Discurso de Posse da Acadêmica Esther de Figueiredo Ferraz
Discurso de Posse da Acadêmica Titular
ESTHER DE FIGUEIREDO FERRAZ
Senhor Presidente da Academia Paulista de Educação
Senhores Acadêmicos
Senhoras e Senhores
De há muito, desde que vim ao mundo (faz isso tantos decênios…), venho navegando pelos mares da educação, inicialmente como sujeito passivo, como diríamos utilizando a terminologia do Direito Penal, e ao depois como sujeito ativo, tomando parte na grande batalha que travam as gerações mais velhas, tendo em vista a formação, o preparo adequado daquelas que venham a sucedê-las. Uma batalha que a mim, assim o desejo, me ocupará até que cerre os olhos à luz deste mundo de Deus. Que com Ele, o Senhor, firmei um contrato comprometendo-me a trabalhar nessa abençoada seara até o último dia de minha vida, esperando de Sua clemência que me conceda a graça de fazê-lo de forma condigna, poupando-me, se o merecer, da decadência espiritual, da dependência em relação a terceiros, que costumam caracterizar esse poente da existência.
Naquele primeiro período, correspondente à infância e à pré-adolescência, brilhou, soberana, no meu mundo familiar, a figura de minha mãe, prestigiada em suas decisões pela sábia e santa figura de meu pai. Era ela, embora diplomada em curso superior já na primeira década deste século, uma educadora nata que timbrava em transmitir, a quantos lhe atravessassem o caminho, aquilo que sabia, fosse qual fosse a matéria de que se tratasse, desde a cultura do espírito até as atividades mais modestas da costura ou da culinária. Rigorosa em termos de princípios (rigorosa, sobretudo com ela própria), sempre tinha preparada entre os lábios uma frase correspondente a um convite para que procurássemos o melhor, sem nos satisfazer com o “mais ou menos”. “Só há” – dizia – “uma forma de fazer as coisas da maneira certa, embora existam muitas para realizá-las erradamente. Mas vale a pena perseguir o certo, ainda que com algum sacrifício, pois o errado precisará, via de regra, ser refeito, e com sacrifícios bem mais vultosos”.
Ensinou as primeiras letras (aí compreendidas a leitura e a escrita) a todos os seis filhos, e a todos os netos, que eram quinze. E jamais permitiu que seus serviçais, jovens ou não, lhe deixassem a casa sem estarem convenientemente alfabetizados. Fazia tudo isso se valendo apenas da velha cartilha de Thomaz Galhardo, que sabia manejar com engenho e arte admiráveis, melhor do que se houvesse recebido lições de didática, daquelas oferecidas pelas Escolas Normais Primárias, como se chamavam nos idos de vinte.
A mim, a mais velha dos irmãos, me alfabetizou em um mês, o que se explica talvez pelo fato de eu já manusear, com intensa curiosidade, o “Estadão”, destacando as vogais e algumas consoantes contidas nos títulos principais do periódico que nos chegava a Mococa pelo trenzinho da Mogiana. Mas quando terminou a cartilha teve minha mãe relativa dificuldade em substituí-la por um texto que desse sequência aos estudos iniciados. À falta de outro, comprou os Versos de João de Deus, defendendo-se das objeções formuladas por meu pai com a seguinte argumentação: se a compreensão de um texto escrito em versos pode apresentar dificuldades iniciais, é certo que o leitor, com um pouco de esforço, poderá logo ingressar no mundo da análise lógica, instrumento indispensável para quem deva conhecer a língua materna. E para prová-lo colocava-me na mão direita um alfinete com o qual prendíamos, após algumas investigações quase policiais, o sujeito (devia ser um mau sujeito) e saíamos em perseguição ao predicado: primeiro o verbo, depois o objeto direto, o indireto, os adjuntos (quase sempre os adverbiais), e assim por diante, até que se esgotassem os termos da oração e pudéssemos, gloriosamente, liberar o sujeito antes que ele impetrasse um “habeas corpus”… Quanto ao método utilizado para alfabetizar rapidamente, era qualquer um, desde que adequado à pessoa do aluno, mesmo porque, afirmava ela, não há dois alunos iguais, mesmo que sejam irmãos e ainda que gêmeos.
