Discurso de Posse do Acadêmico João Gualberto de Carvalho Meneses.
ACADEMIA PAULISTA DE EDUCAÇÃO
Discurso de Posse do Acadêmico Titular
JOÃO GUALBERTO DE CARVALHO MENESES[1]
21/10/1980
Senhor Vice-presidente em exercício da Academia Paulista de Educação.
Autoridades, senhoras e senhores.
Senhores Acadêmicos.
Introdução
Dediquei a minha vida profissional à educação. Sou professor normalista diplomado pela insigne Escola Normal “Torquato Caleiro” de Franca, na inesquecível turma do Ano Santo de 1950. Ser professor primário e ter exercido funções docentes no ensino primário constituem minhas vanglórias. Ter feito carreira no Magistério paulista deve ter sido fator fundamental para que eu viesse ser guindado às honras magnas de ter sido eleito para esta sodalício, pelo benfazejo ato dos Senhores Acadêmicos. Sem dúvida, querem premiar a minha persistência em suportar as agruras do Magistério, ou querem, com este galardão, laurear um professor. Como se vê, não se há de alegar méritos singulares – inexistentes. Antes, é reverência ao Magistério paulista – assim o vejo – para ser eu hoje acadêmico.
Conviver com Vossas Excelências, Senhores Acadêmicos, é, para mim, motivo de alegria e envaidecimento. Aprendi a lhes admirar há muito. Cursava a Escola Normal e já estudava no livro Práticas Escolares de Antônio D’Ávila, manual teórico prático que oferecia todas e as mais completas orientações e informações ao estudante, ao neófito e ao experimentado professor.
Logo em seguida à minha formatura conheci o incansável Archero na Escola Universitária de São Paulo, nos cursos preparatórios para Orientador Educacional; a ele devo a minha primeira indicação para ocupar esta Cadeira. Sou-lhe muito grato.
O Professor Bueno de Azevedo – a quem remercio emocionado o discurso gentil de recepção e a sua coindicação para a vaga ocorrida – conheço desde quando, nos anos 50, juntos servíamos no Departamento de Educação ao tempo da Antônio de Godói. Já era notório professor de História Geral e do Brasil. Pelos inestimáveis serviços que tem prestado à vida pública é, hoje, uma das personalidades paulistas que maior número de condecorações possui. É presidente da prestigiosa Sociedade Brasileira de Educação e Integração. Como Sua Exª muito bem lembrou, fomos colegas de Magistério, na tradicional Academia de Polícia Militar do Estado de São Paulo.
Prazenteira amizade é a do nosso Presidente, Professor Michel Pedro Sawaya, de mais de vinte anos. Quando aluno da Faculdade de Filosofia da USP já o conhecia. Mas nosso relacionamento teve início, propriamente, quando ele era Diretor Geral do Departamento de Educação do Governo Carvalho Pinto e eu, Diretor de Grupo Escolar e exercia, em comissão, as funções de Inspetor do Ensino Rural.
Na Secretaria da Educação encontrei valiosos acadêmicos como Rovai e Laurindo; nas lutas de classe do Magistério, ombreei com companheiros como Rosalvo e Valério. Trabalhando pela educação e ensino, conheci os Senhores Acadêmicos que me trazem para seu convívio, – companheiros de trabalho do nobre Magistério bandeirante a que tanto me orgulho de pertencer. Agradeço-lhes essa distinção e espero poder corresponder às expectativas de Vossas Excelências. Creiam-me, o compromisso assumido de pugnar pela prosperidade da Academia Paulista de Educação, em todos os aspectos de sua vida, não é, para mim, mero formalismo e sim um programa de ação a ser cumprido diuturnamente.
