Discurso de Posse do Dr. Paulo Renato Souza.
DISCURSO DE POSSE NA
ACADEMIA PAULISTA DE EDUCAÇÃO
Paulo Renato Souza
Senhor Presidente, Senhoras e Senhores acadêmicos,
“Mas, de todos os deveres que incumbem ao Estado, o que exige maior capacidade de dedicação e justifica maior soma de sacrifícios; aquele com que não é possível transigir sem a perda irreparável de algumas gerações; aquele em cujo cumprimento os erros praticados se projetam mais longe nas suas consequências, agravando-se à medida que recuam no tempo; o dever mais alto, mais penoso e mais grave é, de certo, o da educação que, dando ao povo a consciência de si mesmo e de seus destinos e a força para afirmar-se e realizá-los, entretém, cultiva e perpetua a identidade da consciência nacional, na sua comunhão íntima com a consciência humana”.
Não estou aqui me referindo aos dias atuais, por mais contemporâneas que sejam estas palavras. Reporto-me a uma passagem do “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, para destacar o papel inovador de um de seus articuladores, o intelectual e educador Manuel Bergström Lourenço Filho, patrono da Cadeira 33 da Academia Paulista de Educação, na qual tenho a honra de ser empossado. Ao lado de Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, Lourenço Filho fez parte da geração que fez história ao romper com a concepção elitista da “escola tradicional” e propor, em seu lugar, uma “educação pública, gratuita, mista, laica e obrigatória”. O “Manifesto dos Pioneiros” foi o coroamento da efervescência que marcou toda a década de 20 e culminou na proposta da “Escola Nova”. Até hoje, seu livro “Introdução ao Estudo da Escola Nova” é leitura mandatória para quem quiser entender a inflexão ocorrida na Educação brasileira a partir do fim da República Velha, nos anos 30.
A precocidade foi a uma das características de Lourenço Filho, este paulista de Porto Ferreira, que iniciou seus estudos em Santa Rita do Passa Quatro e diplomou-se na capital, na Escola Normal Secundarista, em 1919. Aos oitos anos de idade, foi o chefe, editor e tipógrafo do jornal O Pião, numa premonição de uma futura carreira jornalística com passagem em jornais, como “O Estado de São Paulo”. Mas a Educação foi sua grande paixão, área em que se afirmou não apenas por suas contribuições teóricas em temas como educação pré-primária, alfabetização, ensino secundário, metodologia do ensino e orientação educacional; mas também como gestor educacional através de uma longa carreira pública.
O primeiro grande marco se deu em 1922 quando, a convite do governo cearense, assumiu o cargo de Diretor da Instrução Pública e ganhou notoriedade nacional graças às reformas que empreendeu na estrutura do ensino do Estado. Lourenço Filho deixou sua marca indelével no ensino brasileiro na década de 30, quando ocupou diversos cargos na administração pública federal. Foi chefe de gabinete do Ministério da Educação em 1931, diretor do Departamento Nacional de Educação, em 1937, e mais uma vez inovou ao fundar, um ano depois, o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, do qual foi diretor durante oito anos e que eu tive o privilégio de poder reativar em 1996, quando de minha passagem no Ministério da Educação.
Manuel Bergström Lourenço Filho nos deixou uma intensa produção teórica e seus livros foram traduzidos em diversos países. Seu maior legado para as gerações seguintes foi, contudo, o seu exemplo de vida e seu compromisso com uma educação pública e de qualidade, acessível a todos os brasileiros. Espero estar à altura da herança deixada pelo nosso patrono e pelos que me antecederam na cadeira.
Tenho a consciência da responsabilidade de suceder a saudosa jurista e educadora Esther de Figueiredo Ferraz – que nos deixou aos 93 anos de idade, após longa vida dedicada ao Direito e à Educação. Minha antecessora esteve à frente do seu tempo e foi pioneira em um Brasil onde a discriminação e o preconceito eram obstáculos a serem superados para que a mulher alcançasse posição de relevo na sociedade.
