Carlos Vogt toma posse na Academia Paulista de Educação
O Professor e Poeta Carlos Vogt discursou e declamou um poema sobre a capital paulista na cerimônia em que tomou posse da Cadeira nº 15 na Academia Paulista de Educação. Ela aconteceu em 22 de novembro de 2023, na sala de reuniões do Conselho Universitário da Unicamp com a presença do Magnífico Reitor da Universidade, prof. Antonio José de Almeida Meirelles e do Presidente do Conselho Estadual de Educação, prof. Roque Theóphilo. A Cadeira nº 15 tem Antônio Firmino de Proença como Patrono e Vicente de Paula Rocha Keppe como Fundador. Carlos Vogt foi antecedido pelo professor Luiz Barco.
Leia a íntegra do discurso:
“Senhoras e Senhores,
Educação e Cultura formam o binômio da formação humanista do indivíduo e da sociedade. Acrescente-se a ele a ciência e têm-se o fenômeno contemporâneo da cultura cientifica. Juntos constituem os pilares de construção, edificação, manutenção e aperfeiçoamento da cultura política que alimenta e promove a democracia como forma, por sua vez, de manter viva a chama do conhecimento e do bem-estar social e cultural dos povos e das nações.
O ideário da educação supõe tudo isso e requer de nós, de cada um, de todos as reafirmações constantes do compromisso com a vida, com as diferenças e com a igualdade de oportunidades.
Ingressar na APE, agora como titular, é também uma oportunidade de continuar a trabalhar por tudo isso com a felicidade de estar num ambiente, ele próprio comprometido, desde a sua fundação com esse ideário e com a qualidade da vida em sociedade.
A utilidade do conhecimento
Um dos grandes desafios do mundo contemporâneo é, ao lado do chamado desenvolvimento sustentável, a transformação do conhecimento em riqueza. Como estabelecer padrões de produção e de consumo que atendam às demandas das populações crescentes em todos os cantos da Terra, preservando a qualidade de vida e o equilibro do meio ambiente em todo o planeta? Como transformar conhecimento em valor econômico e social, ou, num dos jargões comuns em nosso tempo, como agregar valor ao conhecimento?
Em resumo, a primeira pergunta propõe o que chamaríamos de desafio ecológico, enquanto a segunda lança o que poderíamos chamar de desafio tecnológico. Para enfrentar essa tarefa, própria do que também se convencionou chamar economia ou sociedade do conhecimento, deveríamos estar preparados, entre outras coisas, para cumprir todo um ciclo de evoluções e de transformações do conhecimento. Ele vai da pesquisa básica, produzida nas universidades e nas instituições afins, passa pela pesquisa aplicada e resulta em inovação tecnológica capaz de agregar valor comercial, isto é, resulta em produto de mercado.
Os atores principais desse momento do processo do conhecimento já não são mais as universidades, mas as empresas. Entretanto, para que a atuação das empresas seja eficaz, é necessário que tenham em seu interior, como parte de sua política de desenvolvimento, centros de pesquisa próprios, ou consorciados com outras empresas e com outros laboratórios de universidades. O importante é que a política de pesquisa e desenvolvimento seja da empresa e vise às finalidades comercialmente competitivas da empresa. Sem isso, não há o desafio do mercado, não há avanço tecnológico e não há, por fim, inovação no produto.
Um dos pressupostos essenciais da chamada economia ou sociedade do conhecimento é, pois, para muito além da capacidade de produção e de reprodução industriais, a capacidade de gerar conhecimento tecnológico e, por meio dele, inovar constantemente em um mercado ávido de novidades e de exigências de consumo constantes. Antes, na economia tipicamente industrial, a lógica de produção era multiplicar o mesmo produto, massificando-o para um número cada vez maior de consumidores. Costuma-se dizer que, na sociedade do conhecimento, essa lógica de produção tem o sinal invertido: multiplicar cada vez mais o produto, num processo de constante diferenciação, para o mesmo segmento e para o mesmo número de consumidores. Por isso, entre outras coisas, a importância da pesquisa e da inovação tecnológicas para esse mercado.
