Discurso de Posse de Acadêmica Bernardete Angelina Gatti.
ACADEMIA PAULISTA DE EDUCAÇÃO
Discurso de Posse da Acadêmica Titular
BERNARDETE ANGELINA GATTI
20/8/2007
Senhor Presidente da Academia Paulista de Educação
Senhores Acadêmicos
Senhores Componentes da Mesa
Senhores e Senhoras
Devo dizer que me surpreendi muito com a indicação de meu nome para esta Academia, que congrega pessoas pelas quais tenho a maior consideração, pessoas que se distinguiram pelo seu engajamento no campo da educação, de diversas maneiras e por diversos caminhos. Fiquei entre surpresa e confusa, exitante. Porém a gentileza com que o Professor João Gualberto tratou a questão comigo convenceu-me. E aqui estamos: mais um passo nessa jornada que compartilho com todos vocês que, direta ou indiretamente, permitiram o meu caminhar pelas sendas da área educacional, e, mais que isso, me ajudaram nesse caminho, quer pelo apoio afetivo, quer pelo companheirismo, quer pela compreensão, quer pela contribuição à minha formação, quer, ainda, pela atuação conjunta e cooperativa, seja em projetos educacionais, seja na pesquisa em educação.
Quero agradecer as palavras do Senhor Presidente, recebendo-me nesta casa, dando-me as boas vindas e falando das trilhas por onde passei. Não fiz este caminhar como um ser solitário e perseverante por si, mas o fiz porque tive sempre outras pessoas, outros profissionais ajudando-me, estimulando-me, abrindo-me horizontes e possibilidades, trabalhando em equipe, com companheirismo. Compartilhar trabalhos, lutas, esperanças, decepções, vitórias foi o que me fez sempre buscar caminhos para a compreensão do ato de educar na escola, a escola nesta sociedade em transição de valores, a escola pública dos mais desfavorecidos socialmente. Várias vezes falei para meus alunos: “estou pendurando as chuteiras, agora é com vocês; a tarefa ainda é muito grande, tratem de assumir essa briga…” Mas, continuei… não abandonei até hoje esse espaço de busca e de ações para uma melhor educação para todos – mesmo sendo minhas ações uma pequeníssima gota de água nesse oceano imenso dos sistemas educacionais. Justamente, continuo, porque o compartilhamento com muitos parceiros me leva a não esmorecer, apesar dos momentos de desânimo. Pelo companheirismo constante divido com vocês todos este momento.
Devo confessar que a responsabilidade por assumir a Cadeira nº 27 nesta Academia me pesa. Coloca para mim um novo compromisso, cuja dimensão é dada pelo seu Patrono Theodoro Augusto Ramos, e por aqueles que me antecederam nesta mesma Cadeira, que tem como Fundador Egon Schaden, e como ocupantes, o Rev. Jorge Bertolazzo Stella e Scipione Di Pierro Neto, a quem sucedo.
Theodoro A. Ramos (1895 – 1937) teve atuação destacada em quatro campos: o da engenharia, o do ensino, o de políticas públicas e o das ciências, em particular no campo da matemática e da física. Relembrar sua atuação nos faz evocar seu importante papel no grupo de cientistas e intelectuais que compuseram, entre os anos de 1933 e 1934, a Comissão para implantação da Universidade de São Paulo, designada pelo Secretário da Educação Doutor Cristiano Altenfelder Silva, que reorganizou a Comissão anterior, agregando a ela novos membros. O passo agora era efetivar de fato a criação da Universidade de São Paulo. Na concepção dessa Universidade, pela ideia defendida pelos membros da Comissão, esteve presente, conforme expressão de Armando Sales Oliveira, a ideia de se ter um foco de pesquisas básicas e um centro de cultura, “capaz de influir eficazmente no desenvolvimento dos altos estudos e na renovação dos métodos de trabalho científico.” Isto se concretizaria pela criação e implementação de uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. A preocupação com o funcionamento de uma FFCL desde os inícios dessa Universidade foi a de que a formação de profissionais de alto nível não fosse apenas operacional e funcional, mas, que a Universidade pudesse oferecer uma base de cultura e erudição aos jovens estudantes, dando ao ensino um cunho científico e de alto valor intelectual geral – filosofia, letras, história, ciências básicas – com pesquisas e estudos de ponta (Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1934-1935, Empreza Gráfica da Revista dos Tribunais,1937). Theodoro A. Ramos, homem de vasta cultura, professor da Escola Politécnica, foi nomeado justamente o primeiro Diretor da FFCL, e, por designação do Governo, seguiu para a Europa, onde estabeleceu contatos com os governos da França, Itália e Alemanha, através dos quais firmaram-se acordos que permitiram ao Governo de São Paulo contratar, em condições excepcionais, a partir de 1934, professores destacados em vários ramos da pesquisa, da cultura e do ensino, desde as áreas de literatura, sociologia, direito, geografia até às áreas de química, análise matemática, estatística, mineralogia, física, etc.