Walther Barioni
Sucedo a Walther Barioni, como titular da Cadeira nº 5, desta Academia. Barioni dedicou toda sua vida exclusivamente ao Magistério. Iniciou sua longa carreira em 1922, como professor nas escolas reunidas de Osasco. Em 1925, passou para a Escola de Aprendizes e Artífices. Em 1931, prestou concurso para o cargo de Professor-Fiscal de Escola Normal Livre, cujas funções compreendiam, também, as de lecionar Psicologia, Pedagogia e Didática. Aprovado, foi nomeado para a Escola Normal Livre do Colégio São José, de Jaboticabal, onde permaneceu até abril de 1932, quando foi transferido para Santa Rita do Passa Quatro; no mesmo cargo foi transferido para Rio Claro e, posteriormente, para São Paulo. Desde cedo revelou sua tenacidade empreendedora. Na Escola Normal Livre de Jaboticabal organizou uma biblioteca pedagógica. As obras eram catalogadas e resenhadas pelos normalistas. Em Santa Rita, aplicou o Teste ABC de Lourenço Filho, com auxílio das professorandas e elaborou minucioso relatório sobre os resultados obtidos e os encaminhou ao autor que muito o elogiou. Criou a primeira Escola Primária Experimental anexa à Escola Normal no Interior de São Paulo. De professor de psicologia, passou a interessar-se pela orientação vocacional. Prestou concurso para técnico de administração na Secretaria da Fazenda e, pouco tempo depois, quando se instalou em São Paulo o Departamento Regional do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial – SENAI –, convidado pelo Dr. Roberto Mange, assumiu a chefia da Divisão de Seleção e Orientação Profissional. Desenvolveu aí trabalhos pioneiros, entre nós, de elaboração e de aplicação de testes. São de sua autoria trabalhos de pesquisas sobre o TWI, para adaptar à realidade brasileira a técnica de treinamento em serviço. Foi, posteriormente, para o SENAC, onde exerceu a Chefia da Divisão de Ensino, no Departamento Regional de São Paulo. Aí aposentou-se, em 1962, no cargo de Assessor Técnico.
Walther Barioni foi, também, crítico de arte de “O Estado de São Paulo” quando lá trabalhavam Sud Menucci e Lourenço Filho, com os quais gozou de amizade. Foi cronista. Escrevia crônicas sob o pseudônimo de João da Rua Direita. Foi poeta.
CANÇÃO INGÊNUA é modelo de seu estilo. Melancólica, suave, ondulosa, estética, como descreveu Menotti Del Picchia. Cheia de reticências. CANÇÃO INGÊNUA…
“Ingenuidade de ser bom e ingenuamente acreditar na bondade dos outros…
Ingenuidade de pensar que o Bem vence na Vida, na Justiça na História, a Verdade no Céu…
Ingenuidade de supor, iludido, que a Vitória pertence ao Bom, ao Justo, ao Verdadeiro…
Ingenuidade de lembrar o bem que me fizeram e de esquecer e de perdoar o mal que me proporcionaram…
Ingenuidade de sacrificar no holocausto do ideal a mocidade…
Ingenuidade de dizer o que me vai no coração, singelamente, com sinceridade…
Ingenuidade que ninguém, ah, ninguém me perdoa.”
Walther Barioni morreu em 2 de outubro de 1978. Na Assembleia Legislativa de São Paulo, o deputado Sólon Borges dos Reis, ao propor a homenagem ao saudoso professor, descreve a figura humana que, acima de tudo, foi Walther Barioni. Diz:
“É difícil analisar a personalidade de Walther Barioni: é como condensar dois séculos, dois mundos diferentes em uma única pessoa. Era o poeta do século XIX, o romântico, o sonhador. Mas nele condensava-se toda a força do século XX, com sua tecnologia, com seus métodos avançados. Era um sonhador, mas era um homem que realizava os seus sonhos. Tímido no comportamento, mas era arrojado nas realizações. Era o cérebro brilhante escondido pelo comportamento humilde dos sábios, que sentem que quanto mais conhecem, mais coisas têm a conhecer… No entanto, quem olhasse aquela figura meiga, de sorriso bondoso, de gestos calmos, não poderia supor o potencial criativo que ali se escondia. Era o século XIX, guardando dentro de si toda a potencialidade do século XX. E a gente, sempre que o via, ficava pensando como o mundo poderia ser muito melhor agora se todos os que alcançaram essa transição dos séculos tivessem conseguido realizar desta maneira: conservando o que havia de melhor no anterior e absorvendo as grandes qualidades do posterior. Uma figura gentil, bondosa, tranquila, conservando em si o romantismo, os sonhos, a poesia, a necessidade de saber, mas inovando, aplicando os novos descobrimentos, formando novas gerações. As neuroses do homem do século XX, estas ele deixou de lado. O egocentrismo, o competivismo absurdo, a necessidade de sobressair, estas ele ignorou. Não precisava delas. Suas obras falavam por si mesmas. A timidez impedia que ele começasse diálogos, mas sua inteligência agia de modo que, começando a falar, todos calassem, admirados, para ouvi-lo. Versátil, não havia assunto que ele não discutisse a fundo, que não conhecesse em pormenores.” [2]
Eis alguns de seus traços descritos por Sólon, que bem o conheceu.
