autoridades.
Senhores Acadêmicos, Senhores Professores.
Parentes e Amigos que aqui vieram homenagear o Acadêmico eleito que hoje toma posse.
Senhor Professor Doutor Scipione Di Pierro Neto.
Recebi dos Senhores acadêmicos a honrosa incumbência de saudar um novo membro da Academia Paulista de Educação de São Paulo, o Professor Scipione Di Pierro Neto.
Em março de 1998, confiaram-me missão idêntica, por ocasião da recepção à Professora Doutora Myriam Krasilchik, hoje Diretora da Faculdade de Educação que nos acolhe neste dia festivo. Como naquela ocasião, aceitei a missão, embora sabendo de suas dificuldades, pois relatar os principais aspectos da vida de professores de tal modo qualificados, fazendo justiça a suas muitas contribuições à educação brasileira, é tarefa demorada e abrangente que exigiria muito mais tempo do que o destinado a tanto no dia de sua recepção nesta Academia. Mas assim mesmo aceitei-a, com prazer, embora sabendo que minha única credencial para fazê-lo é ter tido o privilégio de acompanhar a carreira dos dois amigos e colegas desde o final dos anos cinquenta , quando passaram a integrar os quadros do Colégio de Aplicação da USP e logo em seguida da Cadeira de Metodologia do Ensino da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Antes de tentar, com a possível brevidade, referir-me à caminhada que transformou o Scipione, jovem licenciado de 1954, num dos expoentes da renovação do ensino da matemática em nosso país, peço licença para assinalar alguns eventos que marcaram a educação, neste século.
Há cem anos, em 1899, foi fundado, em Genebra, o Bureau International des Écoles Nouvelles, organização que veio, alguns anos depois, em 1925, a transformar-se no Bureau International de l’Éducation (BIE), hoje sob a égide da UNESCO. Na época de sua fundação, essa instituição reunia os entusiastas das novas escolas que vinham sendo organizadas em modelos diferentes dos tradicionais. Como disse um biógrafo de Adolphe Ferrière, a quem se atribui o mérito de sua criação, “era um projeto de ruptura com a ordem escolar existente”. Os rumos desse movimento de ideias e de práticas educacionais são por todos conhecidos: se os princípios nos quais se baseavam encontram-se hoje integrados ao pensamento pedagógico, como ideias que regem pesquisas e experiências, as realizações foram assumindo contornos diversos conformando-se à evolução dos problemas e das inflexões ideológicas, ficando diluídas nos diversos movimentos renovadores que o século abrigou. Assim as ideias de liberdade e atividade, que resumem as propostas de democratização da educação, passando por todos os obstáculos dos regimes totalitários, mantiveram-se intocadas. Por outro lado a mudança das instituições, no geral, mostrou-se lenta, embora com ilhas, verdadeiras pontas de lança que impulsionam inovações. Após um século, no qual desenvolveram-se a pesquisa e a experimentação em Pedagogia, com base no esforço teórico que as vem fundamentando, os excessos e certas soluções pontuais do centenário movimento receberam reformulações. No entanto, sua presença constante em todas as discussões do século, exige que a época de sua eclosão seja referida como um início de importantes conquistas educacionais. É uma feliz coincidência que este seja o ano da posse do Professor Scipione na Academia Paulista de Educação.
No Brasil, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, no início dos anos trinta, ao difundir muitas das ideias originais do movimento, procurou contemplar a nossa realidade, admitindo conceitos e fundamentos da educação nova e utilizando-os para um plano de reconstrução que apontava para amplas mudanças na estrutura educacional do país. Pouco mais de meio século depois, a Professora Doutora Esther de Figueiredo Ferraz, membro ilustre desta Academia, como Ministra da Educação, em suas palavras de abertura à Mesa Redonda reunida para debater o documento, afirmou que “de muitas maneiras o escolanovismo influenciou a educação brasileira”: no plano político, no plano social e sobretudo no plano pedagógico “no qual deixou marcas indeléveis”.
