Bernardete Gatti: Não podemos confundir educação com ensino
A Revista Educação , que é uma referência há 28 anos em reportagens e artigos na área da educação básica, publicou entrevista da Acadêmica Bernardete Gatti concedida ao jornalista Rubem Barros. A íntegra e os links para a Revista seguem neste post.
“A nova titular da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica (IEA/USP) diz que os processos de ensino e aprendizagem não podem perder sua dimensão relacional e que os tempos atuais exigem novos modelos na interação entre estudantes e docentes
Bernardete Angelina Gatti é quase um sinônimo de imersão no universo da formação docente no Brasil. Formada em pedagogia pela USP e doutora em psicologia pela Universidade Paris VII, ela foi empossada em 22 de abril deste ano como titular da Cátedra Alfredo Bosi de Educação Básica, do IEA/USP (Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo).
Criada em 2019 com apoio do Itaú Social, a Cátedra tem como objetivo refletir sobre a educação básica pública brasileira e propor caminhos para as políticas públicas. Em 2021, foi rebatizada, agregando o nome do professor Alfredo Bosi, intelectual que, além de referência nos estudos e na crítica literária, foi um defensor constante da educação pública de qualidade.
Bernadete Gatti, cuja carreira está identificada com as pesquisas educacionais realizadas pela Fundação Carlos Chagas, da qual foi superintendente de educação e vice-diretora, já era membra do Conselho Consultivo da Cátedra. Como frisado em sua posse, a instituição aposta num trabalho coletivo que já resultou em várias reflexões, pesquisas, cursos e colóquios, disponíveis no site.
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Segundo a professora, que também é membra do Conselho Estadual de SP e da Academia Paulista de Educação, além da continuidade das atividades atuais, o próximo ano será marcado por pesquisas em cinco áreas temáticas, material que deverá resultar em um livro a ser publicado em 2025.
Em seu olhar sobre a formação docente, Gatti aponta a necessidade de não se perder a noção de que a educação é um fenômeno relacional, que deve ser pautada por uma ética social. E a formação inicial precisa ser mais integrativa, base para uma nova modelagem da escola.
Em seu discurso de posse na Cátedra Alfredo Bosi fez um alerta de que precisamos nos preocupar mais com a dimensão humana da formação docente, negligenciada em prol de aspectos de ensino e aprendizagem, como se a educação se restringisse a isso.
Realmente, não podemos confundir educação com ensino. Existem muitas discussões, pesquisadores e teóricos da educação que têm chamado atenção de que é preciso associar o ensino a posturas e valores. É preciso prestar atenção ao trabalho do professor, pois ele é um exemplo para os alunos, que olham a maneira como ele fala, se comporta, adentra a sala de aula.
As atitudes não se formam por regras, por você vomitar um conhecimento. Elas se formam por se levantar questões em situações nas quais valores são importantes e certas atitudes também. Mas o professor não está preparado para lidar com essas situações, e nem para tratar os seus conteúdos de modo valorado, que tenham um significado para o coletivo humano e como um produto que beneficie o bem comum. É muito importante não confundir educação e ensino, pois tratamos o ensino como algo essencialmente cognitivo, como se fosse possível educar o aluno só do nariz para cima, só pensando em seu cérebro, quando na realidade trabalhamos com a formação de uma pessoa. A ideia da educação integral vai nessa direção, de considerar os alunos não só na sua integralidade como seres humanos, mas também como seres relacionais, que dependem uns dos outros para viver.
Quando se fala em ensino e aprendizagem, isso traduz uma visão mais tecnicista da educação, enquanto a educação acrescenta um sentido ético ao processo de conhecimento?
Um sentido humanístico-ético. Eu diria uma ética social, para enfatizar que somos dependentes, relacionais.
Hoje há valorização das competências socioemocionais. Isso não decorre da supervalorização da aprendizagem e do absoluto esquecimento de outras dimensões da educação? Essas competências não são novas roupagens de coisas que estão na educação desde os gregos?
Tem razão. As socioemocionais foram cunhadas como reação ao excessivo tratamento cognitivista que se põe na educação. Isso vem nessa direção, mas desde sempre cognição e afeto, cognição e emoção são inseparáveis. A psicologia social da educação, a própria psiconeurologia mostram isso, não dá para separar. Conhecimento é emocionado, aprendizagem é emocionada, causam sensações. Nesse sentido, o socioemocional foi uma reação retórica.
Apesar de muito importante no mundo contemporâneo, por vezes o papel da tecnologia parece supervalorizada, como se pudesse, por si só, resolver muitas coisas na educação.