* * *
Em 1970, Walther Barioni foi um dos criadores desta Academia. É fundador e primeiro membro da Cadeira nº 5, para cujo patrono escolheu uma das mais fulgurantes figuras do Magistério paulista, JOÃO KÖPKE.
João Köpke
Em 1871, João Köpke chega a São Paulo, transferido da Faculdade de Direito de Recife para continuar seus estudos na tradicional escola do Largo São Francisco. Encontra uma província em ebulição. Os cafezais se expandiam pelas férteis terras do oeste paulista, produzindo enormes riquezas. Criava-se um sistema de transporte ferroviário ligando as áreas de produção aos postos exportadores e surgiam núcleos urbanos com oportunidades de trabalhos bastante diversificados. O fazendeiro tornara-se capitalista. Desequilibraram-se as instituições da monarquia em virtude da nova distribuição do poder econômico. Reclamava-se maior autonomia política para São Paulo sanar os males de que padecia. A ideia da República Federativa como solução dos problemas acabava por convencer os mais progressistas, identificados com as ideias liberais, nacionalistas e cientificistas (positivistas). A instrução pública era considerada:
“a mola propulsora do progresso social e material”; “a cura para todos os males que afetavam a sociedade”. Os apelos republicanos continham afirmativas tais como: “a escola deve ser o molde e a bitola do progresso social de um povo”; “não há dinheiro empregado com maior proveito do que na instrução de um povo”; “o futuro deverá ser mais ou menos brilhante, conforme os esforços empregados hoje para a elevação e alargamento da instrução primária, secundário e superior”; “façamos o homem se queremos transformada e melhorada a sociedade. Façamo-lo pela instrução”; “as escolas formam o primeiro alicerce das sociedades modernas, sendo a melhor garantia da paz, da liberdade, da ordem e do progresso social”; “as instituições do ensino merecem-nos especial atenção, porque da instrução que for dada ao povo depende o progresso deste imenso país”.[3]
Nesse ambiente efervescente de novas ideias, Köpke torna-se um republicano ativo, amigo de Rangel Pestana e um positivista ao lado de Silva Jardim. Cursando o quarto ano de Direito, ainda moço, casa-se com D. Maria Isabel de Lima. Teve de trabalhar para sustentar família e prosseguir nos seus estudos. Vai dar aulas em alguns cursos preparatórios e adquire, logo, fama de talentoso mestre de reconhecida cultura. Diplomado bacharel em Direito, em 1875, pretendeu seguir a carreira da magistratura e foi nomeado, nesse mesmo ano, promotor público em Faxinal. Exerceu o ministério público nas comarcas de Jundiaí, Campinas e da Capital.
Em 1878, abandona a carreira iniciada para dedicar-se ao Magistério. Nas palavras de Moacyr Campos:
“João Köpke foi daqueles poucos que agiram dentro de sua paisagem própria, no ambiente que lhe pareceu o mais belo e o que mais se afazia à sua vocação: o campo educativo. Por um momento, sem bem pensar, trocou-o pelo terreno da magistratura. O resultado foi o que se podia prever: o educador não se afez ao clima, estranhou o panorama cor de chumbo em que o crime e a violência se cruzavam com a impostura e a solércia, desconheceu a gente que lhe dava animação. Fez-se, então, de torna-viagem ao seu rincão vocacional, onde havia ar puro, horizontes ilimitados, tonalidades agradáveis”.[4]
Residindo em São Paulo, vai lecionar Inglês, Francês, Italiano e Geografia no Colégio Pestana para meninas, fundado em 1876, dirigido por Francisco e Damiana Rangel Pestana. Sua experiência na alfabetização de crianças o leva a escrever e publicar a cartilha Método Racional e Rápido para aprender a ler sem soletrar. A partir de então, entusiasma-se, cada vez mais, pela leitura analítica. João Köpke foi, senão o criador, certamente, o principal divulgador do método analítico que consistia na alfabetização a partir de sentenças e palavras ao contrário do que se usava na época, o método sintético ou fônico pelo qual dever-se-ia aprender primeiro as letras, para com elas formarem-se as sílabas, e com as sílabas, palavras. O método analítico revolucionou o ensino da leitura e da escrita. Mas, como pondera Moreira:
Hoje, graças à compreensão da importância da fase preparatória, tendo em vista levar as crianças a um estado de prontidão e disposição para tal aprendizagem, se discute sobre a eficiência dos dois métodos, havendo vários estudiosos do problema se pronunciado em favor do método fônico, ao passo que outros procuram associar os dois antigos processos, de modo que, ou se parte da formação de sílabas e palavras, ou dos sessenta a oitenta vocábulos já reconhecidos pela criança, para a sua decomposição em sílabas e letras, chegando-se assim aos elementos constituintes da palavra escrita”… “Se for possível dar conteúdo real e significante ao método fônico, não há porque não iniciar por ele, da mesma forma que, por motivo semelhante, não há como não partir do método analítico, se for possível dar a este o mesmo sentido e conteúdo. Tudo depende mais do professor e da situação em classe que de uma receita, de uma regra previamente determinada”.[5]
* * *
As atividades desenvolvidas por Köpke, a essa época, o fazem respeitado na capital da Província e quando a sua aptidão já era conhecida e provada, foi nomeado por decreto do Governo, professor substituto de Filosofia, História, Geografia e Retórica do Curso Anexo à Faculdade de Direito. Pouco tempo permanece no cargo, indisposto com o tráfico de influências para proteger e assegurar a aprovação dos apaniguados, no exame de admissão à faculdade. Em relatório escrito em 1888, Köpke assim se exprime:
“Duas vezes fui professor oficial investido do cargo de examinador… e duas vezes, da borda do charco, sobre o qual era bastante curvar-me e meter dinheiro na algibeira, afastei-me nauseoso, tolhido de pobrezas, mas rico de consciência, sacudindo para longe de mim essa túnica de juiz mercador, que me queimava os ombros só pela suspeita que me julgariam pela bitola dos que, à sombra de desfaçada postergação da lei, prostituem um sacerdócio por engrossar proventos”.[6]
* * *
Em 1880, Köpke muda-se para Campinas como professor do Colégio Culto à Ciência. É estudioso infatigável da bibliografia europeia e americana de educação. Procura aplicar em aulas os seus conhecimentos. Rangel Pestana, no Almanaque Literário de 1883, retrata Köpke desse período.
“Era afanosa a sua tarefa. Não obstante, se punha em dia com os progressos da pedagogia e à sua custa mandava vir da Europa aparelhos, mapas, quadros e coleção de objetos necessários ap ensino intuitivo. Em pouco tempo, a sua sala se transformou em um pequeno museu pedagógico. Só ele na província possuía o que há de mais moderno para o ensino prático”. Conta: “Tive ocasião de visitar o seu museu e de assistir a diversas experiências dos seus aparelhos de Física e Química. Observamos juntos algumas estrelas e o planeta Júpiter, servindo-nos de um telescópio que tinha postado em seu gabinete. Para exercer o Magistério segundo a pedagogia moderna, o dr. Köpke tem estudado muito”.[7]
Nesse relato aparecem algumas expressões, hoje corriqueiras na terminologia pedagógica, mas que à época constituíam uma verdadeira inovação didática. Ensino intuitivo, isto é, cujo entendimento se percebe claramente sem necessidade de prolixas explicações é uma de suas grandes preocupações. Ensino prático, isto é, aprendizagem auxiliada pela experiência, pela observação, pela ação. Antecipa o “aprender fazendo” de Dewey. Mas a sua principal marca pedagógica é a maneira de como tratar o aluno. Vou citar um depoimento ilustrativo de Tobias Moscoso, em discurso pronunciado em 1928, na ABE, a respeito de seu tempo de escola. Conta-nos:
“Ah, velha casa da Real Grandeza. Um dia, meu pai, chegando da cidade, avisou-me de que, depois do jantar, me levaria àquela casa, para conversarmos com o diretor do Colégio, o Dr. João Köpke… Fomos já noite… Chegamos àquela casa grande, que eu conhecia de passagem… Entramos pelo lado, empurrando um pesado portão de ferro, que dava para o jardim, o jardim sombrio e quieto… Começamos, então, a subir, devagar, uma escada de pedra, que por fora da casa conduzia ao sobrado… Quando chegamos ao topo da escada – que me parecia, naquele tempo, enorme – à luz do gás que iluminava o patamar, veio-nos ao encontro um homem, que eu achei muito alto, alourado, calvo, com uma barba cerrada e longa, esparramada pelo peito. O homem nos esperava e, depois de saudar meu pai com um sorriso de amigo e um aperto de mão demorado, deu-me um abraço e um beijo com que eu estava longe de contar. Era aquele o Dr. Köpke, era o homem de quem eu começava, já agora, a ter menos receio… Entramos para o