A ser verdade essa troca de sinais, a lógica de produção do mundo contemporâneo seria não só inversa, mas também perversa, já que resultaria num processo sistemático de exclusão social, tanto pelo lado da participação na riqueza produzida, dada a sua concentração – inevitável para uns e insuportável para muitos -, como pelo lado do acesso a bens, serviços e facilidades por ela gerados, isto é, do acesso ao consumo dos produtos do conhecimento tecnológico e inovador.
Desse modo, é preciso mencionar um terceiro desafio, tão urgente quanto os anteriores: o desafio de que, no afã do utilitarismo prático de tudo converter em valor econômico, tal qual um rei Midas que, na lenda, tudo transformava em ouro pelo simples toque, não percamos de vista os fundamentos éticos, estéticos e sociais sobre os quais se assenta a própria possibilidade do conhecimento e de seus avanços. Neste sentido, verdade, beleza e bondade, no mínimo, dão ao homem e, como já se escreveu, a ilusão de que por elas, ele escapa da própria escravidão humana. Assim, dividir a riqueza, fruto do conhecimento, e socializar o acesso a seus benefícios, frutos da tecnologia e da inovação, são, pois, o terceiro grande desafio que devemos enfrentar, e a formulação desse desafio poderia se dar dentro da perspectiva de um pragmatismo ético e social. Quem sabe possa esse desafio constituir a utopia indispensável ao sonho de solidariedade das sociedades contemporâneas.
Todo conhecimento é útil. Como o fundamento da moral é a utilidade, é possível afirmar que a utilidade do conhecimento é o que o torna ético, por definição. Nesse sentido, não há conhecimento inútil, já que a ação de conhecer está voltada para proporcionar felicidade, prazer e satisfação à sociedade. O conhecimento é útil porque, como outras ações éticas do ser humano, corresponde à necessidade de uma prática desejável, aquela que nos leva a buscar a felicidade de nossos semelhantes e nela sentir o prazer de sua realização no outro.
Uma das características fundamentais do conhecimento contemporâneo é o seu utilitarismo.
Em que sentido o conhecimento utilitário das economias globalizadas na sociedade do conhecimento difere da utilidade ética constitutiva de todo conhecimento? Procurar responder a essa questão é também procurar entender, na lógica de funcionamento das tecnociências, como as grandes transformações tecnológicas influenciam a ciência e como a ciência, ela própria, propicia novas tecnologias e inovações que dinamizam os mercados e ativam o consumo das novidades dos produtos delas decorrentes.
Desse ponto de vista, o conhecimento é utilitário não porque tenha finalidade prática, mas por agregar valor aos produtos dele derivados e por ter objetivos fortemente comerciais.
A comercialização do produto do conhecimento visa também à felicidade do outro, pela satisfação e pelo prazer, agora, do consumidor a que ficou reduzido o seu papel social.
Por outro lado, a dinâmica do conhecimento pressupõe a liberdade de conhecer. Os limites dessa liberdade são dados pelo alcance de nossa capacidade de conhecimento, isto é, nos termos dos Ensaios de Michel de Montaigne e da filosofia de Blaise Pascal, pela portée, pelo raio de ação, do alcance da vida, da vida dentro do alcance de nossa ação no mundo. Em outras palavras, e nos termos de Francis Bacon, a liberdade do conhecimento tem os limites do conhecimento puro em oposição ao conhecimento orgulhoso, oposição que, de certa forma, sob diferentes expressões, caracteriza todo o Iluminismo e a grande e longa herança racionalista que nos legou e que permanece viva em nossas atitudes teóricas e metodológicas diante do mundo, de seu conhecimento e dentro do conhecimento do conhecimento do mundo, para introduzir uma pitada do idealismo de Immanuel Kant.
