Discurso de Posse da Acadêmica Myriam Krasilchik
Discurso de Posse da Acadêmica Titular
MYRIAM KRASILCHIK
24/3/1998
Agradeço à Academia e aos meus colegas da Faculdade de Educação o privilégio que me proporcionaram de realizar esta cerimônia na casa onde venho trabalhando desde os meus tempos de professora de Biologia do Colégio de Aplicação, onde trilhei todos os passos da carreira docente na USP e para onde volto agora após trabalhar quatro anos na Vice-Reitoria da Universidade de São Paulo.
Agradeço ainda a oportunidade de falar sobre Ernest Marcus, patrono da cadeira 34, que passo a ocupar, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que foi meu professor e provocou algumas das primeiras reflexões sobre a Ciência e seu papel, ainda como caloura, da seção de História Natural que funcionava na A.L. Gletle. Lembro-me da sua expressão muito típica de preocupação quando, na prova oral do vestibular, pediu um exemplo de anfíbio e eu respondi: “sapo e tartaruga”. Perdoada pelo meio erro, passei no exame, entrei na Faculdade e comecei a frequentar as aulas e a lutar para entender as relações e as complexas análises filogenéticas que fazia, e que dependiam de um conhecimento prévio que os alunos ainda não tinham.
Aos poucos fui me desenvolvendo, entendendo e apreciando com o auxílio de seus assistentes, Martha Vanucci, Diva Diniz Correia e Michel Sawaya o significado das análises e correlações estabelecidas.
O Professor Marcus doutorou-se na Universidade de Berlim em Zoologia, onde obteve a nota “magna um laude”. Lá, foi assistente auxiliar, dedicando-se ao estudo de Coleóptera, Tardipados e Bryozoa, tornando-se o maior conhecedor na época desse grupo.
Em 1936, convidado pelo governo do Estado de São Paulo para ocupar a cátedra de Zoologia da Faculdade de Filosofia, fez concurso brilhante e mudou-se para o Brasil, fugindo do nazismo. Aqui mostrou um contínuo interesse de ver novas formas. Na época da guerra, não podiam ir ao litoral, por sua nacionalidade, e passaram a estudar animais de água doce.
A propósito, lembro-me de um seu comentário que na época muito me impressionou pela diferença das situações dos dois países. Dizia que, na Alemanha, quando um professor de Zoologia ficava doente, todos os aspirantes ao lugar ficavam profundamente interessados na evolução do seu estado de saúde, na esperança de que aparecesse uma vaga.
Mantinha um intenso intercâmbio internacional, recebendo ofertas de coleções para estudo e contínuas consultas sobre problemas zoológicos dos mais variados.
Nós, os alunos, ficávamos muito orgulhosos de ver especialistas internacionais como a zoóloga Heymann, do Museu de História Natural nos Estados Unidos, que vinham ao Brasil especialmente para discutir e estudar com o nosso professor.
Era de uma disciplinada constância no trabalho do qual partilhou sempre a sua mulher, companheira D. Eveline. Embora nunca tivesse nenhum compromisso formal com a Universidade, esta sempre trabalhou tenazmente mesmo após a morte do Professor Marcus. Formaram um par extremamente afinado, compartilhando ideias, pesquisas e uma harmoniosa vida em comum.
Creio também que o ilustre cientista que nasceu e viveu em Berlim durante cerca de 40 anos e 30 em São Paulo nunca compreendeu plenamente os alunos brasileiros com os quais convivia e que considerava, entre outros atributos consumistas e indisciplinados.
Lembro-me do Professor Marcus deplorando que as estudantes comprassem batons em lugar de livros e de um outro divertido incidente que ilustra a essa postura. Eu morava em Santana quando, numa manhã, fui atender a porta e me deparei com o casal. Explicaram-me que, como faziam todo o domingo, tinham ido ao Horto Florestal para coletar e lá, surpreendentemente, uma calça ótima que tinha trazido da Alemanha, cerca de 30 anos antes, havia se rasgado. Consternados pelo inexplicável desastre, foram à minha casa pedir agulha e linha para reparar o estrago.
O Professor Marcus sempre acreditou em um ensino prático. Organizou coleções de lâminas e pranchas para que pudéssemos trabalhar com os espécimes ou detalhados esquemas que ilustravam o que ensinava na aula teoria. Era lendária a sua exigência por rigor de observação, na elaboração e testes de hipóteses. Conta-se que uma vez estava esperando o bonde na Avenida São João e, quando o veículo parou e alguém esbaforido lhe perguntou se este ia para cidade, respondeu então ao cidadão com uma frase que ficou emblemática: “Depende do seu conceito de cidade”.
