Artigo – Eleições nos Estados Unidos
Por Hubert Alquéres.
É de autoria de Lenin a frase “há décadas em que não acontece nada e há semanas que décadas acontecem”. Os Estados Unidos vivem dias assim tal a sucessão de episódios políticos ocorridos nas últimas semanas.
Depois do debate entre os candidatos Joe Biden e Donald Trump, que foi desastroso para Biden pois mostrou suas fragilidades físicas e mentais, o mundo assistiu o atentado a bala contra Trump e a convenção Republicana que o consagrou como candidato republicano mas também revelou uma nova liderança do trumpismo, o candidato a vice-presidente JD. Vance. Nos últimos dias a nova reviravolta aconteceu com a desistência de Joe Biden e o consolidação de Kamala Harris para a vaga de candidata dos Democratas.
Os episódios merecem algumas reflexões.
Distopia americana
O atentado a Donald Trump na Pensilvânia recomenda assistir ao filme “Guerra Civil”, lançado no Brasil em abril e disponível no Prime Vídeo, para saber o risco que os Estados Unidos correm, diante da escalada da violência política e de divisão do país.
O filme, no qual um dos destaques é o ator brasileiro Wagner Moura, se desenvolve em uma sociedade americana futura e distópica, em meio a uma polarização política extrema. Sem que exista um sistema de pesos e contrapesos com presença de instituições fortes e de estado, o conflito armado se instala para destituir um presidente xenófobo e de extrema-direita, ao final assassinado, responsável pela erosão da democracia americana.
Mesmo com o atentado a Trump, os Estados Unidos ainda estão muito longe disto. É possível evitar o amargeddon de sua democracia. Mas para tal se impõe que as instituições funcionem e que se tente baixar a temperatura da disputa política, com os americanos voltando a resolver seus conflitos políticos pelas urnas e não pelas balas. Esse foi o apelo do presidente Joe Biden, mas há sérias dúvidas se seu sábio conselho será ouvido por seus compatriotas e levará ao refluxo da escalada da violência.
Se não houver uma conjunção de esforços para trazer a disputa política para patamares civilizados, a realidade pode imitar a ficção de “Guerra Civil”, em um futuro não muito distante. Esse vírus se instalou na política do país desde a disputa eleitoral de 2020, quando o ex-presidente não aceitou sua derrota para Biden e pela primeira vez na história americana o Capitólio foi invadido por uma horda de fanáticos, os quais Trump chamou de “patriotas!”.
Não se pode banalizar o atentado do último domingo, tratando-o como normal em um país no qual quatro presidentes foram assassinados – Abraham Lincoln, James Abram Garfield, William McKinley e John Kennedy. Sim, os Estados Unidos têm um histórico de violência política. Ronald Reagan, quando presidente, também foi vítima de um atentado, mas sobreviveu aos tiros, sem falar nos assassinatos de Robert Kenedy e Martin Luther King e nos atentados frustrados a Bill Clinton e George Bush.
A importância de instituições fortes
Mas há uma diferença fundamental para os tempos atuais. Por mais traumáticos que tenham sido tais episódios, as instituições democráticas americanas não estiveram em xeque e a coesão dos americanos em torno de objetivos e propósitos comuns foi mais forte e sobreviveu às intempéries. Graças a ela, a democracia americana seguiu em frente e o país enfrentou grandes tempestades, como a Segunda Guerra Mundial, para sair delas mais forte e resiliente.
Já o atentado a Donald Trump aconteceu em uma América distópica, nas quais as instituições da principal democracia do mundo passa por um processo de corrosão. Desde a Guerra da Secessão, o risco da divisão do país nunca foi tão grande. A coesão americana em torno de uma comunhão de destino deu lugar sentimentos de medo, insegurança, ódio e xenofobia.
Ao tempo em que idealiza um passado, parte ponderável dos americanos sente-se ameaçada pela imigração desordenada, pela concorrência da China e, pasmem, pelo fantasma do comunismo! Enxergam uma conspiração interna e mundial contra o “American Way Life” e seus valores.
