Artigo – Apagão docente: O que está acontecendo com as licenciaturas no Brasil?
A Acadêmica Bernardete Gatti, uma das maiores pesquisadoras brasileiras na área de educação, é citada em artigo -de autoria de Patrícia Valim, Rosangela Aparecida Hilário, Arthur P. O. Balbani e Eduarda F. Vieira -publicado recentemente pelo jornal “NEXO, políticas públicas” (leia aqui). Bernardete coordenou estudos da área de formação de professores, e é uma das principais especialistas desta área no nosso país.
O texto defende que a evasão das licenciaturas e o “apagão docente” têm diversas origens: desvalorização da carreira, imagem social ambígua dos professores, baixa autoestima e descontinuidade política, assim como, a cultura do assédio no ambiente acadêmico .
por Patrícia Valim, Rosangela Aparecida Hilário, Arthur P. O. Balbani e Eduarda F. Vieira
A RBMC (Rede Brasileira de Mulheres Cientistas) é um movimento social que surgiu na pandemia para combater o negacionismo científico e debater a condição das mulheres naquele momento dramático. Naquela ocasião, a carta compromisso que deu origem à RBMC teve mais de 3.000 assinaturas; hoje, somos o maior movimento social de cientistas do país, atuando na construção coletiva de uma política científica com equidade de gênero e raça.
No ano passado, a RBMC construiu a campanha nacional #ASSÉDIOZERO, cujo ponto de partida foi o artigo “Pelo fim da cultura do assédio no ambiente acadêmico” das cientistas Geny Guimarães, Monika Dowbor, Olívia Perez, Patrícia Valim e Patrícia de Abreu, com a realização de lives com especialistas que apresentaram dados sobre a cultura de assédio na academia e boas práticas para combatê-la, levando a outras ações que resultaram no levantamento de dados atualizados sobre o tema para a redação de uma Cartilha da RBMC.
As cientistas da RBMC diretamente ligadas à essa campanha confirmaram que não há como separar a construção de boas práticas para o combate à cultura do assédio na academia da superação do “Apagão Docente” causado pelo alto índice de evasão nas licenciaturas, conforme alertado há tempos (GATTI, 1991). Decidimos, então, fazer uma “ocupação científica” no portal Nexo Políticas Públicas para tornar pública a preocupação e buscar caminhos para reversão deste quadro.
Em 2009, a Professora Bernadete Gatti expôs o prognóstico sobre o apagão docente e apontou que a falta de uma política pública que traga de volta o interesse pela carreira docente na educação básica pelas estudantes do ensino médio terá como consequência imediata o colapso da produção científica.
A evasão das licenciaturas e o “apagão docente” têm diversas origens: desvalorização da carreira, imagem social ambígua dos professores, baixa autoestima e descontinuidade política. Os dados do Censo da Educação Superior de 2022 e da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural das graduandas das IFES – 2018 sugerem pistas sobre as variáveis do “Apagão docente” – sendo a cultura do assédio no ambiente acadêmico uma das principais causas do alto índice de evasão. Atualmente, 58% das pessoas discentes que cursam licenciatura abandonam a carreira antes da formatura.
A porta de entrada para o ensino superior para as pessoas que o acessam pelas ações afirmativas é a Licenciatura – somando isso ao percurso educacional enfrentado, não é difícil compreender porque assédio e evasão recaem primeiro e em maior grau sobre as pessoas negras e pobres.
“Assédio moral” foi incorporado pela primeira vez na pesquisa da Andifes de 2017. Com a inclusão, pode-se verificar o baixo letramento de gênero e raça da academia sobre o assédio e sua transversalidade no abandono do curso, como a rubrica “dificuldades de relacionamento no curso” (19,1%). Quando o tema é associado com “Assédio, bullying, perseguição, discriminação ou preconceito” (4,8%), soma-se 23,9%.
E como o assédio se manifesta na academia? Por meio de comentários, ironias e afirmações depreciativas sobre a falta de “requisitos básicos” para estar na universidade. E quem é atingido por essa falta de pré-requisitos? Estudantes que passaram a educação básica sem corpo docente – que, quando existente, não raro, pouco sabe sobre o letramento necessário para ministrar a disciplina.