Organizava muito antes da instalação das bases do Instituto Oceanográfico e do CEBIMAR partes do curso de Zoologia em Ubatuba e em Santos, onde coletávamos, e em laboratórios improvisados, e fazíamos um emocionante estudo prático no próprio local de coleta, relacionando as formas estudadas ao habitat onde viviam.
Mantinha um estreito relacionamento pessoal com os alunos, partilhando dos nossos problemas pessoais, familiares e profissionais.
Frequentávamos a sua casa e as reuniões eram ansiosamente esperadas pelo convívio inteligente, pelas acirradas controvérsias e também pelo esmero do buffet que preparavam.
Sempre se preocupou com a preparação de professores. Mesmo depois de formados, quando minha turma por força das circunstâncias da época dispersou-se para dar aulas de História Natural no interior do estado, continuou nos acompanhando e orientando na preparação e execução dos cursos pelos quais éramos responsáveis nos colégios.
A minha preocupação com a alfabetização em Ciência data desse período.
Desse interesse partilhava o Professor Michel Sawaya, que também ocupou a cadeira da qual hoje tomo posse. Essa dedicação teve oportunidade de ser posta em prática quando dirigiu e trabalhou algumas das atuais unidades da UNESP em Marília e Rio Claro. Aproveito o momento para relembrar sua filha, nossa colega e amiga Marilda, que sempre partilhou com o grupo de ensino de Biologia a preparação dos Encontros Perspectivas do Ensino de Biologia.
O professor Marcus nunca parou, desejando sempre de acordo com suas palavras “empurrar a zoologia para diante”
Jamais esqueci da amargura que perpassava o seu discurso quando recebeu o título de professor emérito, dizendo que os dois momentos mais importantes da vida acadêmica eram o do doutorado, que representava o começo, e o do professor emérito, que representava o fim.
Por força dos momentos atuais tenho pensado muito na evolução da Universidade de São Paulo, nas suas perspectivas de futuro e no seu papel na educação nacional. Ao contrario de muitas das universidades norte-americanas importantes no cenário internacional que nasceram como instituições de ensino e só no fim do século XIX passaram a ser instituições de pesquisa, a USP começou cosmopolita e por força da influência dos pioneiros estrangeiros com uma decisiva vocação para a pesquisa que se irradiava do núcleo central da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, chegando, em muitos casos, às escolas profissionais. Hoje, as demandas para as Universidades vêm passando a exigir cada vez mais a melhora e valorização do ensino das atividades práticas e de extensão.
O grande desafio será fazer com que não haja desequilíbrio e a USP preserve a sua condição de universidade de pesquisa, garantindo um clima intelectual imprescindível à integração e à aplicação do conhecimento e ao ensino componentes que E. Boyer considera essenciais à vida acadêmica. Assim, exercerá o seu papel de instituição pluralista, onde ideias, controversas são debatidas, onde seus docentes assumem responsabilidade e participem de uma efervescente e saudável disputa de ideias, discutindo problemas nacionais e internacionais, propondo soluções alternativas e desenvolvendo projetos de pesquisa e de ensino em esquemas conceituais que mantenham o espírito crítico, servindo à plateias diversas.
Nesse ambiente, a Faculdade de Educação tem papel primordial de liderar movimentos que levem a redefinição do processo educativo com uma compartilhada visão das exigências morais, intelectuais e sociais do nosso tempo. Não podemos abandonar a nossa missão, o papel de criar mentes livres e corajosas que não temam se contrapor à maioria e que usem critérios rigorosos para tomar decisões. Algumas das tendências atuais a mecanizar a preparação de docentes como se fosse uma mera atividade técnica é assustadoramente perigosa.
É preciso formar educadores que, além de conhecer a realidade das escolas de 1º e 2º graus, sejam investigadores na sala de aula e tenham firmes conhecimentos teóricos sobre os quais possam construir sua prática e exercer uma necessária liderança.
As associações profissionais como a nossa academia partilharão desse movimento cada vez mais urgente, dadas as pressões atuais e os grandes problemas ambientais, de saúde, de combate à pobreza e ignorância . É preciso que os cidadãos sejam bem informados e capacitados a decidir com base em critérios sólidos e rigorosos, mantendo sua integridade profissional.
Espero poder continuar contribuindo tanto nas minhas atividades na Universidade como na Academia, para continuar preparando gerações de educadores de alto nível intelectual e sensível percepção aos desafios da sociedade, que sejam capazes de trabalhar pelo prazo necessário para produzir mudanças significativas e duradouras na educação brasileira.
Não quero terminar sem agradecer à D. Amélia as boas palavras, aos colegas do IB, principalmente a Professora Elizabeth Höfling, o fornecimento de dados sobre a carreira do Professor Marcus, e ao amigo Luiz Prado pela organização desta cerimônia.