Se desço a tais detalhes, senhor Presidente e senhores acadêmicos, fazendo um esforço para conter a emoção de que me vejo possuída ao evocar cenas familiares como essas que acabo de descrever, isso se deve ao fato de que pretendo hoje reverenciar as figuras de meus pais, salientar sua influência na formação de minha personalidade e na condução de meu destino. Se aqui me encontro, cercada de tantas atenções e tantas honrarias; se sou guindada a uma eminência a que talvez não faça jus, tão generosos se revelaram meus hoje confrades quando se decidiram a me fazer um de seus pares, isso se deve substancialmente ao homem e à mulher que me deram a vida e, com ela, me transmitiram uma aptidão para seguir-lhes as diretrizes, para apoiar-me nas mesmas bases em que se apoiaram eles ao estruturar as próprias existências.
A meus pais, assim, transfiro as glórias desta tarde. Tarde sol em pleno inverno, como aquelas vividas pelo jovem Castro Alves, quando, referindo-se a São Paulo que ele tanto amou e onde tão bem foi amado, assim a definiu: – “rosa de Espanha no hibernal friul”.
É claro que, respirando em nosso lar uma atmosfera de grande interesse pelas coisas ligadas à educação, alimentasse eu, desde muito cedo, a ambição de me dedicar ao ensino, fazendo-me professora. Professora até mesmo de alguns dos irmãos, entre eles, meu inesquecível José Carlos, que num discurso pronunciado às vésperas de sua morte, lembrava, saudoso, as lições de matemática (evidentemente de matemática elementar) que eu lhe ministrava nas férias gozadas em nossa fazenda, repassando o programa por ele cumprido no Ginásio de São Bento.
Aquela ambição a vida me permitiu realizar plenamente, e foi assim que percorri, degrau por degrau, toda a áspera carreira do magistério, público e particular, do primário ao superior, inclusive no chamado ensino técnico onde aprendi, com velho e sábio professor Roberto Mange, criador do SENAI, a montar e aplicar “tests” aos que se candidatavam ao aprendizado de certas e determinadas funções.
Posso assegurar aos que ouvem que, no percurso dessa carreira até certo ponto acidentada, colhi muitas das grandes alegrias de minha vida. Vida modesta de uma mulher também modesta, que se orgulha de haver iniciado (e reproduzo aqui o que disse há um ano atrás, ao ser introduzida na Academia Paulista de Letras) “numa pequena classe do Grupo Escolar de Santo Amaro, onde meninos descalços, de roupas remendadas e umedecidas pela garoa do Planalto, tiritando de frio e cheirando a suor, disputavam o privilégio de enfeitar com uma flor, provavelmente arrancada ao jardim da pracinha fronteira, a minha tosca mesa de trabalho”.
Veio depois a experiência colhida na Escola Normal do Instituto de Educação Caetano de Campos, então dirigida pela jamais assaz louvada Profa. Carolina Ribeiro (a primeira Secretária da Educação do Estado de São Paulo). A duas turmas de alunas, pouco mais moças do que eu, lecionei sucessivamente Psicologia Educacional e Sociologia Educacional. E, fato extraordinário: a melhor de minhas discípulas, a que se diplomou com distinção, foi exatamente aquela que, em rigor, menos condições teria para brilhar entre as companheiras: Dorina Gouvêa, hoje Dorina Gouvêa Nowill, uma das figuras mais representativas do ensino de cegos, nos planos nacional e internacional.
Mais tarde ainda, e havendo já cumprido quatro anos de Filosofia na Faculdade de Filosofia de São Bento, dois de Pedagogia no Instituto de Educação Caetano de Campos, e encontrando-me em meio a meus estudos de Direito nas velhas Arcadas do Largo de São Francisco, fui convidada para lecionar Moral e Moral Social no Centro de Estudos e Ação Social fundado por duas grandes mulheres: Odila Cintra Ferreira e Eugênia Gama Cerqueira. Lá, na sede da rua Sabará, encontrei várias companheiras de estudos anteriores, criaturas com uma visão de “social” que me impressionou e me fez alterar algumas de minhas colocações anteriores. Entre essas alunas, sobressaíram-se Nadyr Gouveia Kfouri, futura Reitora Magnífica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Lucy Pestana Silva, posteriormente Lucy Montoro, dado seu casamento com o deputado, senador, governador André Franco Montoro; Marina Cintra e Nazaré de Moura, criadoras da COLMEIA, já falecidas, mas ainda vivas em meu coração.
Até que um dia entendi que deveria prestar concurso para a Faculdade de Direito em que me diplomara, disputando a livre-docência de Direito Penal.
