Discurso de Posse da Acadêmica Laura de Souza Chauí
Discurso de Posse da Acadêmica
LAURA DE SOUZA CHAUÍ
19/11/1990
Senhor Presidente da Academia Paulista de Educação
Senhores Acadêmicos
Senhores Componentes da Mesa
Senhores e Senhoras
Entre surpresa e confusa recebi o convite para ser um dos membros desta Academia Paulista de Educação. Só posso ver nesta honra que me conferiram a exuberância da generosidade destes amigos que procuram homenagear uma longa carreira sem outro mérito senão o de havê-la exercido com honestidade e doação total. Eu seria irreverente e ingrata se recusasse esta carinhosa expressão de amizade.
Alguém já disse que “encargos de amizade não se recusam sem pesar nem também sem temeridade se devem aceitar”.
Diante de tal dilema decidi: antes temerária que mal agradecida.
E assim, na falta de algo melhor, lhes trago meu coração amigo e o meu desejo de não desmerecer da confiança de meus confrades.
O que também me estimulou a aceitar esta honra foi a certeza de saber que não vim para o meio de desconhecidos, mas para o meio de pessoas que aprendi a estimar e admirar, para o meio de educadores que se colocaram há muito na primeira linha da cultura paulista e por que não dizer da cultura brasileira.
Eu agradeço pelas palavras de boa vinda. Elas tocam-me tão mais de perto quanto considero que, além do calor que lhes dá a circunstância de virem de tão ilustres mestres, têm para mim outro aspecto que positivamente me comove: elas vêm de Hercília Castilho Cardoso, uma alma tão nobre tanto pela inteligência como pelo coração, que conheço, estimo e admiro há vários anos.
Avalio devidamente a responsabilidade que me confere a conquista de uma cadeira nesta Academia, sobretudo a de número 6, cujo patrono é Roldão Lopes de Barros e para suceder d. Maria do Carmo de Godoy Ramos, sua primeira titular.
Não poderia ser mais árdua a missão. Embora o elo que nos une seja a Educação, conhecendo a vida e a obra dos dois, pude sentir o quanto sou pequena diante do que fizeram.
Roldão Lopes de Barros, emérito educador contemporâneo, representou aquela extraordinária plêiade de autênticos educadores de São Paulo. A simples menção de seu nome é bastante para chamar à responsabilidade aquela que por beneplácito dos senhores acadêmicos deverá ocupar esta cadeira de número 6. Não tive a felicidade de conhecer pessoalmente o professor Roldão Lopes de Barros.
Falarei deste professor de personalidade tão marcante baseada em dados fornecidos por seus familiares e ex-alunos. Como cidadão e como chefe de família foi íntegro e honesto. Como professor, o seu vulto resplandece ainda hoje e, toda sua plenitude na galeria dos grandes educadores brasileiros.
Filho de José Lopes de Barros e de d. Gertrudes Ferreira de Souza Barros, nasceu Roldão Lopes de Barros em São Paulo, no dia 30 de janeiro de 1884. Iniciou seus estudos aos 5 anos numa escola particular, onde permaneceu até os 9 anos, quando o pai faleceu.
Foi aluno interno do Colégio Coração de Jesus, revelando-se aluno de invulgar inteligência. Era desejo dos padres do colégio fazer dele um sacerdote. Interrompeu os estudos para auxiliar a família. Foi por vários anos funcionário da Companhia de Estradas de Ferro São Paulo Railway. Autodidata, aproveitando seus dotes intelectuais, ingressou no jornalismo, trabalhando na Tribuna de Santos e no Correio Paulistano em São Paulo. Cursou depois a Escola Normal Secundária da Capital, hoje EEPSG Caetano de Campos, destacando-se com tal brilhantismo que recebeu distinção em todas as matérias e prêmios de mérito intelectual como a nomeação para a cadeira de Pedagogia. Casou-se nesta época e foi pai extremoso de 9 filhos.
Em 1919, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo. Os amigos, carinhosamente, o chamavam de “Biblioteca Ambulante”, devido ao grande número de livros que sempre lhe enchiam os bolsos. Advogou apenas alguns meses. Sua vocação era mesmo o magistério e a ele se dedicou integralmente.
Convidado pelo Presidente Washington Luiz Pereira de Souza, organizou a Escola Normal Padre Anchieta. Graças às suas realizações, seu nome cresceu em prestígio nos meios educacionais. Ocupou o cargo de vice-diretor do Instituto de Educação Caetano de Campos; foi professor do Liceu Franco-Brasileiro; fundador e diretor e professor do Colégio Rio Branco e do Colégio Pedro de Toledo. Foi diretor substituto da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo; professor e examinador dos colégios Santo Agostinho, Santa Inês e Colégio Des Oiseaux.
