Discurso de Posse da Acadêmica Márcia Lígia Guidin.
Discurso de Posse da Acadêmica Titular
MÁRCIA LÍGIA GUIDIN
14/6/2010
1. Excelentíssimo Professor Doutor Paulo Natanael Pereira de Souza, Digníssimo presidente da Academia Paulista de Educação e da Academia Cristã de Letras.
2. Excelentíssimo.Professor Doutor Ruy Martins Altenfelder Silva, Presidente do Conselho de Administração do CIEE, e presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas e do Centro de Estudo Estratégicos e Avançados da FIESP.
3. Excelentíssimo. Doutor Luiz Gonzaga Bertelli, presidente executivo do CIEE e da Academia Paulista de História.
4. ExcelentíssimoDesembargador José Renato Nalini, Presidente da Academia Paulista de Letras.
5. Excelentíssimo Doutor Ney Prado, Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia.
6. Professor Doutor Flávio Fava de Morais, da APE e Ex-Reitor da USP
7. Professor Doutor João Gualberto de Carvalho Menezes, Presidente Honorário da APE
8. Doutora Ivone Capuano, presidente da Academia Paulista de Medicina.
Meus amigos, colegas, familiares e alunos
Senhoras e Senhores
É com imensa honra que passo a integrar a Academia Paulista de Educação, onde, como formadora de professores, editora e ensaísta, recebo a grande responsabilidade de tentar responder às expectativas dos que me elegeram, com os quais partilho a razão maior da existência desta Academia: promover a melhoria da educação nesta cidade e neste estado através de livres debates, cursos, manifestações e pesquisas. E, sobretudo,, estimular a comunidade para a grande obra da educação.
Esta Academia, que nasceu em 1970, pelo esforço de Aquiles Archero Jr., consolida, em 40 anos de esforços, sua relevância no rol das instituições educacionais paulistas que, eu, como paulista e paulistana, louvo e agradeço…
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Começo esta conversa utilizando duas frases que me valem, cada uma delas, como estimulantes epígrafes para o debate educacional. A primeira, do autor ao qual dediquei boa parte de meus estudos, Machado de Assis. E a outra, do presidente desta Academia, Paulo Nathanael Pereira de Souza. A primeira está na voz antipedagógica e escarnecedora do personagem Brás Cubas; vou ler:
“Em Coimbra, a universidade esperava-me com as suas matérias árduas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel; deram-me com a solenidade do estilo, após os anos de lei. Foi assim que a universidade me atestou em pergaminho uma ciência que eu estava longe de trazer arraigada no cérebro…”
A segunda frase, de uma objetividade e contundência inequívocas, vem retirada de uma das obras de Paulo Nathanael. Vou ler:
“Apesar de tantos cursos, tantos diplomas superiores, tantos mestres e doutores circulando pelas escolas, nunca o desempenho dos alunos foi tão desastroso e precário como nestes últimos anos. Quanto mais escolarizados os mestres, menos aproveitamento têm os alunos? O que é isso?”
Tais trechos, guardados o século que os separa, são aspectos extremos de um mesmo mal que corrói, há várias décadas, a educação do início ao fim dos ciclos: é a pedagogia do embuste, do fingimento. Um aluno de Coimbra, o Brás Cubas, ou um jovem da periferia de São Paulo (ou dos bairros centrais) muitas vezes finge que aprendeu. E tira o diploma. O professor, refém da própria má formação, ou contaminado por teorias das quais apenas ouviu o nome, finge que ensinou. E, muitas vezes, vai ser o paraninfo da turma.
Ocorre, porém, que a educação – não a do fingimento – mas a educação plena em todos os níveis, é, e sempre será, o ponto de partida para o desenvolvimento autônomo das sociedades. E, independentemente de ideologias, métodos de ponta, ensino a distância, materiais didáticos sofisticados, para se educar bem, precisa-se de bons alunos (o que Brás Cubas não foi), mas antes, de ótimos professores (concursados, contratados, visitantes) quaisquer que sejam eles, desde que bem preparados.
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Sei o que é ter tido ótimos professores. Meus filhos já me ouviram dizer muitas vezes que sou extremamente privilegiada, pois, dos 4 anos de idade (em plena década de 50) ao doutorado (já nos anos 90), sempre estudei às expensas da boa escola pública. Meus pais lutaram por uma educação de excelência para os filhos e sabiam que ela, na época, estava na escola pública, Assim, foi o Estado que pagou para eu aprender, com meus professores, a valorizar a sólida formação acadêmica.