Até então nenhuma mulher tentara enfrentar a travessia desse suposto “cabo das tormentas”. E se digo “suposto” é porque, a esta altura, já começava a tomar corpo, afastando-se todavia do sufragismo, o movimento visando à plena equiparação dos direitos de homens e mulheres. E os Mestres da “velha e sempre nova Academia” (salvo algumas exceções, apesar de tudo honrosas), já via com bons olhos o ingresso das bacharéis na tradicional instituição, desde que, naturalmente, se submetessem e fossem aprovadas nos concursos de títulos e provas, como os bacharéis, aliás.
Assim sendo, não apenas meus colegas de turma quanto os professores que me haviam tido como aluna, incentivaram-me a tentar a grande aventura, e mais do que qualquer outro o saudoso prof. Basileu Garcia, o qual, pelas suas sábias e inspiradas lições, me levou insensivelmente a optar pelo Direito Penal, disciplina então objeto de uma total renovação, graças à edição do Código Penal de 1940. O certo é que sucumbi à sugestão do grande Mestre, tanto mais que já me apaixonara perdidamente pela matéria tanto pela sua beleza intrínseca, como ciência dogmático-penal que é, quanto pelo fato de que ela desce, na análise do fato criminoso, à mais íntima intimidade do ser humano, atingindo-lhe, na pesquisa do chamado “elemento subjetivo”, o próprio coração, e acompanhando-o na humilde e genuflexa posição de “delinquente”, de autor de um ilícito penal. E assim, aprovada, passei a lecionar. Devo dizer que de tudo isso não me envaideço, pois o pouco que sou e porventura haja feito se deve, sempre o proclamei, à cooperação e ao apoio de muitas mãos solidárias, algumas já desaparecidas, outras ainda cheias de vida e calor, apertando as minhas quando devo atravessar um trecho mais áspero ou mais perigoso da caminhada, que já se torna longa, jamais fastidiosa.
E passo, agora, obedecendo aos dispositivos regimentais da Casa, a falar sobre meus antecessores, os educadores que desde a instalação desta Academia, em outubro de 1970, até a data de hoje, ocuparam a cadeira nº 33, cujo Patrono é Manoel Bergstrom Lourenço Filho. E começo por esta, um dos pontos mais altos da orografia educacional paulista e brasileira.
Não conheci pessoalmente Lourenço Filho, embora houvesse cursado o ginásio no Lyceu Nacional Rio Branco, estabelecimento de ensino modelar do qual ela fora um dos fundadores e diretores. Pois o jovem professor, orgulho de Porto Ferreira, sua terra natal, já partira para outras plagas (o Estado do Ceará e a cidade do Rio de Janeiro, então Capital Federal), convocado pelo Governo para difundir alhures a experiência aqui colhida em matéria de organização e administração escolar. Mas cheguei a sentir constantemente sua presença no prédio da rua Dr. Vila Nova, a respirar a atmosfera sadia de que se achavam impregnadas as próprias paredes da escola – uma escola “diferente”, onde professores e alunos se deixavam contagiar por um clima de vibração, de entusiasmo, de renovação, de criatividade, de liberdade aliada à responsabilidade, tudo isso preparando “para a vida real pela própria vinda aí vivida”, como então pontificavam os adeptos da então chamada “Escola Nova”.
Lourenço Filho, nascido em 1897 e falecido em 1970, teve uma vida – longa de 73 anos, exclusivamente dedicada à educação – que poderíamos dizer “gloriosa”, tantos e tantos postos de destaque ocupou (na docência, na administração, na produção científica e mesmo literária); tantas as obras que escreveu; tantas as conferências em que tomou parte; tantas as homenagens que lhe foram tributadas, entre elas a publicação do Livro Jubilar – “Um educador brasileiro: Lourenço Filho” – editado pela Melhoramentos, com artigos escritos por 20 grandes especialistas. Isso, além de um “sumário cronológico” por si só consagrador.
Ainda agora, realiza-se na Faculdade de Educação da nossa USP um ciclo de conferências iniciado em março do corrente ano e a ser encerrado em novembro próximo futuro, onde falaram (e falarão) educadores paulistas e não paulistas, entre eles o próprio filho de Lourenço Filho, o professor Ruy Lourenço Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que o encerrará.
Lendo o programa do evento que está tendo lugar na Faculdade de Educação, aí encontrei estes dados que julgo útil transportar para o presente pronunciamento.