Nos anos anteriores, logo após a Revolução de 1930, Theodoro A. Ramos tinha atuado fortemente na reorganização do país, e como Secretário da Educação no Governo João Alberto, influiu diretamente na reordenação do ensino superior. Como prefeito da cidade de São Paulo, no Governo do General Waldomiro Lima, destacou-se pelos cuidados com a urbanização e saneamento. Mudando-se para o Rio de Janeiro, em meados da década dos anos 1930, exerceu por um tempo o cargo de Diretor do Departamento Nacional de Educação, atuando pela melhoria do ensino superior, completando seu perfil de homem com forte atuação sócio-educacional, nesse nível de ensino, preocupado sempre com a formação mais sólida das novas gerações.
Mas, Theodoro Augusto Ramos foi homem de inserção multifacetada, e atuou firmemente também nas áreas da engenharia e nas matemáticas, destacando-se por sua competência. Nascido em São Paulo, Capital, foi estudar na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, formando-se em Engenharia Civil. Morreu jovem ainda, aos 42 anos, no Rio de Janeiro, porém, deixou sua marca nos vários campos em que atuou.
Destacou-se sempre pelos estudos em Matemática e, em 1916, aos 21 anos, publica seu primeiro trabalho original – “Notas sobre as curvas esféricas reversas” – na Revista da Escola Politécnica, e depois faz sua tese, obtendo o grau de Doutor em Ciências Físicas e Matemáticas, na mesma Escola, em 1918, com o título “Sobre as funções de variáveis reais”. Em 1919 torna-se professor na Escola Politécnica de São Paulo, onde ocupou a cadeira de “Vetores e Geometria Analítica, Geometria Projetiva e Nomografia”, e, depois, a cadeira de “Mecânica Racional e Cálculo Vetorial”. Sempre se dedicou ao aprimoramento e aprofundamento do ensino da Matemática e foi o primeiro a introduzir no Brasil o ensino do Cálculo Vetorial, como instrumento indispensável ao estudo da Mecânica. Publica vários trabalhos científicos e participa de congressos na Europa. Vou destacar um de seus trabalhos, que, por sua publicação tardia (foi apresentado em 1923, mas só publicado em 1929) e também pelas parcas condições de divulgação da ciência brasileira à época, deixou de compor o rol de discussões internacionais sobre um dos aspectos ligados à Teoria da Relatividade. A apresentação desse trabalho em 1923 na Academia Brasileira de Ciências, com o título: “A theoria da Relatividade e as Raias Espectraes do Hydrogenio”, mostrou sua erudição científica, sua atualização teórica, e sua criatividade. Logo após a publicação da Teoria da Relatividade Geral, colocava-se entre os cientistas a questão da necessidade ou não de se utilizar essa teoria geral para o sistema atômico, surgindo o problema de se analisar o espectro do átomo de hidrogênio partindo diretamente dessa teoria. Foi esse o problema abordado por Theodoro Ramos, apresentando trabalho, em novembro de 1923, na Academia Brasileira de Ciências, mostrando resultados matemáticos que evidenciaram contribuições muito pequenas provenientes da Relatividade Geral na análise do espectro atômico. A importância da contribuição científica desse trabalho é vista quando ele é comparado a outros trabalhos similares publicados à época, especialmente o de Theodor Wereide (1923) e a tese de doutoramento do matemático mexicano Sandoval Vallarta no MIT (1924), que mostraram os mesmos resultados: para o caso de massa e carga típicas dos átomos, as correções provenientes da relatividade geral eram desprezíveis. Mas, o mérito de Ramos foi recomposto na História da Física por vários autores que analisam em detalhe suas contribuições.