É essa conjuntura pessoal que exige de mim retribuição à sociedade na formação de outros professores. Na boa escola brasileira que desejo para todos, Brás Cubas teria de estudar muito, e seus professores teriam de ensinar, como diz Paulo Nathanael, “o elo real entre o saber e o viver”.
Fui, na verdade, como outros contemporâneos de sorte, usufrutuária dos benefícios teóricos e das aplicações da chamada “Escola Nova”, que, desde as décadas de 1920 e 1930, reivindicava o ensino forte, gratuito e universal para todos, sem nenhuma discriminação social, sexual, racial – ensino esse tido como elemento-chave para a boa remodelação social, tão necessária na época.
Minha resposta para a sociedade aumenta muito a responsabilidade, a partir de agora, ingressando nesta academia, quando analiso o trabalho dos mestres que me antecederam: o do professor Roldão Lopes de Barros, patrono da cadeira de número 6, que ora ocupo, e o da professora Laura de Souza Chauí, minha antecessora na mesma cadeira, e grande educadora deste estado. De seus nomes, meu trabalho será sempre tributário, e nunca da mesma estatura.
Ambos, a seu tempo, uniram talento e forças na luta pela educação e contra aquela que chamo de pedagogia do fingimento. Machado de Assis nos conta que Coimbra deu um diploma imerecido a um aluno (que dele se gabava). Das escolas de Laura e Roldão, Brás Cubas não sairia bacharel tão facilmente, talvez nem passando pela progressão continuada.
Mas, para que se registre o mérito desses educadores e melhor se avalie a responsabilidade que assumo, peço-lhes licença para dar sobre eles algumas notícias.
Professor Roldão
Roldão Lopes de Barros nasceu em São Paulo em janeiro de 1884 e faleceu em agosto de 1951. Segundo sua dedicada biógrafa, a pesquisadora Hebe Boa-Viagem Costa (que aqui nos honra com sua presença), o professor viria a destacar-se em sua vida escolar precocemente. Seus professores o admiravam tanto, no colégio onde estudava, e até pensaram em encaminhá-lo ao sacerdócio (vejam que o sacerdócio era tido como meritório dos bons). Para tristeza do estudante, mas sorte de seus futuros alunos, o jovem teve de interromper os estudos formais para trabalhar. Com espírito autodidata, porém, estudou várias línguas, sobretudo o francês, que dominava perfeitamente.
Era funcionário da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, mas, graças à sua cultura geral, pôde também dedicar-se ao jornalismo, e passou a escrever para o jornal A Tribuna de Santos, onde morava, e para o Jornal O Correio Paulistano, que, como se sabe, foi o primeiro jornal diário da cidade de São Paulo.
Mesmo trabalhando em Santos, cursou com esforço o Ensino Médio na Capital, na “Escola Normal da Praça”, que hoje conhecemos como Escola Estadual Caetano de Campos. Destacado-se novamente aos olhos de seus professores, Roldão recebeu um convite para ser docente da cadeira de Pedagogia. Estava lá o começo da nova profissão.
Em 1919, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo e casou-se. Do casamento teve vários filhos, mas foi advogado apenas por alguns meses, pois a vocação era mesmo o magistério, ao qual passou a se dedicar integralmente.
Graças à facilidade com línguas, correspondia-se com especialistas em educação, europeus e norte-americanos. As ideias renovadoras que surgiram desse intercâmbio viriam a ser discutidas também aqui com outros intelectuais brasileiros, os quais desejavam fazer profundas mudanças na educação vigente: era esse o começo das reflexões e estudos para a Escola Nova. Roldão reunia-se com Fernando de Azevedo, Antonio Sampaio Dória, Oscar Freire de Carvalho, Lourenço Filho e outros apurados pesquisadores.
Em 1920, foi convidado pelo Presidente do Estado, Washington Luiz, para reorganizar e ampliar a Escola Normal do Brás, ou seja, o Instituto de Educação PaDoutore Anchieta, que, existente desde 1913, veio a se tornar, graças à sua orientação de técnicas modernas, uma das grandes “Escolas-PaDoutorão” da cidade e do estado.