escritório. Isso me deu ainda mais coragem – era muito parecido com o escritório de meu pai. A maior diferença estava em que tinha, a um canto, um esqueleto, de pé, com a caveira rindo para a gente. Não gostei muito, mas não disse nada. Então, ali, depois de um pequeno exame em que o mestre me mandou ler e escrever algumas frases, fazer contas e responder a meia dúzia de perguntas, o Dr. Köpke conversou algum tempo com meu pai. E era no colo dele que eu estava. Depois, abrindo um largo caderno, em que havia uma lista de alunos, o Dr. Köpke, com a sua letra muito redonda, inscreveu ao fim dela o meu nome… Assim começou a minha vida naquele colégio admirável… Mas, o que sempre tive, desde o começo até o fim, foi uma admiração crescente pelo meu querido Dr. Köpke: ah, às lições dele é que eu não faltava; sentia nelas – todos nós, seus discípulos, o sentíamos – um imenso prazer, um interesse constante, porque aquelas lições, ele as transformava num verdadeiro divertimento para nós. Com ele, a gente aprendia sem fadiga. Mas, não eram só as lições que me agradavam – era a sua maneira de tratar, era alguma coisa muito boa que vinha dele. A gente, junto dele, tinha gosto de viver, coragem para perguntar uma ou outra cousa, esperando as respostas que logo ele nos dava, com a sua voz forte, um pouco metálica, que ainda me parece ouvir”.[8]
Creio que não poderia lhes oferecer melhor retrato de meu patrono, tão bem pintado por um de seus ex-alunos.
* * *
Em 1884, Köpke deixa Campinas e retorna a São Paulo e abre, na rua da Conceição, a Escola Primária Neutralidade. O nome já estava a indicar a orientação positivista, o descomprometimento com qualquer crença, o imparcialismo (ou a neutralidade) que deveria guiar os passos da ciência e do saber. Seu colégio aceita alunos de ambos os sexos – o que é notável, na época. Co educação, como faz a família, que não separa os filhos – porque a família co educa. A escola começa a funcionar com 30 alunos. Compõem o corpo docente, além de Köpke, Silva Jardim, Caetano de Campos, Rangel Pestana, Narciso Figueiredo e A. Gomes. Nesse ano publica o seu Primeiro Livro de Leituras Morais e Instrutivas, uma das seis partes do Curso Sistemático de Língua Materna, relativa cada uma aos livros de leitura da Série Rangel Pestana. Procura, com a série, colocar a leitura como:
“a base de ação, e o tronco, em que se enxertam todos os demais exercícios destinados ao manejo correto, pronto e eficaz da língua – o centro, enfim, de integração, em torno do qual, como dum núcleo, se vem dispor e relacionar todo o conjunto do idioma”.[9]
Suas próprias palavras. Cada lição traz instruções ao mestre sobre a melhor maneira de utilizar o texto. Arrola as novas palavras introduzidas para que o aluno as leia antes, como exercício que permita a variedade de expressão pelo uso de sinônimos; recomenda que o aluno note bem as letras com que se escrevem as palavras, como exercício de ortografia. Sugere que o rol de palavras seja usado em ditado, ou para a formação de sentenças pelo aluno. Como fulcro do processo de escolarização e de educação, a leitura devia instruir e formar a criança. Daí o nome de Leituras Morais e Instrutivas. O conteúdo da série de livros do curso sistemático da língua materna está repleto de historietas, contos, crônicas, fábulas, poesias que oferecem ao aluno-leitor momentos de informação, momentos de emoção, de alegria, de prazer, de tristeza. Ilustremos a metodologia e a pena do autor com trechos, que muitos dos senhores presentes devem conhecer, mas, que a geração mais jovem – pragmática? – quase sempre desconhece.
Segundo livro – 46ª Lição.
“QUANDO SE DEVE DIZER: NÃO”.
“Não – é uma palavra bem pequena, mas não é sempre muito fácil dizê-la; e, porque não se diz, a gente às vezes sofre bastante. Quando pedem à gente que não vá à escola e que vadie em vez de estudar, deve-se dizer: — Não… Quando nos convidam para alguma ação feia, deve-se dizer: – Não. Se por estas ocasiões sabe-se dizer: – Não, a gente evita muito coisa e é feliz”.[10]
— Sempre tive grande admiração por Köpke, que hoje se une a minha vida acadêmica. Talvez o tenha nas reminiscências da infância. Lembro-me de ter lido e recitado, muitas vezes, a sua poesia
SONHO
“À hora, em que as cortinas
Se fecham lentamente,
E a noite vai descendo
Silenciosamente,
Os olhos cerro, e durmo.