A alegoria mais conhecida do elogio à humildade do conhecimento contra o orgulho e a arrogância da pretensão metafisica das perguntas essenciais e das respostas definitivas está contida no jardim que Cândido, na obra Cândido ou o Otimismo, de Voltaire, descobre e decide cultivar em oposição às inquietações sem limite, isto é, sem alcance, sem portée, sem raio de ação, de Pangloss.
Da mesma forma, Jonathan Swift, em Viagens de Gulliver, descreve os laputanos plenos de predicados que os tornam ilimitados e inúteis de conhecimento. São dotados para conhecer, sendo matemáticos exímios, mas são ambiciosos, vivendo nas nuvens, por isso têm “um dos olhos voltado para dentro e o outro apontando diretamente para o zênite”. Quer dizer, são orgulhosos porque querem a verdade definitiva e, por serem dotados dessa ambição de conhecimento, vivem tropeçando em si mesmos sem se dar conta do jardim que está ao alcance da vida de cada um para ser cultivado.
Para que se tenha medida da permanência desse tema, e num outro campo de produção intelectual, vale lembrar o episódio da resenha publicada em 12 de agosto de 1915 no The Times Literary Supplement sobre o livro A Servidão Humana, de William Somerset Maugham, na qual se afirma que o herói do romance, Philip Carey, do princípio ao fim da narrativa, “estava tão ocupado com seus anseios pela lua que jamais conseguia ver os seis vinténs a seus pés”.
Quatro anos depois da publicação da saga de formação e de aprendizagem do torturado Philip Carey, Maugham publica um romance inspirado na história de vida de Paul Gauguin. Ele cria um personagem – Charles Strickland – que, de operador da bolsa de Londres, abandona tudo – vinténs e família – e se entrega, de corpo e alma, no Taiti, à obsessão única e exclusiva de sua exuberante produção pictórica. O livro recebeu o título de The Moon and Sixpence (A Lua e Seis Vinténs; no Brrasil, Um Gosto e Seis Vinténs), em resposta à resenha do The Times Literary Supplement aceita como uma provocação a que responde o narrador autobiográfico doromance, com uma forte simpatia pela saga do herói que despreza os apelos materiais e as obrigações sociais de seus compromissos e parte em busca da lua e da realização de seus sonhos. Essa solução é em tudo contrária à do desfecho de romântico prosaísmo que caracteriza a paz e a tranquilidade do jardim de amor-afeição (loving-kindness) que o casamento de Philip Carey e Sally Altheny constitui, ao final da saga de formação e de amadurecimento do protagonista.
Esses dois romances de Maugham poderiam ser considerados uma representação das duas pontas de tensão porque se estende entre nossa existência no mundo e o conhecimento do mundo de nossa existência. É como se fossem totens epistemológicos entre os quais ressoa a pergunta que o homem não deixará de fazer enquanto durar sua humanidade. “Qual o sentido da vida, se é que a vida tem algum sentido?” Penso que o sentido da vida é o conhecimento que, desse modo, é ilimitado pela amplitude da pergunta e é, ao mesmo tempo, limitado e útil pelo alcance de nossa capacidade de resposta.
Algo parecido pode ser encontrado, ou perdido, na metáfora fantástica e imortal do universo representado no conto “A Biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges. Depois de perambular pelos paradoxos do conhecimento contidos em sua labiríntica arquitetura, o autor-narrador anota, sob a forma de falsa conclusão, que a biblioteca é ilimitada e periódica. E termina: “Se um viajante eterno a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao cabo de séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se alegra com essa elegante esperança”.
