Artigo – A história se repete
Por Hubert Alquéres
Inescapável comparar os anos 1930 descritos na série ”Hitler: começo, meio e fim”, disponível no Netflix, com os dias atuais. Depois de quase cem anos da ascensão de Hitler ao poder, o mundo vive uma nova recessão democrática, impulsionada pelos mesmos elementos do passado: ultranacionalismo, xenofobia, racismo, intolerância, ódio e lideranças ultra populistas e salvacionistas. A Europa, berço do iluminismo, se vê sufocada pelo avanço da extrema-direita, como aconteceu na eleição desse final de semana para o parlamento europeu.
E os Estados Unidos, cujos pais fundadores consignaram os valores da democracia liberal, podem ser os próximos, se Donald Trump confirmar seu favoritismo para vencer a eleição presidencial daqui a cinco meses. Justamente o país que, liderado por Franklin Roosevelt, foi fundamental para deter o avanço das forças das trevas e para a costura de uma ampla aliança que derrotaria o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Se aquela época os EUA foram parte importante da solução, agora são parte do problema.
Não se deve subestimar o avanço da onda direitista no velho continente ainda que o parlamento europeu continue com uma maioria formada por conservadores, liberais, socialdemocratas e verdes. O fato mais relevante e preocupante do resultado eleitoral é o crescimento da ultradireita, sobretudo no coração da União Europeia: a França e a Alemanha.
No primeiro, Macron foi atropelado pela vitória do partido Reunião Nacional, de Marine Le Pen, com o dobro dos votos da aliança do atual presidente da França. A derrota, de fato, foi acachapante. A ponto de Macron dissolver o parlamento e convocar novas eleições legislativas. Corre o risco de repetir Jacques Chirac. Em 1997 o então presidente francês dissolveu o parlamento e convocou novas eleições, nas quais foi derrotado pela oposição.
Na França, os holofotes voltam-se agora para um novo fenômeno eleitoral, Jordan Bardella, de 28 anos, carismático e chamado de “Monsieur Selfie”. Ele é a nova vitrine da extrema-direita francesa e seu candidato a primeiro-ministro, na hipótese do Reagrupamento Nacional sair vitorioso na eleição convocada por Macron.
Na Alemanha a AfD – partido de extrema-direita com forte discurso de simpatia ao nazismo a ponto de considerar que nem todos os membros das SS de Hitler eram criminosos, ficou em segundo lugar na eleição europeia.
Na Itália, o partido Fratelli d’Itália, da ultradireitista e primeira-ministra Giorgia Meloni, ficou em primeiro lugar, posição que a extrema direita também conquistou na Áustria. Some-se a isso a vitória da ultradireita de Orban na Hungria e o segundo lugar conquistado na Holanda.
É como se o espírito dos anos 30 tivesse sido incorporado pelos tempos atuais. Naquele tempo se projetaram como líderes de uma direita autoritária Hitler, Mussolini, Salazar e Franco, todos eles inimigos da democracia liberal. Hoje, guardadas as devidas proporções, temos Trump, Orban, Giorgia Meloni, Marine Le Pen, Milei e Bolsonaro.
Os populistas autoritários de hoje não são os primeiros a chegar ao poder por mecanismos democráticos e depois desconstruir a democracia por dentro. Hitler se erigiu ao poder legalmente, e depois desfigurou e destruiu a democracia alemã.
Revisitar aquele período assistindo a série do Netflix nos leva a identificar pontos em comum entre dois momentos históricos. Hitler explorava o sentimento nostálgico de um passado idealizado pelos alemães, elegendo inimigos imaginários, internos e externos. Sua mensagem de esperança era o resgate de um passado glorioso, algo que Donald Trump promete hoje, com seu slogan “Fazer a América ser grande novamente”.
A idealização de um passado e de uma nação corrompida em seus valores pela ação de um inimigo que se infiltra em sua sociedade é uma das ideias-força da ultradireita, desde sempre. Hitler via nos judeus e no comunismo os elementos que corroíam o tecido e a alma alemã e enfraqueciam o sangue da “raça ariana”. Hoje a ultradireita cresce na Europa alimentando os sentimentos antiimigrantes e antiislamismo.
Muda o país, mudam os atores, mas a concepção é a mesma. Nos Estados Unidos o trumpismo dissemina a visão segundo a qual o sangue americano está se enfraquecendo pela miscigenação com imigrantes. A ideia de uma “raça pura” galvaniza levas de fanáticos. Mexicanos e outros imigrantes latino-americanos são vistos como os inimigos internos que corrompem a alma americana e impedem os Estados Unidos de voltar a ser grande novamente.
Uma das primeiras consequências do crescimento da extrema-direita no parlamento europeu será a pressão para o endurecimento das regras da imigração, assim como Biden já endureceu nos Estados Unidos, cedendo à pressão do trumpismo. Da mesma maneira, poderá haver retrocessos no velho continente em medidas de combate à crise climática.
Chama a atenção o grau de aderência do discurso ultranacionalista e ultrapopulista na juventude, assim como no passado. A extrema-direita penetrou em nichos eleitorais historicamente redutos da esquerda. A classe operária europeia, desde o Brexit, tem votado em candidatos com esse perfil. O mesmo aconteceu nos cinco estados que compunham a antiga Alemanha Oriental, onde a AfD foi a grande vitoriosa.
Compondo este quadro, a guerra da Ucrânia escancarou uma bipolaridade com o mundo dividido entre o bloco ocidental, constituído pelos Estados Unidos e as democracias europeias, e o bloco eurasiano, constituído pelas ditaduras da China e da Rússia. Vladimir Putin e Xi Jinping comandam estas nações que desempenharam um papel importante nos anos 30 e hoje são bem mais determinantes na geopolítica mundial.
No prefácio dos 18 Brumários, Engels disse a famosa frase: ”a história se repete primeiro como uma tragédia e depois como uma farsa”. Para ele, primeiro acontecia o fato histórico de consequências graves para a sociedade e a humanidade. Mas depois se repetia com resultados menos significativos ou até mesmo ridículos, quando não picarescos
A frase não se aplica ao momento atual. A história está se repetindo e como tragédia. A eleição americana dirá o tamanho da tragédia contemporânea.
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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação