Discurso de Posse do Acadêmico Orlando de Alvarenga Gáudio.
ACADEMIA PAULISTA DE EDUCAÇÃO
Discurso de Posse do Acadêmico Titular
ORLANDO DE ALVARENGA GÁUDIO
Sem data
Senhor Presidente da Academia Paulista de Educação
Autoridades presentes e aqui representadas
Senhoras e Senhores
Senhores Acadêmicos
Perplexo ainda pela honra de ser admitido neste brilhante cenáculo de doutos e eminentes educadores pelo gesto expressivo de fidalguia e generosidade dos Senhores Acadêmicos, confesso jamais haver passado pela mente a ideia de entrar para a imortalidade das academias. Trazido a ela pela amizade fraterna do nosso ilustre companheiro Padre Hélio Abranches Viotti, titular da Cadeira nº 3, interpreto essa feliz oportunidade que hoje até aqui me eleva como coroamento da minha longa carreira de educador por meio século, sem outro mérito senão de havê-la exercido com honestidade, amor e doação total.
De outra maneira não sei aceitar a nobreza do vosso gesto, Senhores Acadêmicos. Não me cabe perguntar se vos inquietastes pelas credenciais pouco valiosas com as quais aqui me apresentei. Também não cabe a mim deixar em suspenso a justiça do vosso ato. Posso, no entanto, afirmar que aqui chego para colaborar convosco no estudo e exame de sugestões que possam trazer soluções para o magno problema do ensino e educação nacional, sempre para nós, prioritários, tão aflitivos nessa época tecnológica em que vivemos, na qual o homem está sendo triturado pela máquina.
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Os dois nomes inscritos na Cadeira que me cabem a honra de zelar – Júlio de Mesquita Filho, o patrono, e Laerte Ramos de Carvalho, seu primeiro titular, foram dois ínclitos educadores e incentivadores da cultura para quem hoje aqui se convergem as homenagens do panteão da Academia. Ambos paulistas, filhos dessa terra histórica, donde na antemanhã da nacionalidade partiram os primeiros conquistadores que desbravaram os sertões, ampliando nossa área geográfica, dilatando nossas fronteiras. Daqui, pois, a tenacidade e coragem dos seus filhos, imortalizada na bravura indômita do “Bandeirante”; Também foram eles bandeirantes da cultura nacional.
A vida desses saudosos brasileiros parece ser uma o prolongamento da outra; elas se sucedem cronologicamente e de tal maneira se assemelham e se integram sob o aspecto psicológico dos dois eminentes cultores de educação e na finalidade dos respectivos objetivos, que se torna curiosa a uniformidade dos caminhos que percorreram. Júlio de Mesquita Filho, de tradicional família, jornalista fulgurante, escritor que tão bem soube usar as riquezas do idioma pátrio, teve destacada influência na política nacional. Na direção do jornal “O Estado de S. Paulo”, diário informativo respeitado internacionalmente, polêmico, brilhante, tecnicamente impecável, foi o grande sonhador e criador da Universidade de São Paulo. Encarregado pelo Governador Armando Salles de Oliveira, foi o grande artífice do projeto de criação da famosa universidade paulista. Apaixonou-se pela ideia e, absorvido por sua concretização, devotou especial carinho à instalação da “Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras”. Bem diferente do jornalista, do escritor, do político, do educador, nestes aspectos diversos, é que se pincela o retrato da individualidade de Júlio de Mesquita Filho. Através dessas facetas aparece outro homem – o combatente audacioso, dizendo as verdades sem se preocupar com os outros e sobretudo consigo mesmo, enfrentando o exílio com dignidade, assistindo com firmeza ao fechamento do seu jornal pelo arbítrio de Getúlio Vargas, nunca abandonando nem renunciando a seus princípios. Foi coerentemente compatível com a franqueza e a honestidade.
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1922
O Brasil vibrava em frêmitos de alegria e emoções cívicas com as comemorações do centenário de sua independência.
No dia 3 de setembro, quando já ressoavam os acordes harmoniosos de alvorada radiante da magna efeméride e dos cânticos grandiosos de aleluia, na pequena cidade do interior paulista – Jaboticabal – nascia Laerte Ramos de Carvalho, filho de Joaquim Carvalho e Anita Ramos de Carvalho. Ali cursou as primeiras letras e o ginásio, quando já se revelou aluno brilhante, denotando especial dedicação para a filosofia e a pedagogia, que constituíram sem dúvida a base sólida para sua formação específica. Aos vinte e um anos de idade, recebia o diploma de bacharel em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Foi o início de uma carreira sempre ascensional, tornando-se professor de habilíssima didática, respeitado pelos alunos que o amavam, o líder genuíno da mocidade que conquistara com seu coração sempre aberto aos anseios juvenis, dos discípulos que o elegeram como orientador prudente, seguro, ao mesmo tempo que compreensivo e humano, não obstante seu temperamento pouco dado às extroversões próprias dos jovens de sua geração. Preocupavam seu espírito amadurecido os problemas da época, mormente o avanço tecnológico que ameaçava asfixiar o humanismo, como também o desrespeito pelos valores morais que procurava robotizar o ser humano. Foi como professor de Rui e Júlio, filhos de Júlio de Mesquita Filho, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, nos idos de 1944 e 1945, que Laerte teve aproximação com o jornalista paulista, que convidou o jovem mestre para ingressar no “O Estado de S. Paulo” como comentarista de assuntos de educação, além de orientar também os estudos do seu filho Carlos.
Desde então entre os dois grandes batalhadores do desenvolvimento cultural do Brasil estabeleceu-se uma perfeita identificação de pontos de vista que se prolongou, sem discrepância alguma, por vinte e cinco anos.
