A escola que não reprova
Uma importante publicação dirigida a educadores, manifestamente querendo fazer humor, estampou o seguinte diálogo:
– “Meu filho não estudou nada e mesmo assim passou de ano”.
– “Pois é. E ainda tem gente dizendo que Papai Noel não existe”.
Este diálogo, presumivelmente entre dois pais de alunos, revela, a meu ver, uma visão completamente distorcida da missão da escola.
A fala do primeiro pai é simplesmente lamentável, revelando completa alienação em relação a sua condição de principal responsável pelo destino da criança. Limita-se a registrar, como se nada tivesse com isso, que o filho deixou, durante um ano inteiro, de cumprir suas obrigações de estudante. E ele, onde estava, enquanto o filho folgava? Procurou incentivá-lo? Foi trocar idéias com os professores do menino, em busca de orientação? Ao que tudo indica, simplesmente deixou o barco correr e agora apenas comenta com displicência: “meu filho não estudou nada”.
Igualmente despropositado é o comentário do outro pai, insinuando que o menino recebeu um prêmio imerecido. Nesta perspectiva, a missão da escola não é a de ensinar, mas simplesmente a de premiar os bons e de castigar os maus alunos. Ou seja, o pai e a escola estão isentos de qualquer responsabilidade – tudo aconteceu porque o aluno não estudou. Será que a escola ensinou? Vale ainda uma vez lembrar a observação de Dewey: “Dizer que se vendeu, quando ninguém comprou, é tão exato como declarar que se ensinou quando ninguém aprendeu”. Convenhamos, a escola não pode isentar-se de culpa, se permite que um estudante permaneça ocioso durante as atividades escolares, ou deixe de cumprir as tarefas programadas. Se alguma coisa não vai bem, é forçoso buscar os meios para corrigir os desvios, inclusive com a ajuda da família, que não pode eximir-se dessa responsabilidade. Se o estudante está em atraso em relação a sua turma, cumpre promover as atividades de recuperação, que certamente estão incluídas no projeto pedagógico da escola. O que não é certo é tolerar a inatividade do estudante, para no fim do processo lamentar que ele passe de ano sem ter nada aprendido.
É preciso acabar com esse equívoco de entender que a escola perde qualidade quando não reprova. A escola somente perde qualidade quando não ensina.
Pensando fazer humor, o que a publicação na verdade fez foi revelar uma visão inadequada do papel da escola em uma sociedade democrática, evidenciando-se, pelo menos, três falhas: a do pai do aluno, em relação ao estudo do filho, a do outro pai, em relação à missão da escola, e a da administração, no que se refere ao implemento de inovações.
A falha dos pais
Anísio Teixeira caracterizou certa vez a escola brasileira como um “clube fechado”, querendo com isto dizer que a equipe escolar, no seu tempo, preferia manter à distância os familiares dos estudantes. A presença dos pais de alunos na escola era sempre vista com reservas, por poder interferir no trabalho dos professores. Por sua vez, os pais, em grande maioria, não revelavam interesse em comparecer às atividades programadas pela escola, fazendo-o apenas para reclamações ou para tentativas de salvar o ano escolar do filho, quando era o caso. Durante muito tempo, pois, vigorou uma barreira, invisível, mas efetiva, separando professores e pais.
Evidentemente essa barreira ainda existe, mas está atenuada, por uma lenta, mas promissora, transformação cultural, que se reflete inclusive na legislação. A atual lei de diretrizes e bases da educação nacional estabelece entre as incumbências da escola a de “articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola” e indica para os professores a responsabilidade de colaborar para essa integração. A lei estabelece ainda a participação da comunidade local nos conselhos escolares ou equivalentes. Tudo isto reflete a intenção de promover a quebra da barreira que separava a escola das famílias.
Uma coisa, porém, é a intenção expressa na lei e outra a realidade. Certamente ainda não são muitos os pais que realmente têm disposição e interesse de participar dos conselhos escolares e demais atividades da escola.
O quê as escolas querem dos pais?
Atualmente já não é tão rígida a separação denunciada por Anísio Teixeira e as escolas já admitem uma convivência mais natural com os pais de alunos. Freqüentemente se tem notícia de casos de participação efetiva da comunidade na vida escola, com resultados animadores. Um bom exemplo é o programa “Escola da Família”, em andamento nos estabelecimentos estaduais de ensino. Certamente a escola tem muito a ganhar com a colaboração dos pais, que pode ser efetivada, por exemplo, com o trabalho voluntário. Essa aproximação da família com a escola favorece o trabalho comum em favor do desenvolvimento do aluno.
O quê os pais querem da escola?
A julgar pela fala do pai na anedota, a família em muitos casos ainda se contenta com o ato formal de o filho ser aprovado no final de cada ano letivo e receber o certificado ou diploma no final do curso. “Meu filho não estudou nada e mesmo assim passou de ano”. Não estudou? E daí, se passou de ano.