Nesse mundo marqueteiro e consumista em que estamos vivendo, vira o brilho de uma joia que está sendo vendida, mas o brilho de uma joia falsa. A tecnologia não tem uma existência independente do ser humano, depende dele, pois é criada por ele e tem um formato que esse ser humano dá para ela. Mesmo a inteligência artificial (IA) não é um ser independente. Tem uma base de dados, tem uma maneira de os algoritmos acionarem essa base de dados, ambas criadas pelo homem. É mais uma questão de venda do que de representação social, de essência.
No entanto, a tecnologia, o mundo virtual da maneira que vem se desenvolvendo, é muito importante para a educação. Tem de ser utilizado dentro dos fins da educação. O que queremos é que esteja a serviço da educação do ser humano. Infelizmente, os professores não estão preparados para lidar com as tecnologias que aí estão e incorporá-las na preparação e no desenvolvimento de suas aulas, utilizá-las para fins educativos de forma construtiva, de tal maneira que o aluno também seja um partícipe nessa construção. Nesse aspecto, temos muitos problemas com a formação dos professores.
Ao assumir a Cátedra, a senhora acentuou que se trata de um órgão de atuação coletiva. Como tal, o que terá continuidade e o que será proposto que a Cátedra assuma de agora em diante?
É uma continuidade no sentido dos meios que vamos utilizar na atuação da Cátedra, que já vêm sendo usados. Ou seja, manteremos a ideia dos minicursos para tratar de temas que possam interessar em especial à formação dos professores e à formação dos formadores; os colóquios, em que expandimos ideias, culturalmente falando, na interdisciplinaridade necessária à compreensão da realidade. Por exemplo, trazer o mundo das comunicações para problematizá-lo, ou o mundo da IA, como vamos fazer em breve, ou seja, ampliar os horizontes culturais sempre pensando que esses horizontes têm uma inserção necessária na escola porque a escola está inserida na sociedade. Isso continuará e deveremos expandir os estudos.
Realizamos muitos estudos sobre temas básicos nesses últimos quatro anos. O livro resultante (Universidade e Educação Básica – Ensaios Bosianos, 2024) – está em Obras Abertas da Universidade de São Paulo, disponível para download gratuito.
E quais temas estão nesse livro?
São temas, por exemplo, sobre a questão de competências, trazendo perspectivas variadas, sem entrar numa trincheira de um só tipo de conceito, mas abrir as possibilidades de trabalhar a questão de modo intelectualmente mais aberto, diversificado; tem uma discussão sobre as questões atuais da educação básica logo na abertura, e no final há um capítulo sobre qual futuro nos espera, quais cenários e dilemas serão colocados pela educação, tentando antecipar isso.
E também foram discutidas as questões da diversidade, da inclusão, do racismo estrutural, da aprendizagem emocional, todas as circunstâncias aí presentes. A educação envolve seres humanos se relacionando com seres humanos. Mesmo que se use meios virtuais ou instrumentos diversos, existem pessoas de gerações diferentes em contato. Isso provoca uma série de questões, das quais decorre um capítulo muito denso. Fizemos ainda uma análise dos 100 e poucos minicursos oferecidos para tentar entender como eles poderiam ser compreendidos em subgrupos e o que emergiu de conhecimentos. O livro traz reflexões não só sobre a história da Cátedra, mas também as ideias ventiladas como fundamentais para a educação.
Em quanto tempo esses minicursos foram produzidos?
Num arco de quatro anos. Temos uma biblioteca virtual desses minicursos, também disponíveis no site da Cátedra. São muito consultados, mais no pós-oferta do que na hora em que são oferecidos. E temos também os colóquios e as conferências.
E o que diz o capítulo que tenta fazer previsões sobre o futuro, algo cada vez mais difícil?
Traz projeções de cenários, realizados pelos professores Luis Carlos Menezes, Sônia Jaconi e Tathyana Gouvêa. Eles lançam algumas ideias sobre as quais temos trabalhado na Cátedra, pois não é possível ignorar essas mudanças que estão acontecendo.
O que é mais instigante ou perturbador nas mudanças apontadas?
As mudanças no trabalho humano. Essa é a parte mais instigante e a educação não está muito voltada para isso. O trabalho humano vem mudando radicalmente e de forma rápida. Várias vezes houve mudanças nesse universo, mas agora elas são mais rápidas. A Cátedra tem um grupo, uma comissão executiva de 10 pessoas, que discutiu tudo isso e foi feito um balanço, coordenado pelo [professor] Naomar de Almeida Filho. Neste ano, retomamos isso e decidimos que nosso foco seria um pouco mais preciso: “A educação básica e seus agentes”.