A coluna de Laerte Ramos de Carvalho em “O Estado de S. Paulo” firmou-se como uma tribuna que dissecava com autoridade todos os problemas concernentes ao ensino em todos os seus níveis, sempre com muita objetividade e realismo. Em 1945, contraiu núpcias com sua colega de faculdade, Maria de Lourdes Chagas, nascendo dessa união duas filhas: Marta Maria e Taís Maria. Em seu lar sempre aberto e aconchegante para os seus alunos, ainda hoje continua a viver o ideal do grande mestre, cuja presença perene é constatada pela chama do exemplo que não se apaga e pela saudade que também não morre. Em todas as posições alcançadas o grande educador jamais se acomodou e se omitiu. Em todos os movimentos que envolveram a opinião nacional, marcou sua participação defendendo seus princípios com convicção, coragem e independência, sem paixão, porém com veemência.
Na cátedra universitária, na Secretaria da Educação e no Ministério da Educação e Cultura, no Centro Regional de Pesquisas Educacionais Professor Queirós Filho, na Reitoria da Universidade de Brasília, nos Conselhos Estadual e Federal de Educação, na Faculdade de Educação, “atuou sempre com dedicação, serenidade, idealismo e competência, inalteravelmente o mesmo homem que enriqueceu e enobreceu as páginas dos Anais da ‘História da Educação Brasileira’”.
João Eduardo Villalobos foi muito feliz ao dizer que Laerte Ramos de Carvalho “era um homem de dimensões dionisíacas”. De fato, seu espírito democrático, sua cultura fabulosa, seu talento, sua pedagogia brotada do coração sem tamanho que possuía, seu estilo tão singular de comunicar, sua maneira de querer bem, sua correção como executava deveres e atos, sua habilidade e senso prático no estímulo de vocações fizeram do saudoso imortal titular da Cadeira nº 12 o “Humanista íntegro e ínclito”. As obras que produziu, todas de grande valor, foram escritas com sabedoria, muita pesquisa e abundância de conceituação. “A Formação Filosófica de Farias Brito”, esplêndida síntese de “uma história das ideias no Brasil”, com toda a objetividade própria da filosofia. “As Reformas Pombalinas da Instrução Pública”, um conjunto de estudos sobre “as manifestações espirituais do século XVIII”, prima pela riqueza de subsídios para a história da educação, “das preocupações pedagógicas do iluminismo português”. Muitos outros ensaios, estudos, artigos, crônicas e pareceres constituem o acervo precioso elaborado pelo tão lúcido e brilhante pensador. Para o Conselho Estadual de Educação de São Paulo, foi seu último trabalho e brilhante e bem redigido parecer acerca da deliberação que fixava as disciplinas profissionalizantes do currículo das escolas de segundo grau. Embora houvesse colaborado com carinho pra a implantação da reforma do ensino em São Paulo, Laerte Ramos de Carvalho jamais defendeu a profissionalização no ensino médio. Considerando as condições do nosso meio, os exíguos recursos técnicos que possuímos, jamais acreditou no êxito, entre nós, da solução do ensino profissionalizante. Previu o fracasso, que, estarrecidos, nós, os educadores realistas, contemplamos, do sistema de ensino em vigor, em que a queda impressionante de nível, em todos os graus, nos preocupa ao vislumbrar perspectivas muito sombrias para um futuro bem próximo. Na declaração de voto que apresentou, ao justificar seu parecer, o realista pedagogo advertiu que eram “incompatíveis as exigências da reforma com as normas legais da realidade”, acarretando a má qualidade do ensino ministrado em nossas escolas. Nessa batalha final, cuja luta foi incessante e violenta, o grande mestre saiu derrotado. Inconformado e visivelmente abatido, no dizer de sua dedicada e solidária esposa – D. Lourdes – a dolorosa circunstância precipitou sua morte.
Na manhã invernal de 7 de agosto de 1972, em meio das festas comemorativas do sesquicentenário de nossa emancipação política, causando indizível impacto entre todos, morre repentinamente Laerte Ramos de Carvalho, o jequitibá que tombou sem haver vergado nem curvado.
Aí tendes – Senhores –, num descolorido escorço, o perfil do saudoso e emérito educador a quem hoje me cabe a honra inexcedível de suceder nesta Cadeira nº 12.
No panorama educacional do Brasil, Laerte Ramos de Carvalho foi um gigante pela vontade hercúlea de lutar por um ensino de melhor qualidade, mais condizente ao nosso meio. Atleta da pedagogia, cujo sistema criou com seu coração estuante de amor pela mocidade brasileira, mestre perfeito cuja última aula – seu derradeiro parecer sábio apresentado no Conselho Estadual de Educação – constituiu o mais brilhante capítulo de sua vida, digno exemplo de civismo esclarecido que se preocupava com tudo que visava a formação da alma brasileira.
Senhores!
Aqui está sobre mim a árvore frondosa e ubérrima da Academia Paulista de Educação. Sob a sombra de sua riqueza humana, ela tem a sabedoria de tantos mestres de São Paulo que comunicam e transmitem cultura, civilização e humanismo, simbolizados nessa extraordinária vocação que foi Laerte Ramos de Carvalho.
Muitos ainda dessa árvore podem precisar. A todos ela muito poderá dar. Que reserva ela para mim que tão feliz ensejo aqui me fez abrigar? Que posso eu desejar e conseguir sob tão acolhedora sombra?
Neste cenáculo quase olímpico de imortalidade educacional, que posso mais almejar e querer senão a felicidade bem simples de ser útil ainda ao ensino do meu Brasil, de ser o companheiro que veio pela alegria de chegar e viver pela alegria de servir.