Isto é a sobrevivência do formalismo que, em muitos casos, ainda prevalece em nossa cultura – a valorização do símbolo em detrimento da efetiva realização, a valorização do diploma em detrimento da competência. Nesta situação, os pais empenham-se em examinar os boletins escolares, para ver o que está ali registrado. Se as notas são boas, dão-se por satisfeitos, sem lhes ocorrer que essas notas são apenas um indício, mas não uma garantia firme de que o filho tenha efetivamente aprendido o essencial. O menino pode ter apenas apresentado nas provas aquilo que Whitehead chamava de “rote learning”, repetição mecânica de noções aprendidas em aula. Isto é suficiente? Ele pode ter respondido acertadamente a uma série de questões sobre literatura. E daí? Valeu a pena o tempo que o aluno dedicou ao estudo do assunto? Que é importante nessa aprendizagem? Certamente ele aprendeu o suficiente para sair-se bem no teste e ganhar uma nota alta, mas isto será absolutamente irrelevante, se não tomou gosto pela leitura de bons autores, se não adquiriu a capacidade de apreciar a beleza de páginas bem escritas, se não se sentiu estimulado a também tentar produzir textos de qualidade. O mesmo vale para todas as outras disciplinas.
A falha da escola
De todas as instituições vigentes, a escola é seguramente uma das mais resistentes à mudança. Em muitos casos a escola pouco difere daquela existente no passado, quer quanto às instalações físicas – mesa do professor, quadro negro, fileiras de carteiras – , quer quanto aos aspectos imateriais – programação, metodologia, forma de avaliação. Que outra instituição pode apresentar tão alto grau de imutabilidade?
Tomemos o caso da avaliação da aprendizagem. Por muito que se tenha discutido e estudado a questão, a verdade é que, com muita freqüência, continuamos a praticar a avaliação de maneira muito parecida, senão idêntica, a tudo o que se fazia no passado. Por muito tempo vigorou, quase que como forma única de avaliação, o uso de provas dissertativas, oferecendo-se, como alternativa, a prova oral. Causou furor, durante algum tempo, o aparecimento das chamadas provas objetivas, ou testes, que viriam libertar a escola da subjetividade das provas dissertativas. Os defensores das provas objetivas demonstravam, com fortes argumentos, as falácias das provas tradicionais, dissertativas: professores diferentes avaliavam diferentemente as mesmas provas; o mesmo professor avaliava diferentemente as mesmas provas, em momentos diferentes; de tal forma, que não havia consistência nos resultados obtidos. As provas objetivas, estas, sim, garantiam dados confiáveis, pois davam sempre o mesmo resultado, independentemente do avaliador. O entusiasmo, porém, durou pouco, na medida em que foram aparecendo os defeitos das provas objetivas – prestam-se mais a avaliar o “rote learning”, favorecem o acerto por acaso. O tiro de misericórdia foi dado quando as provas objetivas passaram a ser conhecidas simplesmente comoprovas das cruzinhas. A forma de avaliação da aprendizagem, hoje, pouco difere da que vem sendo praticada ao longo dos últimos cem anos.
Da mesma forma, a escola, hoje, não consegue libertar-se do modelo vigente durante uma época em que a educação era privilégio de poucos, quando a escola podia, tranqüilamente, dar-se ao luxo de ser seletiva. Nesse modelo, todo o peso da aprendizagem recaia sobre os ombros dos alunos – quem não tivesse fôlego para acompanhar o ritmo imposto pela escola era simplesmente posto de lado, excluído por um sistema impiedoso de reprovação.
Mas o que é a reprovação? Trata-se de um mecanismo artificial, estranho ao ideal de educação, introduzido nas escolas no momento em que foi inventado o regime seriado. Antes disso, não havia como falar em reprovação, porque toda a atenção estava voltada para o desenvolvimento do educando. Foi a introdução do regime seriado, com a criação de blocos solidários de conhecimentos a serem adquiridos série por série, que se tornou necessária a repetição de período por aqueles que eventualmente não tivessem conseguido dominar o conteúdo programado. Foi, portanto, um subproduto indesejável do regime seriado. Enquanto a escola era francamente seletiva, não havia problema, pois a reprovação cumpria sua triste missão de excluir os menos capazes. Na medida em que a escola passou a ter a missão de proporcionar educação para todos, a reprovação começou a incomodar. Começaram, então, a aparecer na legislação mecanismos para atenuar os rigores do regime seriado: exames de segunda-época, matrícula por disciplina, matrícula com dependência, recuperação. Atenta às exigências dos novos tempos, a atual lei de diretrizes e bases foi mais longe e admitiu outras formas de organização escolar, além do regime seriado. Ao tratar da educação básica, diz a LDB, no artigo 23: “A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar”.