Muita coisa foi discutida nesses quatro anos e agora vamos centrar os esforços em cinco grupos de estudos, aprofundando temáticas que podem contribuir com as discussões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), do Plano Nacional de Educação (PNE) e das práticas educativas.
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O primeiro é sobre as questões curriculares (currículos efetivamente praticados e o tratamento desses conteúdos); o segundo é sobre estudos dos anos finais do ensino fundamental, que chamamos de ‘a etapa esquecida’, cuja queda de desempenho dos alunos é dramática, etapa de passagem para a adolescência e de um professor ou dois para 12 ou 13; o terceiro são as questões da escola e seu entorno, a territorialidade um pouco mais ampla, as relações com a sociedade do entorno, a economia; o quarto estuda um novo conceito de trabalho e como esse conceito seria inserido na formação dos professores e nos trabalhos curriculares e dinâmicas escolares; por fim, o último estudará as metodologias ativas numa perspectiva de aprendizagem expansiva, ou seja, aquela aprendizagem que abre espaço não só para o aprender a aprender, mas para a criatividade.
Temos uma educação que não abre espaço para a criatividade. As avaliações das crianças demandam conteúdo e mais conteúdo. Essa é uma nova abordagem que vem se desenvolvendo em outros países e aqui está começando a aparecer. Diz respeito a considerar o lado da aprendizagem antes de considerar uma direção unilateral do ensino. É nessa direção que estamos caminhando. Esperamos produzir para o ano que vem um livro com contribuições inovadoras, com algum diferencial.
O que é possível fazer em relação à articulação entre universidades e redes públicas para combater questões como do estágio?
Algo que percebemos é que essa estrutura, do jeito que está composta na escola, precisa mudar. Desde como a sala de aula é montada, com fileiras, aulas de 50 minutos etc., esse modelo hora-aula precisa ser superado. Isso está associado a oferta de uma formação continuada que traga uma nova visão sobre o que é relacionar-se com crianças que estão entrando na pré-adolescência e vão adolescer naquele período.
Sem certas mudanças radicais e uma formação concomitante dos professores que atuam na rede, além de uma formação inicial mais integrativa, teremos poucos êxitos em dar significação para os estudantes nesse espaço. É uma fase em que já estão se perguntando quem são, porque estão ali, qual o sentido disso tudo. Há estudos na área da psicologia da educação que mostram o desânimo das crianças nesse momento, que não entendem para que serve tudo aquilo, que o picadinho de conhecimento oferecido não tem molho. Ainda não saberia dizer quais referentes vamos colocar, mas chegamos à ideia de que a modelagem da escola nessa fase de desenvolvimento e também no ensino médio não podem continuar desse jeito. Os espaços físicos de aprendizagem têm de ser ajustados a uma nova realidade, o que tem a ver com os meios que o professor poderá acionar para mudar.
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Outra coisa: um modo de trabalho que integre professores. Há uma parte disciplinar, mas, por exemplo, a língua portuguesa é falada em todas as disciplinas. Em tese, também pode ser ensinada em todas as disciplinas. Isso implica olhar a BNCC e o sentido dos conteúdos que aparecem ali, rever tudo isso e integrar questões da utilização desses meios mais avançados para desenvolvimento da aprendizagem, da curiosidade, da motivação, da iniciativa, da autonomia, do gosto pela busca do conhecimento, das surpresas que isso pode trazer. Há escolas que já fazem isso, inclusive públicas, apenas introduzindo por meio de projetos. Enfim, estamos dando os nossos primeiros passos.
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Quem foi Alfredo Bosi
Nascido em 1936, ingressou como docente na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP) em 1959. Em 1985, tornou-se titular de literatura brasileira, assunto no qual se notabilizou como historiador e crítico, com a publicação de obras como História concisa da literatura brasileira (1970), O ser e o tempo da poesia (2000) e Dialética da colonização (1992). Foi também diretor do IEA e membro da Academia Brasileira de Letras.
Em sua trajetória, Bosi sempre acompanhou de perto caminhos e descaminhos da educação brasileira e defendeu sua oferta com qualidade e gratuita. Foi figura presente nos debates públicos, tanto aqueles relacionados à literatura como sobre a educação. Exemplo disso pode ser visto em Entre a história e a literatura (2013), reunião de 40 textos de formato variado, entre eles ensaios inéditos, entrevistas e textos de intervenção. Abordou então os desafios da educação e refletiu sobre sua própria formação.”