Outra de suas facetas como profissional, agregada à sua atuação no ensino e na pesquisa, foi seu desempenho como Engenheiro, tendo sido um dos mais profundos conhecedores da técnica do cimento armado. Neste campo, entre outras coisas, dirigiu a construção do serviço de águas e fontes luminosas do Parque do Ipiranga, chefiou a Comissão de Obras Novas no Estado, e dirigiu a parte final da construção da adutora do Rio Claro; foi o construtor da adutora de Santo Amaro, contribuindo para soluções importantes no âmbito da distribuição de águas na Capital do Estado de São Paulo.
Theodoro A. Ramos, por sua dedicação, versatilidade, pela sua cultura filosófica, por seu saber profissional, e pela liderança que exerceu, é, sem dúvida, um dos expoentes na história da Universidade em nosso país, destacado professor e cientista.
Quero, ainda, prestar uma homenagem ao meu antecessor, Professor Scipione Di Pierro Neto, de quem tenho boas lembranças. Partilhamos o espaço profissional do Colégio de Aplicação da USP, onde já era uma referência quando lá estagiei e trabalhei, e, bem posteriormente, fomos colegas na PUC-SP. Scipione, de temperamento empreendedor, foi um dos renovadores do ensino de matemática na educação básica do Brasil. Autor de inúmeros livros didáticos dedicados a esse ensino, foi incansável defensor de uma melhor formação de professores, compreendendo bem a árdua tarefa de ensinar a crianças e jovens a linguagem lógica e abstrata da matemática e seus conceitos. Com seus livros procurou atingir essa meta, num esforço nada desprezível, pondo nessa missão toda sua experiência de muitos anos de trabalho no magistério “secundário” (hoje 5ª a 8ª série) e médio.
Theodoro A. Ramos e Scipione Di Pierro Neto, em suas vidas profissionais, enfrentaram com denodo o mesmo desafio: o da melhoria da qualidade do ensino, o do aperfeiçoamento da formação humana no contexto da civilização ocidental, num país que buscava, e busca, ser uma Nação, na acepção plena da palavra. Cada um dos meus antecessores respondeu a desafios educacionais em seus contextos de formação e profissão, desafios diferentes em suas características, mas com um lastro comum, que foi a luta por uma qualidade educacional melhor, mais aprofundada e adequada às gerações vindouras. Em temporalidades diferentes, o mesmo propósito.
Tempos históricos: eis um fator básico na determinação da educação. Por isso, reflito neste momento, sobre as reorganizações sócio-culturais que se processam em nossos dias e os desafios que agora se colocam à educação. Na contemporaneidade experimentamos um ritmo de diferenciação social, cultural, tecnológica aparentemente nunca antes experimentado. Mesmo o ambiente natural se transforma pelas mãos dos homens com tal velocidade que se torna difícil tomar consciência do que se passa e avaliar seus impactos no dia a dia. A geração e circulação da informação no ritmo que se faz, e nas formas em que se faz, sem controles e verificação, criam situações imponderáveis. Por outro lado, nossos conhecimentos batem em fronteiras que mostram sua fragilidade. A realidade social constrói, derruba e repõe mitos num espaço de tempo curto, inimaginado. A mídia cria personagens, heróis e vilões, e os põe no ostracismo da noite para o dia.
Não podemos ignorar a tensão que está hoje colocada nos sistemas educacionais pelas condições sócio-culturais que vivenciamos. Gestores e professores diante de crianças e jovens bem diversificados, com pensamentos, atitudes e comportamentos construídos num contexto social complexo em que a novidade, a moda, o fugaz, o passageiro assume papel determinante, tanto pelo sistema de consumo que temos hoje, como pelo sistema das mídias, através do qual o desejo de ter é permanentemente estimulado e onde a tragédia humana é tomada como filme ou como novela, onde os deslizes morais, as violências de diversas naturezas e as mortes perdem sua concretude e passam a ser tomadas como virtuais.
Diversidade é a palavra que dá o tom das preocupações atuais em vários campos. Não sem razão. O momento histórico que vivemos, as questões de sobrevivência que nos têm sido colocadas, seja nas questões do ambiente, da vida, no âmbito social e político, tudo vem nos trazendo à reflexão que a diversidade de condições que o planeta que habitamos tem, que as pessoas que o habitam têm, precisa ser considerada para o próprio bem da humanidade. O que nos diz essa palavra: diversidade? Multiplicidade, reconhecimento das diferenças, da heterogeneidade, da variedade de ambientes sócio-biogeográficos, de situações, das diferenças nos sentimentos, na cultura, na religião, nos modos de ser, de habitar, de conviver com seu ambiente físico e social. Na contemporaneidade nos colocamos a necessidade de se ter consciência clara da presença do diverso, em convivência.
Essas condições desafiam hoje o papel dos educadores e das escolas. Trazem preocupações éticas – tolerância, respeito ao diferente, direitos e responsabilidades – e preocupações sociais – respeito ao direito de viver com dignidade, pois, reconhecimento e respeito à diversidade não quer dizer descompromisso com desigualdades que aviltam a própria condição humana. Nessa direção a educação pode ajudar no processo de criação de condições de maior equidade social pelo seu papel de disseminadora de conhecimentos e de formadora de valores: uma certa constante no mar de variáveis, como talvez pudesse nos falar Theodoro Ramos. Porém, as soluções não são simples e, parece, não estão dadas. Sintoma disto são os questionamentos constantes sobre qual currículo deveremos ter ou construir na escola, quais dinamismos da relação didática mudar ou enfatizar, que valores, práticas e atitudes devem compor as relações educacionais. E a questão crucial: afinal o que entendemos por qualidade da educação?
A busca de novos currículos educacionais, de novas relações de ensino, e de uma formação ao mesmo tempo polivalente e diversificada de professores, as propostas de transversalidade de conhecimento em temas polêmicos, mostram que a área educacional encontra-se no meio desse movimento em busca de alternativas formativas, tanto para os próprios formadores, como para os alunos. Estamos todos, com certeza, partilhando dessa angústia: os professores diante de seus alunos, os gestores em suas redes de ensino, os formadores de professores, os pesquisadores com suas dúvidas e perguntas. Há muita perplexidade no ar e temos tido poucas repostas efetivas, tal o torvelinho dos tempos atuais. Convido-os à reflexão sobre a condição educacional das grandes massas populares e convido-os à luta pela civilização humana. Este é um desafio.
A Academia Paulista de Educação não tem deixado de discutir questões candentes da educação em nossos dias, quer por documentos elaborados e encaminhados, quer por seminários e debates. Caros colegas Acadêmicos: creio que, com nossas experiências de vida na educação, em diferentes esferas, também podemos contribuir com ideias e perspectivas de ação que ajudem os responsáveis pelas redes de ensino e pelo próprio ensino, a navegar com um pouco mais de segurança por esses mares agitados e cambiantes que traduzem nosso tempo atual.
Quero finalizar agradecendo a honra que me é concedida de compartilhar com vocês este espaço que é a Academia Paulista de Educação e, agradecer o crédito com que me agraciaram. Na pessoa do Senhor Presidente da Academia, Professor Doutor João Gualberto de Carvalho Meneses agradeço a recepção amiga de cada um de vocês. A todos os meus parceiros de jornada, família, amigos, colegas de trabalho, alunos, meu muito obrigada pelo constante estímulo.