Esther de Figueiredo Ferraz veio ao mundo para romper paradigmas e para ser a primeira em praticamente tudo. Primeira mulher a integrar a cátedra da Faculdade de Direito do Largo São Francisco e a ocupar uma cadeira na Ordem dos Advogados do Brasil, em 1949. Foi ainda a primeira mulher da América Latina a comandar uma reitoria na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Na Educação galgou todos os degraus: da sala de aula ao mais alto topo. Minha antecessora entrou definitivamente para a história como a primeira mulher brasileira a ocupar o posto de Ministra do Estado ao assumir, em 1982, o Ministério a da Educação e Cultura, oportunidade em que, como Secretário da Educação de São Paulo do querido Governador Franco Montoro, aprendi a respeitá-la e admirá-la como figura pública de primeira grandeza. Foi o coroamento de uma trajetória que fez da nossa saudosa Esther uma das pessoas que mais conhecia o ensino público do país, pois já tinha sido Secretária da Educação do Estado de São Paulo, de 1971 a 1973, membro do Conselho Estadual de Educação e tinha participado, por treze anos, do Conselho Federal de Educação.
A marca registrada da vida pública de Esther de Figueiredo Ferraz foi seu senso prático, graças ao qual conseguiu viabilizar, à frente do MEC, a regulamentação da Emenda Calmon que estabeleceu, pela primeira vez, percentuais mínimos obrigatórios para a aplicação na Educação dos recursos arrecadados em impostos. Estava, assim, dado o primeiro passo para a estruturação de um sistema de financiamento do ensino público. À frente do Ministério da Educação, implementou uma reforma universitária que levou ao aperfeiçoamento dos planos de carreira para os professores.
Há pouco menos de um ano ela nos deixou, restando em todos nós a certeza de que cumpriu integralmente aquilo que, aos 82 anos de idade, anunciou em seu discurso de posse na Academia Paulista de Educação:
“Uma batalha que a mim, assim o desejo, me ocupará até que cerre os olhos à luz do mundo de Deus. Que com Ele, o Senhor, firmei um contrato comprometendo-me a trabalhar nessa abençoada seara até o último dia de minha vida, esperando de Sua clemência que me conceda a graça de fazê-lo de forma condigna, poupando-me, se o merecer, da decadência espiritual, da dependência em relação a terceiros que costumam caracterizar este poente da existência.”
A generosidade dos que me agraciaram com o privilégio de ser membro titular desta Academia me propiciou mais uma alegria: a de reencontrar e ter como colega e uma das proponentes de meu nome a titular da cadeira 13 da Academia Paulista de Educação – a educadora Rose Neubauer, a quem conheço de perto desde os tempos da Campanha para Governador de Franco Montoro. Depois, fomos parceiros durante sete anos: ela como Secretária de Educação do Estado e eu como Ministro da Educação. Sou, portanto, testemunha da sua enorme contribuição ao ensino do nosso Estado. Nomeada Secretária, em 1995, pelo saudoso governador Mário Covas, um dos maiores homens públicos da história recente do país, Rose Neubauer iniciou profundas mudanças estruturais do sistema educacional do Estado, com a adoção de políticas voltadas para a racionalização da máquina administrativa, para a descentralização de poderes e competências e o apoio pedagógico às escolas.
Em sua gestão, 99% das crianças paulistas de 7 a 14 anos tiveram acesso à escola e houve forte expansão do ensino médio público, que em sete anos cresceu de 1,2 milhão para 2 milhões de alunos, ao tempo em que a municipalização do ensino também avançou significativamente. A Secretária Rose foi uma batalhadora incansável no enfrentamento dos gargalos do fracasso escolar e do congestionamento do fluxo escolar, tendo a coragem de reorganizar a rede escolar do Estado e de adotar novos conceitos pedagógicos. Foi também pioneira ao introduzir no Estado a cultura da avaliação, acompanhando assim os ventos renovadores que, em escala nacional, levou ao MEC, na nossa gestão a criar o sistema de avaliação, cuja essência vige até os dias de hoje.
Após sete anos, retomou suas atividades acadêmicas. Doutora em Educação, professora titular da Faculdade de Educação da USP e consultora de instituições renomadas, como a FAPESP, Rose Neubauer tem uma produção no campo educacional que por si só já a faria merecedora de ser titular desta Academia; sendo autora de dez livros e de 111 itens de produção técnica, além de vários artigos publicados por periódicos especializados. Seus conhecimentos acumulados a fazem uma fonte indispensável tanto para o desenvolvimento da ciência como para a formulação de políticas voltadas para uma educação publica de qualidade, capaz de abrir novos horizontes para nossos jovens e alunos.
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Amigas e amigos,
Todos sabem que não sou um educador por formação. Sou um simples economista que se especializou na área do trabalho, empregos e salários. Há exatos 25 anos, numa quarta feira do mês de abril, fui chamado pelo Governador André Franco Montoro para uma reunião no Palácio dos Bandeirantes. Ele foi claro e direto na frase que iniciou sua conversa: “vou nomeá-lo, hoje, Secretário da Educação”. Lembro que, refeito da enorme surpresa, procurei arrumar em minha cabeça algumas ideias e propostas para uma área que eu conhecia apenas superficialmente e que atravessava uma profunda crise no Estado, depois de mais de dois meses de paralisação docente. Imediatamente pedi à então secretária municipal Guiomar Namo de Mello e à Rose Neubauer, sua Chefe de Gabinete, que viessem ao Palácio para que me ajudassem a alinhavar algumas ideias e propostas antes do anúncio para a imprensa e que se transformaria em minha primeira entrevista coletiva, o que ocorreu no mesmo dia no final da tarde. Foi, portanto, por estas duas mestras que me iniciei na difícil e fascinante arte de gerir a Educação. Hoje devo reconhecer que a Educação tornou-se o centro de minha vida pública e profissional.
Ao longo deste quarto de século, como secretário, reitor, ministro e consultor, continuei a aprender com os educadores. Cometerei injustiças por omissão, mas não posso deixar de mencionar alguns desses mestres que me ajudaram na transformação de economista em educador e a quem sou muito grato. Destaco a Cláudio Moura Castro, Eunice Ribeiro Durham, Maria Helena Guimarães de Castro, Maria Inês Fini e Iara Prado. Nada se faz sozinho na vida, e ao longo dessa jornada contei também com a ajuda inestimável de colaboradores leais que lutaram comigo nas batalhas que travei. Representando a todos com quem tive e tenho o privilégio de trabalhar, quero destacar o nome de Gilda Portugal Gouvea. Tudo isso foi possível porque contei com pessoas que confiaram em mim ao entregar-me a gestão educacional. Nesse sentido, além de Montoro, sou grato ao Presidente Fernando Henrique Cardoso e ao Governador José Serra pelas oportunidades que me proporcionaram.
Neste quarto de século fui protagonista e espectador ao mesmo tempo.
Tenho a consciência de haver contribuído para o avanço da educação em nosso país especialmente nas áreas da inclusão, ao promover a universalização do ensino fundamental e aumentos muito importantes nas taxas de escolaridade dos demais níveis de ensino, da educação infantil ao superior, e na criação de um sistema de avaliação educacional que abrange o ensino básico e a educação superior, incluindo a pós-graduação. Tudo isso, de alguma forma sobreviveu à minha passagem pelo Ministério. Desde o Estatuto do Magistério de São Paulo ainda no Governo Montoro ao Plano de Valorização pelo Mérito, recentemente sancionado pelo Governador Serra, passando pela redefinição a carreira docente da Unicamp, a questão das carreiras dos profissionais da educação tem sido outro tema de permanente atenção. A definição curricular esteve presente na minha primeira gestão na secretaria estadual e no Ministério, com a edição dos Parâmetros Curriculares Nacionais. A preocupação com a criação de instituições perenes inspirou-me na redefinição do Estatuto da Unicamp e na aprovação de Leis fundamentais para nossa educação: e Emenda Constitucional 14 que criou o Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – o FUNDEF, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – a LDB de 1996 – e a que criou o Conselho Nacional de Educação, em 1995.
Esses mesmos anos assistiram a mudanças radicais em todo o mundo com o advento da chamada Sociedade do Conhecimento. A Educação e a Ciência Pedagógica foram profundamente afetadas como tenho tido a oportunidade de destacar em artigos acadêmicos e jornalísticos. Desenvolveram-se os conceitos relativos à aprendizagem: as habilidades e competências de aprender. A pedagogia passou a contar com critérios objetivos para fixar metas para todo o ensino básico dentro das novas exigências da sociedade do conhecimento. Mais importante ainda, foram desenvolvidos instrumentos de medição bastante precisos dessas habilidades e competências, através de sofisticados sistemas de avaliação de alunos. Temos hoje a possibilidade de uma mudança radical no conteúdo da política educacional. Incorporar os indicadores resultantes dos processos de avaliação da aprendizagem em todas as políticas e normas educacionais é o caminho mais curto e efetivo para colocar a aprendizagem no foco central do funcionamento da escola. Desde a distribuição de recursos para as escolas, passando pelas regras da carreira do professor e de sua remuneração e chegando até a forma como designamos os diretores de escola e fixamos os objetivos para seu trabalho, tudo enfim relativo à escola pode hoje levar em consideração também os resultados dos processos de avaliação dos alunos.