“Lourenço Filho
Cargos que exerceu
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Professor primário em Porto Ferreira (1915)
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Professor de Escola Normal em Piracicaba (1921 a 1924) e São Paulo (1925-1930)
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Professor no Instituto de Educação do Rio de Janeiro (1932-1938)
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Professor de Psicologia Educacional na Universidade do Distrito Federal (1935-1938) e na Universidade do Brasil (1939-1957)
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Diretor Geral da Instrução Pública no Ceará (1922-1923)
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Diretor Geral da Instrução Pública no Estado de São Paulo (1930-1931)
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Diretor do Instituto de Educação do Rio de Janeiro (1932-1937)
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Presidente da Associação Brasileira de Educação (1934-1935)
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Diretor da Escola de Educação da Universidade do Distrito Federal (1935-1937)
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Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (1938-1945)
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Membro do Conselho Nacional de Educação (1937-1961)
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Diretor Geral do Departamento Nacional de Educação (1937 e 1947-1950)
Principais Obras:
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Juazeiro do Padre Cícero (1926)
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Cartilha do Povo (1929)
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Introdução ao Estudo da Escola Nova (1930)
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Testes ABC (1933)
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Tendências da Educação Brasileira (1940)
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Série de Leitura Pedrinho (1953-57)
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A Pedagogia de Rui Barbosa (1954)
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Educação Comparada (1961)
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Organização e Administração Escolar (1963”.
A meu ver, suas duas melhores obras são a “Introdução ao Estudo da Escola Nova” e “Organização e Administração Escolar”, a primeira, fruto de uma experiência ainda incompleta dada a idade do autor (apenas 33 primaveras); a segunda, escrita em plena maturidade, no outono da existência (66 anos), quando o homem atinge o ponto culminante da sua curva de vida. Sobre essas duas obras muito se escreveu e muito se continuará a escrever, tão certo é que ambas contêm um certo “quid” de permanência, para não dizer de eternidade, que satisfaz o leitor mais exigente.
Assim se manifestam sobre a “Introdução ao Estudo da Escola Nova,
Paul Fauconnet:: “esta Introdução é um dos melhores livros que, seja em que língua for, já se escreveram sobre Escola Nova”.
Edmond Claparède: “formoso livro, que expõe de maneira admiravelmente clara os princípios da escola ativa, dando uma visão de conjunto, preciosa a todos os educadores”.
Léon Walther: “nem em francês, nem em alemão, possuímos livro semelhante sobre a educação renovada. Deve ser traduzido”.
Fernando de Azevedo: “livro de mestre. Não há obra que o substitua na literatura pedagógica. Lede-o, se quiserdes ter uma visão, larga e profunda, da escola nova”.
Anísio Teixeira: Lourenço Filho fez mais do que expor: coordena, interpreta e sintetiza o que educadores do velho e do novo mundo têm pregado e realizado sobre a chamada Escola Nova, apresentando em seu livro um corpo de doutrina unificado e claro”.
Quanto ao segundo, ao ver na Melhoramentos o primeiro a “expor em língua portuguesa”, sob forma sistemática, as novas bases dos estudos de Organização e Administração Escolar, assim se manifestam os comentadores:
Fernando de Azevedo: “desde os seus vinte e cinco anos de idade, em que fez com sucesso no Ceará a sua grande experiência na esfera administrativa, Lourenço Filho ficou marcado como um de seus eleitos”.
Clemente Mariani: “Lourenço Filho, opinando sobre os assuntos administrativos do setor educacional, era deste estilo: a simplicidade de seus pareceres muitas vezes pedidos e emitidos oralmente ou por escrito, assemelhava-se à dos sucintos comentários de Clóvis Bevilacqua em Direito Civil”.
Anísio Teixeira: “poucas vidas terão sido mais contínuas em suas preocupações fundamentais do que a de Lourenço Filho, toda ela transcorrida entre o magistério e a administração escolar”.
Mas quem quiser conhecer por inteiro e em sua profunda significação a vida e obra de Lourenço Filho, leia o trabalho escrito por seu amigo e companheiro de lutas, Antonio Ferreira de Almeida Júnior – “A formação do educador”, inserta na coletânea intitulada “E a Escola Primária?” – vinda à luz pela Companhia Editora Nacional. Aí, meu velho Mestre do Liceu Nacional Rio Branco, do Instituto de Educação Caetano de Campos e da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, num estilo ao mesmo tempo singelo e saboroso, nos ensina quem foi e o que fez Lourenço Filho, e em que medida ele contribuiu para inovar, melhorando-a, a realidade educacional do País.