Donald Trump capitalizou e potencializou esses sentimentos, adicionando a promessa de fazer a América a voltar a ser grande, apresentando-se como o Messias que veio ao mundo para salvar os EUA. Não hesita em tentar implodir a democracia americana, como o fez no 6 de janeiro de 2021. Nunca a democracia do país foi tão agredida como na tentativa do assalto ao Capitólio.
Quando indagado se respeitará o resultado das urnas na eleição presidencial de 5 de novembro deste ano, o ex-presidente dá a mesma resposta de 2020: “se a eleição for limpa, sim”. Não há, da parte dele, o compromisso claro e insofismável de se submeter à vontade dos americanos manifestada nas urnas, seja ela qual for.
Em condições normais de temperatura e pressão lideranças populistas e messiânicas já desempenham papel negativo para o bom funcionamento do ordenamento democrático. Em situações de crise e de esgarçamento da coesão nacional são capazes de destruir o Estado de Direito Democrático. Donald Trump hoje corporifica esse risco.
O Trump pós atentado disputará corações e mentes dos americanos vestido com o manto de mártir e, ao mesmo tempo, de herói. Assim como Bolsonaro, em 2018 do atentado do qual foi vítima, o candidato dos republicanos fará de tudo para tirar dividendos políticos do episódio da Pensilvânia para consolidar seu favoritismo. Usará à exaustão. A seu favor a imagem seu rosto ensanguentado, com punho cerrado e levantado, tendo ao fundo a bandeira dos Estados Unidos tremulando.
Trump não é a solução. É o problema. Não esperem dele uma postura de estadista, de ponderação e moderação. Está no seu DNA a incitação à divisão. Pode até modelar seu discurso na convenção dos Republicanos, mas isto terá fôlego curto.
Numa América dividida e com sua democracia sob ataque, o atentado do fim de semana alimenta teorias conspiratórias de um lado e de outro. Não há sinalização concreta de que as lições do episódio serão devidamente assimiladas, com os americanos voltando a se unir em torno de um mesmo destino e propósito.
A América que vai às urnas daqui a três meses necessitaria de uma alternativa agregadora e não conflitiva, capaz de tornar menor as crises e levar os Estados Unidos a voltar a liderar o mundo, pelo exemplo. Biden tem essas qualidades, mas suas condições físicas e mentais o obrigaram a desistir na reeleição pois foram um obstáculo intransponível para ser competitivo diante de um adversário disposto a golpes abaixo da cintura, sem pruridos e sem compromisso com os valores civilizatórios.
O sonho americano de gerações e gerações não pode ser substituído por uma sociedade distópica. Espera-se que as instituições como o Congresso Americano, a Suprema Corte e até mesmo as forças armadas, que sempre tiveram postura democrática, continuem a atuar para que o país se mantenha firme.
Mas é no 5 de novembro que os Estados Unidos efetivamente dirão se voltarão a ser a democracia mais admirada do mundo ou se pretendem mergulhar, por quatro anos, na escuridão da intolerância e do ódio.
JD Vance, uma nova liderança no campo Republicano
E o que ontem era novo, hoje é antigo. Dez dias depois do atentado a Donald Trump, não houve a esperada revoada de eleitores na direção de sua candidatura. E sua zona de conforto foi abalada pela renúncia da candidatura de Joe Biden e sua substituição por um novo fenômeno político: Kamala Harris. Trump imaginava se eleger sem suar a camisa, apenas explorando a imagem de mártir e herói. Agora vai ter que arregaçar as mangas.
Entrou em campo sua excelência o fato, para lembrar a famosa frase de Ulysses Guimarães. A estratégia trumpista estava montada para enfrentar um candidato em condições físicas e mentais debilitadas. Estava na confortável situação de ser, praticamente, o único corredor na pista eleitoral. Já pensando no futuro do trumpismo, escolheu um candidato a vice-presidente jovem, desde já apontado como seu herdeiro político.
Ao seu companheiro de chapa, JD. Vance, caberia dar continuidade, após o novo mandato de Trump, ao Make América Great Again, movimento que potencializa o sentimento de camadas de trabalhadores brancos do “cinturão de ferrugem” americano, cujas indústrias perderam competitividade com a globalização e o advento da Quarta Revolução Industrial.