No meu quentinho leito,
E sonho, e por mil mundos
Passeio satisfeito.
Inda ontem (bem me lembro!),
Entrei numa cidade.
E que cidade linda!
Pena é não ser verdade!
As ruas todas eram
De pão de ló calçadas;
De rapadura – as casas;
Os muros – de queijadas;
O chocolate andava
Em carros pelas praças;
Eram de açúcar-cande
Os vidros da vidraça,
Nem uma chave havia
Nas portas dos armários;
Brincavam peixes rubros
Na calda dos aquários.
Empadas descobertas
Serviam de canteiros;
Por flores, tinham dentro
Os camarões inteiros.
Nas arv’res dos passeios
Cresciam bons-bocados.
Pastéis de nata, figos,
E passas, e queimados.
A catedral inteira
Era de goiabada.
Com sino e duas torres,
Tudo de marmelada.
Um chafariz de bolo
Inglês – vertia mel,
Borgonha e Malvasia,
Champanha e Moscatel.
A biblioteca tinha
Só livros de beiju;
Mesas de queijo suíço;
Cadeiras de sagu.
Chovia cajuada,
Groselha e capilé;
Em lama de geleia
Escorregava o pé.
E eu comendo sempre
– Comendo sem parar! –
Quando a mamãe me veio
De súbito acordar!
Vocês façam ideia
Como fiquei danado:
Tinha um pudim de creme
Apenas principiado!”[11]
Era assim que se aprendia. Sinônimos, composição, estética e moral.
– Será que todos conhecem a poesia intitulada “O QUE PASSA MAIS DEPRESSA?” ensinada no terceiro ano?
“Papai, o que é que passa
Mais rápido na vida –
O rio? O vento? A estrela
Nos ares incendida?
Ai, filho! Aprende ainda
Esta verdade dura:
Passam bem mais depressa
As horas de ventura!”[12]
As obras didáticas de João Köpke formaram gerações. Foram reeditadas sucessivamente com dezenas de edições, mais de setenta até 1927, com incessantes revisões do autor. A Livraria Francisco Alves editou os livros de João Köpke revistos pela professora Lucia Monteiro Casassanta, reunidos na conhecida Coleção João Köpke até os anos 60, com títulos como “Histórias de meninos na rua e na escola”, “Histórias que a mamãe contava” e outros.
Köpke morou e lecionou em São Paulo até 1886. ”Motivo íntimo”, confessa, o incompatibilizou com a capital e transfere-se, definitivamente, para o Rio de Janeiro. Em fins de julho saía o prospecto da Nova Neutralidade – o Instituto Henrique Köpke, assim denominado em homenagem a seu pai que, também, fora professor e fundador do Colégio Köpke, em Petrópolis. Henrique Köpke, ao contrário do que insinua o sobrenome bizarro, era português e chegou ao Brasil em 1848. Tinha sido soldado do Batalhão da Rainha e servira na campanha de D. Maria II, a brasileira Maria da Glória, filha de D. Pedro I.
Foi em Petrópolis que Köpke nascera, em 27 de novembro de 1852. Aí passou a infância. Iniciou os estudos no colégio do pai, onde era relevante o ensino de línguas. O curso de humanidades ele o fez no Colégio São Pedro de Alcântara, dos Padres Paiva, no Rio de Janeiro.
O Instituto Henrique Köpke começa a funcionar com inúmeras dificuldades. João Köpke nos conta:
“Seis bancos de dois lugares comprados a crédito na casa Lachaud, eram toda a mobília da escola”… “Os primeiros tempos foram difíceis”. … “As despesas acumuladas haviam avultado; todos os recursos foram tentados para equilibrar a despesa; o relógio e a corrente empenharam-se; mas tudo parecia inútil”.[13]
Quando estava prestes a fechar a escola e aceitar o convite de amigos paulistas para acompanhar o estudo de filhos na Europa, foi procurado por Eduardo Guinle e Conrad Jacob Niemeyer que assumiram o compromisso de auxiliá-lo.
“A escola mandou fazer a sua mobília; organizou as classes; constituiu o seu corpo docente”.[14]
Principia-se a sua vida de dono de colégio no Rio de Janeiro.