Por mais perfeito que seja esse relato, para mim pode ele ainda ser complementado e enriquecido. Daí porque estarei presente, se Deus quiser, aos 10 de novembro próximo futuro, ao Auditório da Escola de Aplicação da Faculdade de Educação da USP, para ouvir o depoimento de Ruy Lourenço Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, sobre seu pai. A data já se acha espetada com um alfinete em meu calendário de eventos nobres. E essa por ser muito especial para mim, não será olvidada.
Também não tive oportunidade de travar conhecimento pessoal com o prof. João de Souza Ferraz, nascido na cidade de Itu, em 1903, e falecido em Limeira, onde se achava radicado, em 1988. Deixou uma imagem respeitável pela atuação que teve em dois setores que lhe absorveram a vida longa (85 anos) e profícua: a educação e a imprensa. Embora tenha realizado os estudos primários em sua cidade natal, o certo é que em Campinas conseguiu o seu diploma de professor normalista. E como houvesse obtido, em concurso público, a cadeira de Psicologia na Escola Normal de Limeira, afeiçoou-se profundamente a essa cidade, recusando-se a abandoná-la ainda que convidado, várias vezes, para exercer alhures cargos bastante importantes. Escreveu várias obras, entre elas a conhecido “Noções de Psicologia Infantil”, vertida para o espanhol, e figurou como colaborador da Enciclopédia Brasileira de Educação, editada pela Livraria Globo, de Porto Alegre. Exerceu o magistério como professor de Psicologia nas escolas normais de Jaú, São José do Rio Preto, Limeira, e ainda como Diretor de várias Escolas Reunidas – em Iporanga, Avanhandava, Santa Lúcia – assim como Diretor do Grupo de Matão. Fundou em 1943 o Suplemento da “Gazeta Literária de Limeira”, e foi Redator-Chefe dessa mesma Gazeta, já agora elevada à categoria de Diário. Foi ainda redator-secretário da “Gazeta de Campinas”, e colaborou nos jornais paulistanos “O Estado de São Paulo”, “Folha da “Manhã” e “Diário de São Paulo”. Amava as duas profissões que exercia, e por isso praticou-as igualmente bem, e com paixão, que só com paixão se pode lavrar esses dois terrenos igualmente acidentados.
Gozava, em Limeira, de um prestígio invulgar, e pelo seu temperamento comunicativo e pelo seu amor à criatura humana, em si mesma considerada e nas várias formas de seu relacionamento com o “outro”. O consultório que mantinha aberto na cidade (sendo, como era, além de licenciado em Psicologia, Psicólogo Clínico), constituía o centro onde se revolviam, pela educação e reeducação dos pacientes, os vários problemas que afligiam os membros da população local. E tudo isso feito, na maior parte das vezes, gratuitamente, com o intuito exclusivo de ser útil ao consulente, ajudando-o a atravessar uma situação mais difícil da vida.
De um de seus filhos, ouvi que, numa tarde em que o professor tentava atravessar uma das mais movimentadas ruas de Limeira, exatamente na hora do “pico”, todos o reconhecem imediatamente e, imediatamente também, se imobilizara, reverentes, para que ele atingisse tranquilamente o outro lado da rua. Só faltaram bater-lhe palmas.
E agora devo falar sobre alguém que não chegou a tomar posse da cadeira nº 33 para a qual havia sido eleito, isso por haver sido levado pela morte quando se preparava, com aquele entusiasmo efervescente que todos lhe conheciam, para receber desta Academia a láurea a que, por tantos e acumulados títulos, fazia jus: Carlos Corrêa Mascaro, o casa-branquense nascido em janeiro de 1911 e falecido em janeiro de 1990. Ao todo 79 anos de uma vida consagrada exclusivamente a três amores: a família, os amigos, a educação. Nesse culto tridimensional revelou-se sacerdote exemplar, jamais pensando em si e em seus interesses, mas inteiramente devotado ao bem estar e à felicidade do outro. Ultrapassava, assim, de muito, os limites impostos pela regra segundo a qual deve o homem amar o próximo como a si mesmo. Ele o amou mais do que a si próprio. E por havê-lo feito durante anos a fio, de todo o coração, seria pelo coração que lhe haveria de escapar a vida, suavemente, discretamente, sem despedidas emocionantes, dando aos que se achavam a seu lado a impressão de que simplesmente se pusera a dormitar… Estaria apenas cansado…
Tive a honra de conhecer de perto Carlos Corrêa Mascaro, pois trabalhamos juntos em várias oportunidades – no Conselho Estadual de Educação de São Paulo, no Ministério da Educação e Cultura, durante o Governo do Marechal Castelo Branco, ele como Diretor do INEP (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), criado por Anísio Teixeira, eu na Secretaria do Ensino Superior, sucedendo o professor Raymundo Muniz de Aragão. Éramos dois paulistas operando no cenário do Rio de Janeiro, e por isso mesmo nos aproximamos, empenhados ambos em aproveitar aquele curto espaço de tempo compreendido entre meados de 1966 e início de 1967 para terminar de forma condigna as tarefas de que havíamos sido incumbidos pelo titular da Pasta.