A pesquisa também constatou que 62,8% das vítimas são do sexo feminino, ressaltando que quanto mais o gênero declarado se afasta do padrão tido por dominante, maior o assédio. O recorte de gênero permite aferir os mais afetados pelo assédio acadêmico e o consequente abandono do curso – em ordem decrescente, estudantes não-binárias, mulheres transexuais e transgênera, homens transexuais e transgênero, mulheres cisgênera e homem cisgênero.
Já o recorte racial da pesquisa sugere que o alvo da cultura do assédio é justamente quem ingressou na graduação através das políticas de democratização de acesso: pretas, pobres e oriundos de escolas públicas, onde a falta generalizada de professoras formadas atingem principalmente os territórios pobres e periféricos, que como escrito por Lélia Gonzalez, tem cor e gênero: mulheres e negras.
A democratização do acesso à graduação em uma Ifes (Instituto Federal de Educação), no entanto, não foi acompanhada de letramento de gênero e racial como mecanismos para o combate da cultura do assédio e a criação de políticas de permanência, pois do conjunto de vítimas da cultura do assédio no ambiente acadêmico, somente 8,3% formalizou a reclamação. As causas? Medo, ausência de expectativa de solução e desconhecimento dos canais de formalização.
Em entrevista sobre o “Apagão Docente”, Luiz Carlos Zalaf Caseiro afirmou que “somente um terço dos estudantes que finalizam as licenciaturas vai atuar na docência; o restante opta por outros caminhos profissionais” – entre 2014 e 2019, “a taxa de ociosidade de licenciaturas em instituições públicas foi de cerca de 20%, enquanto em 2021 esse percentual subiu para 33%”.
Diante desses dados, como a RBMC pode colaborar com o debate público sobre o “Apagão Docente”?
O primeiro passo é enfrentar a percepção de que as licenciaturas são “graduações de segunda linha”: é nítido o desconforto de alguns colegas em dizer que trabalham com formação docente – como se fosse possível formar alguém sem professoras. Após, é preciso debater quem são essas professoras, onde se formaram, que tipo de formação carecem, quais suas vulnerabilidades e necessidades, adotando medidas de prevenção e combate à cultura do assédio no ambiente acadêmico. Por fim, é preciso desmistificar as avaliações institucionais como “espaços de caça docente”: não se vê outros profissionais serem penalizados por falta de condições de trabalho.
O Brasil vive um apagão docente. Não se escuta mais o interesse de alunos e alunas pela carreira docente em nenhuma parte do país. É preciso retomar o orgulho e o respeito em ser professor. Sem professores, não há nenhuma profissão. Para isso, o primeiro passo é valorizar efetivamente o magistério, entender as suas dificuldades e necessidades e criar estratégias para incentivar novamente nossos jovens a ver no magistério um futuro profissional.
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BIBLIOGRAFIA
Brasil. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Censo da Educação Superior. dez 2020. Disponível em: Disponível aqui. Acesso em: 01/03/2024.
BOF, Alvana Maria; CASEIRO, Luiz Zalaf & MUNDIM, Fabiano Cavalcanti. Carência de professores na educação básica, risco de apagão?
Gatti, Bernardete A. Formação de professores no Brasil: características e problemas. Educação & Sociedade, v. 31, p. 1355-1379, 2010.
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Rosangela Aparecida Hilário é doutora em educação (FEUSP). Professora associada da Universidade Federal de Rondônia. Líder do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde. Coordenadora do Comitê Executivo da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas. Conselheira do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social e Sustentável da Presidência da República.
Arthur P. O. Balbani é mestre em direito (USP) e graduado em direito pela mesma Universidade. Mestrando em administração pública pela LSE (Reino Unido). Integrante do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde.
Patricia Valim é doutora em história econômica (FFCLCH/USP), professora associada da UFBA e membra do Comitê Executivo da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas.
Eduarda Francelino é mestranda em educação (PPGEduc/UNIR) e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Ativista Audre Lorde.