Por sua vez, o Conselho Estadual de Educação de São Paulo baixou a Deliberação CEE nº 9/97, instituindo no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo o regime de progressão continuada no ensino fundamental e permitindo sua organização em um ou mais ciclos. Parece estar havendo desatenção às importantíssimas determinações da deliberação, para que o novo regime alcance realmente bons resultados. Entre estas determinações estão:
– avaliações da aprendizagem ao longo do processo, conduzindo a uma avaliação contínua e cumulativa da aprendizagem do aluno, de modo a permitir a apreciação de seu desempenho em todo o ciclo;
– atividades de reforço e de recuperação paralelas e contínuas ao longo do processo e, se necessárias, ao final de ciclo ou nível;
– meios alternativos de adaptação, de reforço, de reclassificação, de avanço, de reconhecimento, de aproveitamento e de aceleração de estudos;
– contínua melhoria do ensino;
– articulação com as famílias no acompanhamento do aluno ao longo do processo, fornecendo-lhes informações sistemáticas sobre freqüência e aproveitamento escolar.
Não se trata, pois, de adotar o novo regime e continuar atuando nos moldes tradicionais, mas – e isto é fundamental – há necessidade de fazer acompanhar a adoção do regime de providências indispensáveis a seu êxito. É preciso que haja um esforço sério no sentido do cumprimento da medidas propostas pelo CEE. Sem isso, o desastre pode tornar-se inevitável.
Estamos vivendo uma nova era, em que o regime seriado deixou de ser forma obrigatória de organização escolar. Existe o senso comum de que “cessada a causa, cessam os efeitos”. Contudo, isto não está acontecendo, com a extinção do regime seriado no sistema estadual de ensino, pois continua vivo e atuante, em muitas mentes, o espírito de reprovação, subproduto abominável daquele regime.
Qual a missão da escola? Certamente não é a de aprovar e reprovar alunos, coisa que nunca existiu, mas que poderia ser tolerada, ainda que erroneamente, há cinqüenta ou sessenta anos. O educador, hoje, tem a obrigação de ter uma visão mais nobre e abrangente de seu trabalho, vendo no progresso do aluno a única meta aceitável. Se o aluno não está alcançando o rendimento mínimo desejado, antes de pensar em desfazer-se dele ou em condená-lo a uma volta no processo de aprendizagem, a escola tem a obrigação de procurar reorganizar-se para restabelecer o equilíbrio perdido. É claro que isto é difícil. As novas exigências estão colocando sobre a escola um peso adicional, que obriga a grandes sacrifícios. Estamos prontos a admitir isto. O que não podemos aceitar é que a única reação às novas responsabilidades atribuídas à escola seja esse injustificável clamor pela volta da reprovação.
A falha da administração
Ultimamente os jornais têm noticiado, com compreensível estardalhaço, que existem casos de alunos que chegam analfabetos a estágios avançados do ensino fundamental. A denúncia é grave e deveria merecer, por parte das autoridades educacionais, prontas providências para apuração dos fatos. Trata-se de casos isolados, flagrados por repórteres sempre prontos à divulgação de notícias de impacto, ou o problema tem proporções mais amplas, reveladoras de uma distorção séria no sistema de ensino? Impõe-se uma investigação criteriosa da realidade, para a adoção de medidas cabíveis. Se os casos encontrados forem poucos e localizados, a ação pode restringir-se às escolas envolvidas. Se, porém, houver uma falha geral no sistema, as providências a serem adotadas serão muito mais sérias e de mais longo alcance.
Ao que tudo indica, a falha maior da administração foi ter adotado o chamado regime de progressão continuada, sem uma preparação adequada do magistério para as mudanças introduzidas.
O que pensam os professores a respeito? É possível que muitos ainda se mantenham fiéis à tradição da escola seletiva e, nesse caso, não aceitam de bom grado as modificações, demonstrando má vontade, resistência e até mesmo indignação com os novos rumos adotados. Implantado nessas condições, o regime somente poderia levar ao malogro. Após tantas décadas de regime seriado, com todas as implicações, inclusive em relação à necessidade de repetência, a passagem para a organização do ensino em ciclos teria obrigatoriamente que ser precedida de um período de preparação do magistério, mediante cursos, palestras, debates e outros meios, que esclarecessem, convencessem e motivassem os professores para nova forma de conduzir os trabalhos escolares. Parece que isto não foi feito com a intensidade necessária e pode estar aí a maior falha da administração.
Conclusão
Em uma sociedade democrática, em que a educação é direito de todos os cidadãos, o ensino fundamental obrigatório tem que ser oferecido a todos, independentemente da capacidade de aprendizagem. Haverá sempre alguns alunos com maior dificuldade e estes precisam receber atenção especial para que possam acompanhar o ritmo dos demais. No oferecimento de condições de aprendizagem compatíveis com as necessidades dos alunos, não faz sentido manter a prática da repetência, recurso utilizado no passado, em que a escola podia dar-se ao luxo de ser seletiva. A escola atual tem a obrigação de ser criativa, estimuladora, atenta às dificuldades especiais de alguns alunos.
Essa nova escola não surge por milagre. Ao contrário, se nada for feito, a escola, que é uma instituição notoriamente resistente à mudança, tenderá a manter os padrões vigentes no passado. É tarefa irrecusável da administração do sistema promover uma verdadeira revolução cultural, tomando providências decisivas para mudar a mentalidade ainda vigente. Entre essas providênciasestão a doutrinação, o convencimento, o engajamento dos docentes, mas também, necessariamente, a busca de melhores condições para o magistério.