Em defesa da Universidade
Manifesto da Academia Paulista de Educação1
Está na ordem do dia a reforma da Universidade, diante de projeto apresentado pelo Ministério da Educação, documento que vem provocando veementes e contraditórias reações.
A origem da controvérsia pode ser localizada no próprio conceito de Universidade adotado pelos participantes do debate. Qual a natureza da Universidade, quais são seus objetivos, qual sua função social? Conforme a resposta a estas questões será a posição adotada pelos contendores.
A Universidade como instituição de altos estudos
Historicamente a Universidade tem sido vista como uma instituição de altos estudos, voltada prioritariamente para a criação e a difusão do conhecimento, mediante a pesquisa e o ensino. Deste ponto de vista, para a realização de seus elevados objetivos, a Universidade precisa selecionar seus membros, docentes e alunos, entre pessoas com o mais alto grau possível de capacidade e erudição. Assim sendo, a Universidade é para os que nela conseguem ingressar por critérios de mérito e esforço.
Este modo de ver tem suas raízes principalmente na tradição européia, em que, conforme notam Dreze e Debelle2, pensadores como Newman (Universidade como instituição de ensino), Jaspers (Universidade como instituição de pesquisa) e também o americano Whitehead (Universidade como simbiose entre pesquisa e ensino) apresentam uma visão “idealista” da Universidade. Em contraposição a essa visão “idealista”, Dreze e Debelle apresentam a visão “funcional’ de Napoleão (Universidade com preocupações sócio-políticas) e da antiga URSS (Universidade com preocupações sócio-econômicas). Ainda que Newman entenda a Universidade como uma instituição de ensino, isto não quer dizer que ele tenha uma visão pragmática de sua missão. Para ele a Universidade é uma “escola de conhecimentos universais”3 deixando de reconhecer a condição de verdadeiro ensino universitário à formação profissional. Diz ele:
Quando digo que o direito ou a medicina não são o fim de um curso universitário, não quero significar que a universidade não deva ensinar o direito ou a medicina. (…) Pretendo apenas que exista uma diferença entre o professor de direito, de medicina, de geologia ou de economia política que ensina na universidade ou fora dela. (…) Na universidade o professor é obrigado a determinar com maior precisão sua posição e a de sua especialidade.4
Assim concebida, a Universidade é um centro de excelência, voltado primordialmente para a pesquisa e para a produção do conhecimento, exigindo pessoal altamente qualificado para a busca de seus objetivos. Isto não exclui a possibilidade de os estudos universitários se voltarem para a procura de soluções de problemas regionais ou locais, o que é até indispensável, desde que se respeite a autonomia da Universidade na condução de suas linhas de pesquisa. Evidentemente a visão extrema do Cardeal Newman merece revisão à vista da evolução da idéia de Universidade que admite, hoje, além da pesquisa pura, também a aplicada, como a praticada em seus institutos de natureza tecnológica, mas ainda assim de acordo com critérios da própria Universidade.
Ensino Superior para todos
É perfeitamente compreensível a preocupação daqueles que, em nome da justiça social, exigem a democratização do Ensino Superior, argumentando que este deve ser oferecido para todos que estejam aptos e desejem freqüentá-lo, especialmente no que tange ao Ensino Superior público, que é mantido com o dinheiro dos impostos pagos por toda a sociedade.
A criação e manutenção de instituições públicas de Ensino Superior constituem atribuição precípua da União. No momento atual, a situação econômica do país parece pouco propícia ao atendimento pleno da demanda por matrículas nas escolas superiores públicas, mas este é um problema a ser equacionado e resolvido principalmente, embora não exclusivamente, pelas autoridades federais.
Contudo, por mais importante que seja a democratização das matrículas no Ensino Superior, não é este o maior desafio para a educação brasileira. Nada supera, na hierarquia dos problemas educacionais do País, a necessidade de universalização da educação básica, acompanhada da melhoria da qualidade do ensino e da valorização do magistério. Só o oferecimento do ensino básico de qualidade para todos os brasileiros garantirá a verdadeira democratização das oportunidades de matrícula no Ensino Superior, sem privilégios de qualquer natureza.
O que releva notar é que a grande procura pelo Ensino Superior se traduz em termos da aspiração por um diploma que dê direito ao exercício de uma profissão.
Cabem aqui algumas observações:
1) – A ampliação de vagas precisa ser acompanhada pelo cuidado de manter o padrão de ensino que garanta a formação de bons profissionais. Essa ampliação não pode justificar queda nas exigências de bons docentes e de alunos com um mínimo de preparo para acompanhar as aulas.