A leitura analítica merece de Köpke contínuas atenções e, incorporando toda sua experiência e estudos, publica suas obras para a alfabetização e o ensino de leitura. A primeira é o Livro das Mães contendo exercícios que abrangem o que ele denomina os quatro primeiros passos da leitura. A segunda é o Livro Infantil – primeiras leituras, para encetar os alunos na leitura propriamente dita. Nessas obras apresenta o processo didático a ser empregado pelo mestre de modo a assegurar os efeitos satisfatórios.
Em 1895, o Instituto H. Köpke era consagrado como escola padrão, com o Decreto de Prudente de Morais equiparando-o ao Ginásio Nacional. Permanece na direção e docência de seu afamado colégio por onze anos. Em virtude de divergências com sócios, retira-se da sociedade que mantinha o Instituto.
Campos Sales o nomeia tabelião – oficial de registro geral e de hipotecas no Rio de Janeiro. Mas, suas atividades pedagógicas não cessam. Dá aulas particulares. Continua publicando livros didáticos, viaja para fazer conferências, escreve artigos em jornais e revistas. Para o ensino de línguas edita Lições de Inglês e Curso de Francês. Na comemoração do quarto centenário da descoberta do Brasil publica A GRANDE PÁTRIA, obra escrita em forma dialogada, sobre fatos históricos. Como apresenta no prólogo do livro, não tem pretensões quanto à sua substância.
“Sim, e só, porém, como sugestivo quanto ao método de exposição, que procede do presente para o passado, a fim de que outros mais senhores do assunto melhor partido tirem da sua competência em favor dos que se instruem…”[15]
Usou o diálogo por se lhe afigurar
“que seria isso um recurso da leitura expressiva em classe, e que esta, graças ao seu caráter dramático, não só suscitaria os brios dos interlocutores, animando-lhes o tom, como, captando a atenção dos ouvintes, a que, de outro lado, as alternativas do diálogo descareçam; muito contribuiria para facilitar a impressão e a retentiva dos fatos rememorados”.[16]
Serventuário de justiça, a educação continua em sua mira. Escreve os livros FÁBULAS e PROLÓQUIOS, LOCUÇÕES E PENSAMENTOS. Colabora em jornais e revistas, especialmente na REVISTA PEDAGÓGICA, órgão do Pedagogium do Rio de Janeiro. Em 1916, escreve as famosas cartas aos professores Arnaldo de O. Barreto, Carlos A. Gomes Cardim e Mariano de Oliveira enfeixadas no volume O MÉTODO ANALÍTICO NO ENSINO DE LEITURA. É o seu testamento pedagógico. Diz:
“Com as cartas aqui ora publicadas, ponho termo ao que necessário era dizer sobre o processo do ensino da leitura pelo método analítico. Nas minhas conferências de 1896 e 1916 esgotei o assunto e com a publicação das Cartilhas nº 1 e 2 mostro a praticabilidade dos princípios pregados e o melhor modo, a meu ver, de conseguir todas as vantagens, que deles se devem esperar. Não conto com muito mais tempo de vida; o pouco que ainda posso viver, não o devo malbaratar em polêmicas; vou consagrá-lo inteiramente à conclusão de livros didáticos, em que ponha as lições que a experiência me habilita a dar com algum proveito para melhor instrução dos meus jovens patrícios”.[17]
Nas cartas apresenta, pela última vez, a sua fundamentação teórica do ensino da leitura pelo método analítico paulista. Nelas se revelam a ampla experiência e o profundo conhecimento bibliográfico do autor sobre o assunto que tanto lhe empolgou, Apõe-lhe o adjetivo paulista para assinalar o seu lugar de origem e em preito ao Estado vanguardeiro na renovação da instrução pública. As críticas de Cardim às suas cartilhas são refutadas em nove teses. Na carta enviada a Mariano de Oliveira discorda das instruções práticas para o ensino da leitura expedidas pela Diretoria Geral da Instrução Pública do Estado de São Paulo em 1916. Analisa detidamente a sua Cartilha Analítico-sintética que se orienta pelas Instruções. Seu lúcido espírito liberal é posto em evidência no epílogo da carta a Mariano de Oliveira quando escreve:
“Sem embargo do desacordo (para mim profundo e para si em mínimas divergências), não posso senão regozijar-me com o Estado de São Paulo e com o Brasil inteiro pelo nobre empenho em que os professores da sua terra trabalham pela reforma da processuação didática, substituindo os velhos processos do ensino da leitura por aqueles que os melhores educacionistas aconselham, apoiados na observação e consciencioso estudo da matéria à luz da ciência pedagógica baseada em sólidas investigações psicológicas”.[18]
Como nos conta Moacyr Campos, nos últimos anos de sua vida, João Köpke
“havia organizado na primeira estação de radiodifusão do Brasil – a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, do pioneiro Roquette Pinto – a ‘Hora das Crianças’, que redige com o apelido de Vovô; pensava em novo método de combater o analfabetismo através do rádio: revia sua obra didática, atualizando-a; criara o Teatro Juvenil, servindo-se de histórias que sempre foram ao encontro da meninada: Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, A Bela Adormecida”.[19]
E foi, sempre atualizado, acompanhando o progresso, em plena atividade intelectual que, aos setenta e três anos de idade, aos 28 de julho de 1926, que João Köpke morreu, na cidade do Rio de Janeiro.