Porque não conseguimos elevar a qualidade de nossas escolas? Sem dúvida, o tema é complexo e envolve um grande número de fatores, que contemplam os problemas de deficiente formação dos professores, falta de preparo específico dos diretores de escola, ausência de um currículo escolar e, em menor medida, as condições materiais da infraestrutura. É verdade que não podemos desconsiderar a grande transformação havida na sociedade brasileira, com uma violenta urbanização não acompanhada pela estruturação das cidades, gerando fortes alterações nas relações comunitárias e familiares que acabaram afetando a escola aí inserida. Assim sendo, a busca da qualidade deverá passar também, por de uma nova harmonia entre escola, família e sociedade.
Muitas vezes esbarramos na exploração política, promovida pelos sindicatos, do corporativismo, que não expressa à visão da maioria do professorado. Por vezes, esta exploração é muito eficaz e termina por “comover”, de certa forma, a amplos segmentos da sociedade que tendem a adotar atitudes paternalistas em relação aos mestres, como se fosse uma quase ofensa cobrar conhecimentos, desempenho e resultados do trabalho de ensinar. Até mesmo membros de instâncias decisórias do Poder Público são sensibilizados pelos argumentos corporativos e tomam medidas que acabam prejudicando a educação, esquecendo-se das verdadeiras vítimas desse processo que são as crianças e jovens que terão seu futuro definitivamente comprometido pela escola ruim.
De tanto fazer e de tanto observar, algumas lições ficaram e convicções se solidificaram. Como frequentemente ocorre, o essencial é simples: é preciso destacar o protagonismo dos alunos no processo educacional. Focar na aprendizagem significa precisamente isso: as escolas foram feitas para os estudantes e não para os professores. É obvio que devemos investir mais recursos na remuneração dos professores, vinculando-os, porém, à introdução de mudanças necessárias na sua formação, atualização profissional e estruturação de suas carreiras, tal como recentemente aprovamos em São Paulo.
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Ilustres colegas Acadêmicos,
Quero agradecer, de forma especial, a dois ilustres membros desta Academia que muito contribuíram para o abrilhantamento desta cerimônia de hoje – uma das maiores homenagens que recebi ao longo de minha vida pública. Meus primeiros agradecimentos vão para o eminente pesquisador e docente do curso do programa em Mestrado da Educação da Universidade da Cidade de São Paulo, João Gualberto de Carvalho Meneses, que, de forma competente, presidiu a Academia Paulista de Educação até junho do presente ano. Todos nós sabemos o quanto ele contribuiu para o ensino em nosso Estado, seja através de sua atuação como presidente do Conselho Municipal da Educação capital paulista, seja através de seus estudos voltados para temas como a gestão escolar e políticas públicas de educação. Ao mestre João Gualberto, o meu muito obrigado.
Manifesto também minha gratidão ao atual presidente da Academia, o ilustre professor universitário Paulo Nathanael Pereira de Souza, que de forma competente preparou esta cerimônia e dirigiu seus trabalhos. Nosso novo presidente tem vasta folha de serviços prestados à educação, materializados quando foi reitor da Universidade São Marcos, membro do Conselho Estadual de Educação, do Conselho Federal da Educação e presidente do Conselho de Administração do CIEE na gestão 2003-2009. Temos a convicção de que seu mandato iniciado ao final de junho último se colocará a altura da tradição da Academia Paulista de Educação, que nos seus quase quarenta anos de existência prestou relevantes serviços à sociedade e ao Estado.
Destaco também que esta bela festa de homenagem não teria sido possível não fora a generosidade do CIEE e a competência de seus dirigentes, a quem homenageio na figura do Presidente do seu Conselho, Professor Ruy Altenfelder.
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Senhor Presidente,
Permita-me concluir com uma palavra de caráter pessoal para expressar o profundo reconhecimento à minha família, fonte de inspiração e na qual bebo a energia para seguir lutando: minha mulher Carla e meus filhos Maria Teresa, Renato e Maria Luisa, que, além de muitas outras alegrias, já me deram três casais de maravilhosos netos: Nina e Neil, Marina e Mateo e Isabella e Nicholas. De minha mãe, Maria do Brasil, herdei a paciência nas adversidades, de meu pai, Renato, a coragem para defender o que é certo e enfrentar situações difíceis. Esses legados me têm sido muito úteis na vida pública.
Muito obrigado.