Pude, assim, conhecê-lo bastante bem, inclusive sob um aspecto que até aí não me chamara a atenção: sua coragem cívica e moral, revelada na oportunidade em que se elaboravam os ante-projetos da futura Carta Constitucional e nos coube encargo de opinar junto ao Ministro sobre a forma como estaria sendo tratada a matéria pertinente à educação e à cultura. Os dois documentos que juntos elaboramos, de uma franqueza até mesmo rude, documentos que pretendo, com a anuência do Ministro Muniz de Aragão, tornar públicos um dia para fazer justiça àquela nobre autoridade apresentando a história completa dos artigos nºs 168 e 172 da Constituição de 1967, chegaram eles, os documentos, a chamar a atenção de Anísio Teixeira, então membro do Conselho Federal de Educação, o qual, encontrando-se com Mascaro, a quem conhecia de há muito, assim o saudou com aquele sorriso acolhedor que fazia o seu encanto: “você é um homem de coragem”.
Se faço este relato, é porque a isso fui convidada por José Augusto Dias, num trecho do referido artigo de sua lavra publicado no jornal “O Estado de São Paulo”. Essa peça literária vazada em termos que evidenciam a grande amizade que unia os dois educadores, termina por estas palavras:
“Este ligeiro esboço de sua vida, traçado ainda sob o impacto de seu desaparecimento, está longe de ser completo. Aqueles que o conheceram de perto certamente saberão acrescentar muitos outros dados para a composição de um perfil mais abrangente deste educador emérito”.
Eu, que tive o privilégio de gozar de sua amizade durante quase trinta anos, cumpri a minha parte. Outros, que também o conheceram de perto trarão oportunamente os seus depoimentos.
Senhor Presidente e Senhores Acadêmicos,
Dignas autoridades aqui presentes,
Senhoras e Senhores
Não quero terminar sem tecer algumas breves considerações sobre uma questão que me vem preocupando desde que, revogada toda a anterior legislação Diretrizes e Bases da Educação Nacional e entrada em vigor a Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996, teremos, acaso, caminhado em direção ao melhor ou retroagimos sob certos e determinados aspectos, deixando de incorporar ao novo sistema as grandes conquistas e experiências pedagógicas que nos fizeram saudar a Lei de 1961 como a Lei Áurea da Educação Nacional?
Confesso que a leitura atenta do texto da nova lei, assim como de inúmeros pronunciamentos feitos por educadores de grande porte, um tanto reticentes e mesmo pessimistas quanto ao êxito da reforma ali delineada, tem-me levado a uma desconfortável situação de insegurança, temerosa que me sinto de que estejamos, aqui e ali, caminhando à marcha-ré. Tanto mais que a redação do texto legislativo é, em grande número de casos, bastante vaga, algumas vezes mesmo incorreta do ponto de vista técnico, haja vista, por exemplo, o que consta do § 4º do artigo 5º, que prevê a sanção cominada para a autoridade que, por negligência, deixar de oferecer o ensino obrigatório: “comprovada a negligência da autoridade competente para garantir o oferecimento do ensino obrigatório, poderá ela ser imputada por crime de responsabilidade” (!). Ainda um exemplo: o art. 13, inciso V, segundo o qual os docentes incumbir-se-ão de “ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos”…
Deixando de lado, porém, enganos desse estilo, que deveriam ter sido corrigidos na passagem do projeto pelo Congresso Nacional, e de se concluir também que a descentralização, que foi a virtude principal da velha L.D.B., sofreu vários golpes da parte da Lei ora em vigor, entre eles o haver suprimido os Conselhos Estaduais de Educação, órgãos normativos dos sistemas locais de ensino, os estaduais e do Distrito Federal, que tantos e tão excelentes serviços prestaram às unidades da federação, de 1962 e 1997 (trinta e sete anos). Dir-se-á que tais unidades poderão, se quiserem, manter ou criar esses órgãos dentro dos respectivos sistemas de ensino. Mas se algumas o farão, porque mais desenvolvidas, outras, as menos desenvolvidas, sentir-se-ão felizes se deles se livrarem, se puderem entregar ao jogo da política partidária o destino da educação em seus territórios, o que será um desastre para a administração do ensino no País.