Muitas reformas de ensino se sucederam e uma grande produção pedagógica, liderada pelos nomes de Anísio Teixeira e Lourenço Filho, veio à luz. Na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, lecionaram outros dos signatários do Manifesto, os saudosos professores Noemi da Silveira Rudolfer, Roldão Lopes de Barros e Fernando de Azevedo. Não é pois de se admirar, que um clima de renovação de ideias e de propostas pedagógicas entusiasmasse os seus professores, quando iniciados os cursos de educação nas novas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras inauguradas na década de trinta.
O atraso da realidade, com relação às ideias, não deve nos fazer esquecer das conquistas que vieram, lentamente, fazendo seus caminhos. Tivemos problemas que deixaram de ser discutidos porque encontraram um consenso que os eliminava. Mas para umas poucas dificuldades resolvidas, restaram inúmeras outras pedindo soluções. Entre elas a da educação matemática, sabendo-se dos constantes fracassos dos estudantes nessa área.
Quando assumi a responsabilidade de saudar o Professor Scipione, veio-me à cabeça uma pergunta impertinente: seriam suficientes reformas curriculares e de programas, alterações nos sistemas de ensino, diferentes organizações do espaço escolar, em suma, decisões no campo do planejamento da educação, da política educacional ou da administração escolar, para encontrar soluções capazes de enfrentar problemas de ensino e aprendizagem na escola? E concluí que tais medidas, embora necessárias, não são por si mesmas suficientes para reverter o impacto de tradições sedimentadas. E que não obstante os muitos conceitos novos das teorias educacionais e o esforço de pesquisa pedagógica que esta segunda parte do século vinte vê eclodir, é à presença humana, ao professor e à sua vontade pedagógica que se devem as mudanças mais significativas.
É oportuno observar que a própria inflexão das ciências históricas, revela essa tendência de contemplar o cotidiano, os acontecimentos do dia a dia e os seus heróis, que deixaram de ser santos, generais, “condottieri” de todos os tipos, para valorizar o homem comum, o herói anônimo, o sujeito que faz a história e não é, somente, seu objeto.
No caso presente, o Professor Scipione, está longe de ser um herói anônimo. Seu trabalho, no ensino fundamental, médio e superior, sua produção intelectual, sua liderança fizeram seu nome conhecido não somente em São Paulo mas em outras muitas regiões do país que o conheceram e à sua obra.
Desejo, pois, acentuar a contribuição do nosso homenageado ao esforço de renovação e modernização do ensino da matemática. E quando falo em modernização, não me refiro à adoção de alguns modismos, a seguir correntes dos dias contemporâneos apenas porque assim estão datadas, mas a um tipo de atuação que tem a consciência do que é preciso fazer e a disposição de fazê-lo, conforme as necessidades que são discernidas e o saber que fundamenta as decisões.
O nosso herói terminou o bacharelato e a licenciatura em matemática, já tendo constituído família e exercendo o magistério. Um ano depois de formado prestou seu primeiro concurso público. Classificado em 4º lugar passou a ocupar a cadeira de Matemática no Colégio Estadual e Escola Normal de Piraju, no interior do nosso Estado. É importante observar que já nessa ocasião demonstrou sua inclinação inovadora, pois criou o Centro de estudos de Matemática Professor Teodoro Ramos, com o objetivo de expandir o conhecimento matemático por meio de cursos e palestras e formar bibliotecas especializadas para as classes do Colégio. Estas últimas tornaram-se realidade, atingindo considerável acervo, que lá permaneceu quando o docente, tendo realizado outro concurso de ingresso ao Magistério Secundário e Normal do Estado, assumiu cursos no Ginásio Estadual de Bernardo de Campos. Note-se que nesse concurso obteve o primeiro lugar
Ora, em 1957, o recém criado Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, nos termos do convênio realizado com a Secretaria da Educação do Estado, abriu concursos para preencher seus quadros docentes, tendo como candidatos professores da rede estadual.
Veio, então, do interior, o Professor Scipione e diante de banca examinadora composta por ilustres professores da USP, demonstrou que era o professor de que o Colégio necessitava para orientar a área de matemática.