2) – A ampliação de vagas precisa ser acompanhada de correspondente aumento das verbas disponíveis.
3) – A ampliação de vagas não deve obrigar as Universidades a sacrificarem seus trabalhos de pesquisa, para poderem atender ao maior número de alunos.
Expansão das matrículas e garantia de qualidade não são necessariamente movimentos antagônicos; ambos podem ocorrer de forma harmoniosa, se forem tomadas as devidas cautelas.
Respeito à Universidade
Os pontos de vista acima expostos são perfeitamente conciliáveis, se atentarmos para o fato de que a Universidade não abrange todo o Ensino Superior. Além disso, o conceito de Universidade, tal como entendido pelos antecedentes históricos, não se coaduna com parte das instituições brasileiras que levam esse nome. Não deveria ser chamada de Universidade uma instituição que não realiza pesquisas originais e enriquecedoras, dando absoluta prioridade ao ensino – especialmente quando oferece ensino pago -, ou que tem por preocupação primeira a obtenção de lucros – como acontece com aquela que dá preferência à contratação de professores menos titulados, porque constituem recurso docente mais barato.
O grande perigo do projeto do MEC é o de colocar no mesmo nível e tratar com iguais critérios instituições que são enormemente diferentes. É de domínio público que existem no Brasil universidades que mantêm um elevado padrão de desempenho e que realizam, além de um ensino eficiente, pesquisas que contribuem para o avanço do conhecimento. É em defesa dessas Universidades que a Academia Paulista de Educação levanta sua voz.
As várias inovações introduzidas no Ensino Superior pelo projeto do MEC precisam ser em parte atenuadas e em parte eliminadas em relação às verdadeiras Universidades. Em nome da autonomia universitária, deve ser reservado a essas Universidades o direito de decidir sobre a aceitação ou não das inovações. Do contrário, correremos o risco de nivelar por baixo, destruindo o que de melhor existe no Ensino Superior brasileiro.
Há pelo menos duas maneiras de destruir a Universidade: uma é pela força, como tentam às vezes fazer os regimes autoritários, outra é a praticada de maneira mais sutil, mas talvez até mais virulenta, pela sua mediocrização, roubando-lhe a alma – que é a busca autônoma do conhecimento. Submeter a Universidade a critérios externos, política ou corporativamente orientados, para atender encomendas, seria amordaçar e asfixiar as atividades de pesquisa, negando-lhes o direito à criatividade e à originalidade.
A Universidade merece respeito.
Vem a propósito fazer referência a artigo de Julian Marias publicado no suplemento Cultura, do jornal O Estado de São Paulo5.
Diz Julian Marias:
Em 1936, no início da Guerra Civil Espanhola, Miguel de Unamuno era reitor vitalício da Universidade de Salamanca. No dia 12 de outubro daquele ano, durante uma sessão pública no campus universitário, o general Millán Astray fez um discurso veemente criticando os adversários do franquismo, sobretudo a ação dos intelectuais. É nesse discurso que o general profere o famoso grito: “Abajo la inteligencia! Viva la muerte!”. Fez-se um silêncio gelado na assembléia. Ninguém ousara até então desafiar os militares e todos aguardavam, com expectativa, a palavra do reitor. Desafiar o general seria o mesmo que desafiar o franquismo. A palavra de Unamuno não se fez esperar. Sua célebre resposta aqui está:
(…)
“Este es el templo de la inteligencia. Y yo soy su sumo sacerdote. Estais profanando su sagrado recinto. Venceréis, porque teneis sobrada fuerza bruta. Pero no convenceréis. Para convencer, hay que persuadir. Y para persuadir necessitarieis algo que os falta: razón y derecho en la lucha. Me parece inútil el pediros que penséis en España.”
Pensemos no Brasil e na preservação de um de seus patrimônios mais valiosos, que é a Universidade.
1 Texto aprovado na reunião de 21/03/05 da Academia Paulista de Educação.
2 DREZE, Jacques et DEBELLE, Jean, Conceptions de l’Université. Paris, “Citoyens” Éditions Universitaires, 1969.
3 NEWMAN, Cardeal John Henry, Origem e progresso das universidades. São Paulo, s.c.e., 1957.
4 NEWMAN, Cardeal John Henry, L’idée d’université. Montreal, Desclé de Brower, 1968.
5 MARIAS, Julian, Por que ler Unamuno, Hoje. O ESTADO DE SÃO PAULO, suplemento dominical Cultura, Ano I, nº 36, 15/02/81, p.1-4.
José Augusto Dias é membro da Academia Paulista de Educação e Presidente dos Conselhos Municipais de Educação de São Paulo e de São José dos Campos
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