Dessa realidade e excelência pedagógica pude eu participar vivamente: O Anchieta foi a escola onde estudei dos 4 aos 19 anos ininterruptamente. E minha mãe, que aqui me ouve, vai se lembrar do esforço para nos colocar a mim e a meu irmão nessa escola de primeiríssima qualidade, para a qual havia, infelizmente, sorteios disputadíssimos de ingresso.
Foi a intervenção certeira de Roldão que criou a possibilidade de muitas gerações terem uma educação sólida e rigorosa. No Instituto de Educação PaDoutore Anchieta não se fingia que estudava.
A esse mestre devo, portanto, muito mais do que a condição de patrono da cadeira que ocuparei; devo grande influência na educação verdadeira e robusta que tive.
Roldão Lopes de Barros lecionava na Caetano de Campos e treinou um grupo de intelectuais a intensificar a luta, especialmente, pela formação do professor de crianças, nas escolas normais. A escola tinha por objetivo, além do aperfeiçoamento de professores, também a preparação técnica para inspetores, delegados e diretores de ensino; ou seja, para a cadeia pedagógica inteira.
Em 1932, veio à luz, como se sabe, o célebre manifesto da Escola Nova, elaborado por Fernando de Azevedo, Nesse documento estavam as bases filosóficas e doutrinárias que já vinham orientando a reestruturação educacional no estado. Entre os signatários desse documento, estava Roldão Lopes de Barros.
O Instituto de Formação e Educação da Praça acabou, na década de 40, incorporando-se à USP, e veio a se transformar na Faculdade de Educação que hoje conhecemos. Roldão foi o primeiro Titular da Cadeira de História e Filosofia da Educação – cargo que ocupou até aposentar-se. E nessa faculdade eu também tive o privilégio de estudar. Após o bacharelado, foi a Faculdade de Educação da USP que me licenciou para o magistério.
O que me faz tributária da força intelectual de Roldão Lopes de Barros não é, porém, apenas uma curiosidade biográfica, mas sim o rigor e a luta pela qualidade do ensino responsável.
Roldão, como Laura Chaui, de quem falo adiante, lutava pela educação completa e, sobretudo, pela educação de professores: seu lema era também ensinar a ensinar, tarefa essa que me impus como professora nos cursos de Letras e Comunicação.
E o que liga o patrono Roldão à professora Laura de Souza Chauí é, como disse, muito mais do que a cadeira número 6. O que os liga é a força na luta pelo ensino público de qualidade.
Laura Chauí
Para falar sobre Laura Chauí, recorro à voz de sua própria filha, Marilena. Ao me oferecer informações pessoais sobre Laura, Marilena deixou por um momento de ser a exigente professora e filósofa para ser outra vez a filha de sua querida mãe.
Laura de Souza Chauí nasceu em 9 de julho de 1914, no Engenho de Açúcar Souza Mattos, pertencente à família, em Montes Claros, na Bahia. Aos 5 anos, veio para o interior de São Paulo, tendo ido a família morar em Pindorama, no interior do Estado, onde o avô adquirira um sítio, e seu pai, como Juiz de Paz, recebera o Cartório de Paz da região.
Como sua mãe morreu muito cedo, foi criada pelos avós. Dos 7 aos 10 anos, frequentou o Grupo Escolar de Pindorama e depois ingressou no Instituto de Educação Barão do Rio Branco, em Catanduva, onde cursou o ginásio, sempre como primeira aluna da classe. Em seguida, cursou a Escola Normal, e aos 17 anos, em 1931, formava-se professora primária no mesmo Instituto de Educação em Catanduva.
Como primeira aluna da turma durante o ginásio e a escola Normal, recebeu um prêmio: o lugar como professora no que se chamava na época de “escola isolada mista”. Tratava-se de uma escola primária na Fazenda Santa Olga, no município de Pindorama.
As “escolas isoladas mistas” possuíam uma única professora, que lecionava para os quatro anos do curso primário. Laura deu aulas para todas as séries, alfabetizou crianças e as preparou para o exame de admissão ao ginásio. Por esses méritos, recebeu, em 1936, sua primeira cadeira numa escola pública estadual, o Grupo Escolar de Pindorama.
Em 1940, casou-se com o jornalista Alberto Chauí e se mudou para a capital, onde nasceu a filha Marilena, em 1941. A seguir a família mudou-se para Catanduva, onde, em 1942, nasceu o outro filho, Alberto Francisco. Voltando todos a Pindorama, Laura passou a lecionar no Grupo Escolar da cidade.