Revelou-se grande conhecedor da alma humana, remodelando completamente os antiquados métodos existentes nos estabelecimentos de assistência a alunos carentes, quando organizou, orientou e foi diretor do Orfanato Dona Ana Rosa. Aí criou oficinas de encadernação, douração, sapataria, marcenaria, gráfica; criou também a banda de música do colégio que chegou a ser uma das melhores de São Paulo.
Nunca se descuidou da formação moral e religiosa de seus alunos.
Seu último cargo no magistério foi o de professor catedrático de História e Filosofia da Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
A par de todas estas lutas, em 1932, apesar de já ter dois filhos na linha das trincheiras, não ficou alheio ao movimento revolucionário.
Falava muito bem inglês, italiano e era profundo conhecedor da língua francesa, que falava com perfeição. Quando da visita dos reis da Bélgica a São Paulo, fez parte da comissão de recepção, recebendo deles grandes elogios pelo puríssimo francês e por seus atualizados conhecimentos de Pedagogia e Psicologia. Em seus últimos anos de vida, já aposentado, distraia-se com a leitura e meditação do Evangelho.
Morreu Roldão Lopes de Barros com a serenidade de ter cumprido o seu dever e a certeza de ter transposto os umbrais da história Pátria num halo de glória. Viveu sem ostentação com a simplicidade de seu caráter que nunca se entonteceu com as grandezas da terra. Seu nome foi escolhido para patrono do Centro de Pesquisas Pedagógicas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo; deu nome a uma rua de São Paulo, ao Instituto de Educação da Aclimação e a uma EEPSG da Mooca.
Sua figura e seu nome permanecem com o mesmo brilho e ressonância daquilo que efetivamente realizou.
Sobre Maria do Carmo de Godoy Ramos pareceu-me mais fácil falar porque eu a conheci e com ela convivi alguns a nos aqui na Liga do Professorado Católico.
A vaga que d. Maria do Carmo deixou e terei a honra de ocupar, seguramente sabem todos que não lhe dão uma substituta, pois de todo impossível, tal o seu alto espírito e a lição de vida meritória consagrada à causa do saber e do coração.
Tentarei, embora imperfeitamente, continuar o seu trabalho dignificando o seu nome e reverenciando sua memória.
Quem convivesse com d. Maria do Carmo Godoy Ramos, de figura tranquila, meiga, sorriso carinhoso, sempre com uma palavra certa, não poderia supor o potencial criativo de que era dotada.
Veio ao mundo aos cinco dias do mês de julho. Filha de Adão Avelino de Godoy e de Ana Elisa de Melo Godoy, nasceu em Serra Negra, Estado de São Paulo. Fez o curso primário no interior do Estado e em 1922 formou-se pela Escola Normal Padre Anchieta, da Capital.
Ainda muito jovem casou-se com o Professor Gastão Ramos, diretor da escola onde ela iniciou sua carreira como substituta efetiva. Como dois bandeirantes percorreram cidades e cidades do Estado, plantando o alfabeto.
Sua vida profissional foi intercalada com a formação de uma rica família, alicerçada nos mais sadios princípios. São seus filhos: Carlos Gastão, Maria Isabel, José Gastão, Carmen Lydia e Ana Elisa, todos casados e formados em cursos superiores.
Sempre incentivada pelo marido, galgou os degraus da carreira iniciada em Pirassununga, passando por Araras, São Bernardo do Campo e Capital. Na EEPG Almirante Barroso, já diretora, trabalhou de 1938 a 1957. Foi uma gestão profícua. Aí iniciou uma profissionalização: aulas de marcenaria e economia doméstica. Criou o Orfeão Escolar e não se descuidou de uma prática de esportes.
Aposentou-se como inspetora escolar na DE de Mogi das Cruzes, aos 70 anos. Foi substituta, professora efetiva, secretária de Delegacia de Ensino, diretora de escola e aposentou-se, como já disse, no cargo de inspetora escolar.
Sempre no afã de melhor desempenhar a função, participou de vários cursos de Metodologia, Ensino Religioso, seminários, simpósios, conferências. Pertenceu a várias instituições e foi presidente de diversas delas como Liga do Professorado Católico, Movimento de Arregimentação Feminina. Recebeu inúmeras láureas: a Cruz do Anhembi, o Colar de João Ramalho e de Pedro Taques, medalha de Manuel da Nóbrega, cartão de ouro de patrocinadores da Semana de Anchieta – Amigos da Cidade de São Paulo – Instituto Histórico e Geográfico, além dos títulos de Mestre do Ano e de Mulher do Ano. Quando em 1980 o Papa João Paulo II veio ao Brasil, coube-lhe a honra de entregar-lhe uma estátua de Anchieta.