A cidade e os Livros
Quando cheguei em São Paulo, em 1960, vindo de
Ribeirão Preto,
De Orlândia, onde estudei e aprendi, com o professor
Cyro Armando Catta Preta a gostar de literatura, a amar a linguagem e outros simbolismos que tais,
De Sales Oliveira, onde nasci e de onde carrego as marcas de intransponíveis ausências,
Quando cheguei em São Paulo, em 1949, pela primeira vez,
Aos seis anos de idade, com minha mãe, na
Estação da Luz,
Contei os bondes que passavam ininterruptos pela praça
em frente e fiquei, menino,
Admirado com a quantidade dos que circulavam
Abertos, com passageiros, o cobrador no estribo,
Dos que fechados, Camarões chamados, continham
Formas mais compostas, indistintas e distantes formas
guardadas na proximidade de fatos e acontecimentos
passados,
Como o do jogo, no Pacaembu, entre Palmeiras e São Paulo a que me levou,
Para me converter, tio Altino Osório, são-paulino devoto,
E quase que consegue porque vi pela primeira, única e definitiva vez,
Jogar, de um lado, Oberdan, do outro, Leônidas, o
Diamante negro, o inventor da bicicleta,
Que pôs para andar, neste jogo, o time do Palestra.
Quando cheguei em São Paulo, em 1960, fui para
Estudar no Roosevelt, da rua São Joaquim,
Na Liberdade e no Cursinho Castelões, na rua Direita,
Perto do Largo São Bento,
Preparar-me ao vestibular de letras da Faculdade de
Filosofia, Ciências e letras, da Universidade de São
Paulo, à rua Maria Antônia.
E à Faculdade de Direito do Largo São Francisco,
O presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira ultimava
Sua Brasília, terminava seu mandato,
O país, capital no planalto, ingressava, quase sem
perceber,
Para nós que vivíamos, eufóricos, a eloquência da
Democracia, seus versos, violões de rua,
Na crise política que o apocalipse travestido em plácida
agitação
Preparava, cozia, fermentava no pão duro, amanhecido
E seco do golpe militar de 1964.
Quando cheguei a São Paulo, em 1960, tudo era novo,
no país dos novos,
A Novacap que se inaugurava,
O cinema que na Vera Cruz se acabava e que no Rio de
Janeiro nascia de novo no cinema novo,
Os poetas, então novíssimos na coleção e na antologia
do editor Massao Ohno,
Tudo novo, menos o Estado que já fora novo, embora
Velho conhecido por repetição,
Inclusive a que viria depois do golpe militar, com
sofisticação de atualidade,
Que não era novo, pois, mas que espreitava de suas
velhices carrancudas o destino
Dessa liberdade frágil, prazerosa da Maria Antônia,
Juão Sebastião Bar, FAU-maranhão, Livraria
Francesa, Pioneira, Bar Sem Nome, Bar do Zé,
Arena, Oficina, Riviera,
Grêmio da Faculdade de Filosofia, Cursinho do
Grêmio, Martinico Prado, Albuquerque Lins,
Paribar, Ferro´s, Redondo, Chic Chá, Catequese e
Comício Poético, Sermão do viaduto, Surrealismo,
Geração Beat, Rilke, Metafisica, Lautréamont,
Clarice, Roman Jakobson, Todorov, Teatro da
Aliança Francesa, Rua General Jardim, Barão de
Itapetininga, Cinemateca, Sete de Abril, Avenida
São Luiz, Bráulio Gomes, Rua da Consolação,
Biblioteca Municipal, Mário de Andrade.
Paulicéia desvairada, meditação sobre o Tietê, ode ao
Burguês, remate de males.
Mário encontrando Piva, encontrando Ginsberg
No Parque Ibirapuera de um supermercado na
Califórnia,
Paranoia, caos, Mário em São Francisco, com Carlos
Felipe Moisés, Claudio Willer,
Visitando o sobe e desce das ruas e das névoas, do oriente, ocidentais,
Oh! Este orgulho máximo de ser paulistamente!!!
São Paulo! Comoção da minha vida…
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Garoa do meu São Paulo,
Garoa sai dos meus olhos.”