Sempre preocupada com rumos e notícias sobre a educação, assinava a conhecida Revista da Educação, importante veículo informativo da época, para questões de ensino. Em Pindorama, foi dirigente do Orfeão Escolar, encarregada das festas cívicas, e organizou uma biblioteca voltada para obras de ficção e poesia – que foi a primeira biblioteca de Pindorama.
Em 1952, Laura foi aprovada com louvor no concurso para Diretora de Escola. Sua primeira diretoria foi na pequena cidade de Paraíso. Depois foi para um grupo Escolar no vilarejo de PeDoutoranópolis, próximo de Votuporanga e Fernandópolis.
Conta-nos sua filha que a cidade possuía três ruas de terra, a Prefeitura e o Grupo Escolar. Este não tinha água encanada nem eletricidade, e não possuía o que, na época, se chamava Caixa Escolar – ou seja, meios de atendimento dos alunos mais pobres, que já então poderiam receber do governo o material escolar. Em um ano, Laura conseguiu verbas para instalar água encanada, eletricidade, a Caixa Escolar e uma pequena biblioteca.
Em 1956, veio para São Paulo com a família e foi ser diretora do Grupo Escolar de Vila Jacuí, em São Miguel Paulista. Laura saía de casa, todos os dias, às 5 horas da manhã, tomava um ônibus que a deixava, duas horas depois, numa encosta de terra por onde subia a pé para chegar ao Grupo Escolar. A escola funcionava em barracões com telhas de lata. Inconformada com a precariedade e insalubridade, Laura conseguiu doações e reconstruiu o Grupo Escolar.
Mas o feito mais importante foi conseguir a inclusão educacional dos filhos dessa vila operária muito pobre que tinham deficiência mental. Adepta ferrenha dos princípios da Escola Nova, conseguiu com a Delegacia de Ensino que fosse instituída uma classe especial para essas crianças, com uma professora especializada, que os alfabetizou com grande sucesso. Estamos falando da década de 1950!
Era intenção de Laura, antes da aposentadoria, prestar concurso para Delegada de Ensino, concluindo a carreira. Mas, então, optou pela carreira da filha, que, já professora da USP, tinha ido estudar na França. Sua filha Marilena Chauí nos conta de própria voz:
“Foi então que minha carreira atrapalhou a dela. Eu tinha duas crianças pequenas, fui para a França com as crianças, mas não era possível seguir cursos, ir a bibliotecas e iniciar a redação de minha tese tendo que cuidar dos filhos pequenos. Minha mãe, então, decidiu aposentar-se e cuidar de meus filhos. Foi à França e trouxe as crianças de volta para o Brasil, e cuidou delas durante quase dois anos.
“Sem minha mãe, eu não teria feito o doutorado, não teria feito minhas outras teses, não teria uma carreira. Ela não concluiu a dela para que eu pudesse ter a minha… Meu irmão e eu sabemos que não teríamos sido nada nem feito coisa alguma se não fosse pela dedicação absoluta de minha mãe. Exigente com nossos estudos e nossos costumes, severa quando necessário, desprendida, companheira fiel de todas as horas, guia e conselheira, generosa, inteligente, vivaz, cultivada: eis Laura Chauí, minha mãe.”
Aos 90 anos, um de seus atos finais pelo valor da educação foi tomar um avião a Paris, para assistir à entrega do título de doutora honoris causa à filha Marilena. Na plateia, como mãe e professora, como nos contou a mídia, chorou de alegria.
Como Roldão, Laura foi ferrenha defensora da Escola Normal, e sempre julgou que a queda da qualidade do ensino fundamental decorria do fim das normalistas, que recebiam formação esmerada em várias áreas do saber.
Assim, para ensinar, precisa-se aprender bem, pensam meus antecessores nesta casa. Inspirados ambos na igualdade entre os homens e no direito de todos à educação, lutaram por um sistema de ensino público, livre e aberto, principal meio efetivo de combate às desigualdades.
O que eles fizeram, fizeram-no por nós todos neste breve século XX, neste estado e nesta cidade,
Continuemos pois a ensinar professores a ensinar. No pouco em que já intervim pela educação, e no que ainda posso intervir, estão meus agradecimentos aos pensadores atuantes deste país, dentre eles, Roldão Lopes de Barros, Laura de Souza Chauí e todos os confrades desta academia que ora me acolhe.
MUITO OBRIGADA.
Márcia Lígia Dias di Roberto Guidin