Em sua gestão como presidente da Liga do Professorado Católico adquiriu para a entidade as Casas do Professor de São Paulo, que recebeu o nome de Casa do Professor Maria do Carmo Godoy Ramos e a Casa de São Vicente, à qual foi dado o nome de Casa do Professor Carolina Ribeiro.
Após as iniciativas e os relevantes serviços prestados que tanto engrandeceram o magistério, já aposentada, d. Maria do Carmo, com o risco da própria saúde, permaneceu firme na luta.
Se nada mais d. Maria do Carmo tivesse feito em seu trabalho persistente e incansável, seria suficiente a sua luta na divulgação do nome e do trabalho de Anchieta no Brasil. Sensível ao Bom, ao Belo e ao Eterno, por sua iniciativa foram instituídos: Semana de Anchieta de 3 a 9 de junho – Dia Nacional de Anchieta a 9 de junho, Concurso Anchieta anualmente em todo o Estado e culminando esta grande caminhada com a beatificação de Anchieta, cerimônia em que esteve presente do Vaticano, em Roma. Anchieta teve em d. Maria do Carmo uma ardorosa admiradora. Cantou-lhe as glórias, enalteceu-lhe os feitos, amou-o profundamente.
Vemos, pois, que há herdeiros naturais de certas benesses do acaso. Há outros, porém, que ilegítimos, devem fazer por merecê-los.
Tentarei.
Chego a esta casa num momento de crise para a Educação Nacional. É bem verdade que sempre foi um lugar-comum, em nossa terra, criticar a precariedade do ensino e nem sempre procurar uma solução cabível. E assim os erros têm sempre se somado aos erros, os defeitos aos defeitos, os abusos aos abusos e o acervo de males sobe de tal modo que pede sempre uma solução.
A maneira como tem sido formado o professorado primário, digo primário porque é na base que os males têm começado, a ausência de cultura e de preocupação pedagógica, a ausência de matérias indispensáveis ao ensino, a despreocupação com as atividades extracurriculares, anualmente agravam mais a situação aumentando o número de professores despreparados, sem qualificação intelectual, profissional e cultural, com raras exceções.
Sem saudosismo; o professor primário era formado racionalmente, em curso regular de nível quase superior. A pedagogia e a metodologia faziam parte do currículo profissional. Ensinava-se psicologia aplicada à educação. O diploma era, na verdade, com raras exceções, um atestado de honesta formação intelectual.
A velha Escola Normal, suprimida nos anos 70, considerada arcaica e ineficiente, não foi substituída por outra competente, ou reformulada segundo os novos padrões.
Conclamo neste momento os educadores aqui presentes, a Academia Paulista de Educação, a Liga do Professorado Católico, a Secretaria Municipal de Cultura: unamos nossos esforços não para regressar à velha Escola Normal, que na verdade tinha suas deficiências mas, para recuperar sua ideia central e num esforço conjunto levar o professor conscientemente a conquistar o espaço que lhe é devido.
Unamo-nos para dar à nossa escola uma feição que gere segurança. Ajudemos a repensá-la. Que não seja só uma escola para instruir (nem sempre bem observado), mas que seja ao lado da instrução, da transmissão de conhecimentos, do favorecimento de habilidades, ela seja sempre uma escola que eduque, forme hábitos, mude procedimentos.
Um ilustre membro desta Academia, alguém que todos nós amamos e respeitamos muito, de quem hoje sentimos a falta, o Professor Antonio d’Ávila, sempre ansiou por um movimento reconstrutor, por uma escola digna de São Paulo e do Brasil.
Tentemos. Ajudemos os novos mestres a encontrarem a melhor meta.
Reflitam sobre o problema e todos juntos iniciemos uma campanha que não fique só nas palavras, mas que na verdade parta para a ação.
Finalizo com profunda gratidão apresentando meus agradecimentos sinceros aos que me honraram com esta demonstração de crédito e amizade. Agradeço na pessoa do presidente Doutor Samuel Pfromm Netto, a recepção amiga de cada um dos companheiros da Academia. Agradeço aos meus colegas da Liga do Professorado Católico. Agradeço especialmente a Hercília Castilho Cardoso, acadêmica titular da cadeira número 11. Agradeço, por fim, àqueles que aqui estão e são objeto de minha mais profunda afeição.