Desde essa ocasião, fazendo parte da equipe de orientação pedagógica do Colégio, tive a oportunidade de conhecê-lo como colega de trabalho. Penso que sua ascendência italiana pode explicar, em parte, as qualidades que desde logo demonstrou. Há pouco tempo indaguei ao Professor, qual era a origem de sua família e fiquei sabendo que parte dela provem da região de Roma e outra parte de Nápoles. Seria essa aliança rara entre a racionalidade e a lógica dos romanos e a generosidade e o entusiasmo dos napolitanos que influenciou sua personalidade? É possível, pois o novo integrante do Colégio passou a participar – com todo o seu potencial lógico e racional – dos seminários de estudos de Psicologia e Epistemologia Genética que se desenvolviam no Colégio e na então Cadeira de Metodologia do Ensino, por iniciativa do saudoso Professor Onofre de Arruda Penteado Júnior. O que estava em jogo era a necessidade sentida pelos envolvidos no trabalho pedagógico de encontrarem fundamentos teóricos para os propostos avanços em educação e didática. Mas tornando-se colaborador desse grupo de estudos, voltou-se também, com toda a sua generosidade e entusiasmo napolitanos, a desenvolver trabalho tão renovador quanto amplo e criativo. Quando os colegas indagavam qual o segredo de sua intensa produtividade intelectual, ele procurava incentivá-los, dizendo que se tratava de uma conhecida proporção: 1 % de inspiração e 99 % de transpiração. Pode-se inferir que a qualidade do reduzido índice que atribuía a suas iniciativas, devia ser muito especial, para suprir a pouca quantidade de que dizia dispor.
Convidado a integrar os quadros da Cadeira de Metodologia do Ensino, assumiu, nesse setor, os encargos referentes à Prática de Ensino da Matemática, cujos estágios eram realizados no Colégio de Aplicação, o que lhe permitiu dedicar-se mais amplamente à tarefa de formação de novos professores de matemática.
Suas realizações, que incluíram a implantação de um novo modo de incentivar e desenvolver a aprendizagem da matemática, tiveram a participação da equipe de trabalho que constituiu e orientou. Do grupo que o rodeava e com o qual iniciou e desenvolveu um trabalho coordenado e meticuloso, lembro-me bem de Alberto Moretin, Iracema Mori, Aída Ferreira da Silva, entre outros que tem sido pontas de lança de uma nova concepção do ensino da matemática.
Uma de suas experiências refere-se ao que foi denominado Trabalho Dirigido de Matemática, estratégia que criava condições para que os alunos construíssem ou reconstruíssem o próprio conhecimento, e pudessem eles próprios aferir e avaliar os resultados obtidos. Demonstrava-se assim a aliança entre a teoria e a prática, no decurso das atividades de pesquisa autônoma empreendidas pelos alunos.
Os resultados o encheram de alegria, pois os métodos que utilizou permitiram que na 1a e 2a Olimpíadas de Matemática para o Estado de São Paulo, patrocinadas pela Secretaria da Educação do Estado e pelo GEEM (Grupo de Estudos para o ensino da Matemática), presidido pelo Professor Sangiorgi no ano de 1965, os alunos do Colégio de Aplicação obtivessem os cinco primeiros lugares, façanha repetida quase totalmente no ano seguinte.
Seus colegas e alunos também tiveram seu momento de alegria, ao ver o Professor Scipione ser escolhido como “Professor de Ciências do Ano – especialidade Matemática”, em concurso promovido pela UNESCO e organizado pelo IBECC (Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura), quando foi premiado em reunião da SBPC, na década de sessenta.
Continuei acompanhando de perto seu trabalho quando, infelizmente já extinto o Colégio de Aplicação, trabalhávamos como integrantes do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da USP. Tive então o privilégio de ser orientadora de sua tese de doutorado, defendida em 1973, que teve o título de “Uma contribuição ao ensino da geometria elementar”. Trata-se de trabalho de pesquisa diagnóstica, com fundamentação tanto no conhecimento matemático quanto nas conclusões da psicologia cognitiva, utilizando técnicas rigorosas de investigação e tendo como sujeitos professores e alunos de uma centena de escolas paulistanas. Aprendi muito nesse trabalho que nominalmente orientei, e até agora não sei por que o seu autor não o publicou.