Por outro lado, a forma pela qual estão redigidos os artigos pertinentes à “Organização da Educação Nacional”, especialmente os que enumeram os sistemas de ensino e lhes fixam as competências, pode levar a muitas confusões. Mesmo porque o legislador não se deu ao trabalho de, já não digo definir (“omnis definitio periculosa est”) sistema de ensino, mas enumerar seus componentes, o que seria facílimo fazer dados os numerosos pronunciamentos feitos a respeito, tanto pelos Conselhos de Educação, quanto pelas Faculdades de Educação de todo o País. Assim, fugiria à situação desagradável de confundir (ao que parece), sistema de ensino – a organização dada pelo Poder Público (federal, estadual, municipal) à educação, atuando cada qual na órbita da respectiva competência – com o próprio Poder Público, confusão já antevista pelo Mestre Miguel Reale, quando criticou com toda a procedência o parágrafo 2º do artigo 8º, assim concebido: “os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta lei”. Se os sistemas são, eles próprios, organizações, como afirmar que elas se organizam, e livremente? Quem possui tal liberdade é o Poder Público, em cada uma de suas esferas, não o sistema, seja ele qual for. E vou adiante para observar que o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo é ainda mais perigoso, na parte em que afirma que a União exercerá função normativa, re-distributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais”.
Isso levará o leitor a concluir (por empregada erroneamente a expressão “instância”, roubada ao Direito processual), que haveria uma hierarquia entre os vários sistemas, o que não é exato. Mesmo porque as decisões dos sistemas locais (estaduais e municipais) não são passíveis de recurso para o sistema federal.
A par desses vícios, não se pode negar que a nova lei apresenta soluções felizes para alguns problemas desde sempre discutidos porque desde há muito tempo colocadas, entre eles o da educação à distância.
Tomo, assim, a iniciativa de indicar à nossa Academia de Educação um estudo sistemático da matéria assim importante, promovendo ciclos de conferências, simpósios e outras atividades que permitam ao nosso sistema de ensino comportar-se diante da “vaguedad”, como diríamos, da nova L.D.B., suprindo-lhe as omissões, captando-lhe as intenções e interpretando-lhe com exatidão o sentido das normas.
Agradeço a esta Academia Paulista de Educação, particularmente a sua Presidência, neste momento em mãos do grande educador que é o acadêmico Sólon Borges dos Reis, representante máximo e tradicional do Professorado Paulista, a linda festa que me foi preparada. Possa eu, com a ajuda de Deus, corresponder às expectativas dos que me trouxeram para a sua corporação, já um tanto cansada pelas asperezas de uma luta de tantos anos, mas ainda disposta a trabalhar, como disse, “até o fim de minha vida”.
À Escola de Comércio Álvares Penteado, de cuja mantenedora, a Fundação que porta o mesmo nome, participo desde há alguns anos, e cuja lisura no proceder posso atestar com absoluta convicção, a ela, também, o meu muito obrigada por concordar em que, na sua sede, se realizasse esta cerimônia tão comovedora para mim. E solicito ao meu amigo Oliver Gomes da Cunha ser o portador de minhas palavras junto aos demais membros da Fundação que aqui não puderam comparecer.
E que direi a meu amigo e colega Moacyr Expedito Vaz Guimarães? Que fielmente retrate o meu estado de alma, ao ouvi-lo proferir sua oração? “Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, assim falham os pensamentos quando querem exprimir a realidade”, afirma o inimitável Fernando Pessoa ao versejar sobre a incapacidade do ser humano em externar o que lhe vá pela alma adentro, máxime quando agitada pelas emoções. Nada lhe direi a não ser “obrigada”. Obrigada, Moacyr, por ser tão meu amigo, quase irmão.