* * *
Senhores,
O Regimento desta Academia estabelece, mui sabiamente, que o discurso de posse do novo acadêmico titular terá duração máxima de quarenta e cinco minutos e que fará o elogio do patrono e do fundador de sua Cadeira, no caso, João Köpke e Walther Barioni.
Sobre ambos ainda teria muito que falar. Assumo hoje a honrosa obrigação de aprofundar meus estudos dessas tão fascinantes figuras de homens públicos.
Tenho para mim mesmo muitas perguntas a serem respondidas. Há curiosidades. – Qual a efetiva participação de Köpke no movimento positivista brasileiro? – Qual o seu relacionamento com Silva Jardim? – Quais as consequências para suas ideias, da excomunhão de Silva Jardim no Templo Positivista? – E, em que medida atuou Köpke no movimento republicano: – A colaboração de Rangel Pestana ficou adstrita ao campo da instrução pública ou era mais ampla, cabendo-lhe papel de arauto das ideias do partido? – Quais as suas atividades na Liga do Ensino, associação republicana, fundada no Rio de Janeiro? Há, também, questões pedagógicas, ligadas aos seus estudos. Conheceu mestres europeus e americanos. Cita, em suas obras, Isaac Taylor, Stanley Hall, Parker, Chubbo, Shaw, pedagogos e psicólogos; Sarah L. Arnold e Charles M. Stebbins, autores de cartilha. Como as citações bibliográficas são incompletas, há de se pesquisar detidamente as, por vezes, vagas referências. Há grandes lacunas a serem preenchidas para compor o verdadeiro e completo retrato de meu patrono.
Espero poder dedicar parte de meu tempo a esta tarefa, que outros, que me sucederão nesta Cadeira, certamente, também irão empreender. João Köpke o merece. Agradeço, enternecido, a presença de todos. Muito obrigado.
[1] A posse foi realizada em Sessão Solene, nas Faculdades Osvaldo Cruz, no dia 21 de outubro de 1980, na Cadeira nº 5, cujo patrono é João Köpke.
[2] Justificativa ao Requerimento nº 2504/78 apresentado à Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo em 16/11/78 pelo Deputado Sólon Borges dos Reis. DOE 17/11/78, p.73.
[3] Frases extraídas do jornal “A Província de São Paulo”.
[4] Moacyr Campos – João Köpke e a educação – Revista do Professor, fev. 1953, p.19.
[5] J. R. Moreira – Teoria e Prática da Escola Elementar – CBPE – INEP – MEC – Rio, 1960, p.184.
[6] João Köpke, Três conferências – São Paulo, 1888.
[7] Rangel Pestana – “João Köpke” – Almanaque Literário, São Paulo, 1883.
[8] Tobias Moscoso – João Köpke – Educação – Órgão da Associação Brasileira de Educação, nº 19 e 20, jan. dez. 1944, p. 41 a 43.
[9] João Köpke – Leituras Morais e Instrutivas – 1º Livro – Série Rangel Pestana – São Paulo.
[10] João Köpke – Leituras Morais e Instrutivas – 2º Livro – Série Rangel Pestana –São Paulo.
[11] Idem
[12] João Köpke – Leituras Morais e Instrutivas – 3º Livro – Série Rangel Pestana – São Paulo.
[13] João Köpke – Três conferências – São Paulo – 1888.
[14] Idem
[15] João Köpke – A Grande Pátria – Rio de Janeiro- 1900.
[16] Idem
[17] João Köpke – Carta a R. Puiggari e A. Barreto – Revista do Ensino, São Paulo, nº 2, 1904.
[18] João Köpke – Carta a Mariano de Oliveira.
[19] Moacyr Campos – op. cit.