Para não perder de vista o que afirmei de início, quanto à importância que atribuo aos professores, na tarefa de implementar ideias, atitudes e atuações inovadoras em educação, devo continuar relatando outros aspectos da vida profissional do Professor Scipione, que o colocam como um centro de difusão do que tenho considerado como a revisão das ideias da escola nova no Brasil nesta segunda metade do século vinte.
Paralelamente às atuações que relatei, o Professor Scipione exerceu o magistério, em outras escolas de nível médio e superior. O Colégio Paulistano, no qual havia iniciado suas atividades e o Colégio Rio Branco o tiveram como professor.
No Ensino Superior, seguiu a carreira universitária na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, na qual até hoje integra como Professor Titular, os quadros do Departamento de Matemática do Centro de Matemática, Física e Tecnologia. É igualmente Professor Titular de Matemática Aplicada à Economia, cargo obtido por concurso na Faculdade Municipal de Ciências Econômicas e Administrativas de Osasco.
Junto a outros especialistas, como o Professor Sangiorgi aqui presente e o nosso saudoso confrade, Professor Castrucci, o Professor Scipione tornou-se membro do Grupo de Estudos para o Ensino da Matemática, que desde sua fundação constituiu poderoso fórum de debates e incentivou o progresso em sua área de atuação.
Essa amplitude de referenciais vai permitir ao Professor o exercício de uma rede de atividades conexas e harmônicas, que ampliam o potencial de difusão de suas ideias inovadoras.
Resta-me dizer algo acerca de outra forma de expandi-las: a que se manifesta através de suas publicações. Desde os tempos do Colégio de Aplicação, o Professor Scipione começa a reunir em fascículos, para uso de estudantes e dos professores que prepara, novos textos destinados à aprendizagem da matemática. A metodologia das obras didáticas que deram continuidade a essas primeiras experiências caracteriza-se por atender tanto ao rigor científico na matéria quanto ao desenvolvimento cognitivo do aluno. O desafio do texto é projetado em função da progressiva capacidade de compreensão dos leitores aos quais se destina.
Seria longo enumerar toda essa produção especializada. Mas é importante notar que também nesse terreno o autor associa colaboradores ao seu trabalho, alguns dos quais membros da equipe do Colégio de Aplicação, e um deles sua filha, Maria Cândida.
Enfrentando as dificuldades da atividade editorial em nosso meio, o Professor Scipione fundou, em 1974, a Scipione Autores Editores Ltda. que conduziu durante dez anos, ao término dos quais, embora passada a outras mãos, a empresa manteve seu nome: Editora Scipione Ltda. A essa editora continua confiando a publicação de seus livros.
Senhoras e Senhores.
Esforcei-me por comprovar, graças ao exemplo do Professor Scipione, meu ponto de vista quanto aos rumos seguidos pela educação nos cem anos que nos separam da criação do Bureau International des Écoles Nouvelles. Ou seja: que as melhores ideias, os mais rigorosos estudos e pesquisas, só conseguem dar frutos quando encontram mentes capazes de lhes dar um significado real através da ação pedagógica. O novo membro desta Academia, professor e formador de professores, demonstra que é difícil, mas não impossível a construção de uma nova realidade, mas que ela só pode acontecer, pela vontade pedagógica de seus edificadores, exercida na constante interação entre profissionais dispostos à colaboração.
Termino esta saudação dizendo ao Professor Scipione: seja bem-vindo à Academia Paulista de Educação, de cujos propósitos tanto se aproxima por sua personalidade e trajetória profissional.
Uma palavra ainda. Conhecendo a importância que tem sua família para o nosso homenageado, os laços de afeto e de recordação que reúnem seus membros, desejo estender esta homenagem a Dulce, sua esposa tão companheira, a seus filhos e aos netos com os quais o premiaram.
Academia Paulista de Educação
São Paulo, 15 de junho de 1999