A dobradinha Trump-Vance é a personificação de uma visão de mundo isolacionista e protecionista do ponto de vista econômico. É anti-establishment, anti-imigrante, anti-elite e supremacista. Nutre ressentimentos com as “classes instruídas”, a quem acusa de doutrinar seus filhos nas escolas.
David Books foi cirúrgico ao apontar que o trumpismo se apropriou do conceito de luta de classes do marxismo, ao instigar o conflito entre as “elites” e o trabalhador afetado pela globalização. Essa classe operária guinou para a ultra direita em todo o mundo ocidental, turbinando sua ascensão em diversos países.
Por dois anos, Donald Trump construiu uma narrativa etarista, da qual o principal alvo era Joe Biden. Essa estratégia foi anabolizada pelo papel do acaso na história, o atentado a Trump, na Pensilvânia. Com o episódio, o candidato republicano vestiu o manto de enviado de Deus para salvar e fazer a América.
Kamala candidata
O fator Kamala desorganizou a disputa presidencial dos Estados Unidos. Cai por terra a narrativa etarista. Ou melhor, o feitiço virou contra o feiticeiro, pois Trump, se eleito, será o presidente dos Estados Unidos mais velho ao completar o mandato. Para um candidato acostumado a bater, vai ter de aprender a apanhar. Kamala vem com tudo para cima dele.
No seu primeiro comício eleitoral a nova candidata dos democratas foi na jugular do seu adversário: “enfrentei criminosos de todos os tipos: predadores que abusaram de mulheres, fraudadores que enganaram consumidores, trapaceiros que quebraram regras para seu benefício. Então, ouçam-me quando digo: eu conheço o tipo Donald Trump”. Kamala Harris foi Procuradora-Geral do Estado da Califórnia.
A maré virou para os democratas. Até o último domingo, havia uma agonia sem fim com a candidatura Biden enfrentando seu inferno astral. A cada momento surgiam novos apelos de lideranças expressivas de seu partido para desistir de ser candidato. O clima era de velório. Já Donald Trump desfilava como se já estivesse eleito.
As primeiras 24 horas da candidatura Kamala operaram o milagre de unir seu partido e injetar ânimo nas fileiras democratas. Mais da metade dos delegados da convenção do seu partido, marcada para agosto, já apoiam sua candidatura. Conta ainda com o apoio dos 23 governadores, de 41 dos 47 senadores e de 181 dos 214 deputados de seu partido. Números que só aumentam.
A safra de boas notícias não param aí. Nesta 3ª feira a Reuters divulgou a primeira pesquisa com Kamala à frente do seu oponente, por dois pontos. Em apenas um dia, sua campanha arrecadou 81 milhões de dólares, um recorde, por meio de 880 mil contribuintes. Também nesta 3ª feira, as doações já beiraram US$ 100 milhões. O que mais importa não é a cifra espetacular, e sim o fato de 60% vir de eleitores de primeira doação. Ou seja, Kamala atraiu quem estava longe da disputa. Isso indica que seu nome empolgou a base do partido e ampliou para além dos seus limites.
Sem tempo a perder
Trump ainda é o favorito, mas o cenário mudou. Sua estratégia, de fazer da disputa presidencial um plebiscito sobre o governo Biden, começa a fazer água. O mais provável é que a polarização se dê entre dois projetos para o país, um baseado na idealização de um passado e expresso no slogan “Make América Great Again”, e outro apontando para o futuro. Trazer o embate entre esses dois campos é a estratégia que a campanha de Kamala Harris começa a esboçar.
Não se pode ignorar a existência de uma base de massas do trumpismo. É um fenômeno que veio para ficar e alterou o ethos do Partido Republicano. Deixou de ser um partido conservador, moderado e democrático, para ser a expressão política de uma direita disruptiva, de valores antidemocráticos e intolerantes. O reaganismo que desde os anos 80 formavam o modo de ser e de agir dos republicanos deu lugar a uma nova ideologia que, no limite, põe em xeque os alicerces da principal democracia do mundo.
Biden agora se recolhe para o fundo do palco, mas em algum momento a história lhe fará justiça. Não só pela sua grandeza de abrir mão da candidatura para o bem de seu país e de seu partido, como registrou na carta de renúncia. Mas por ter realizado um dos melhores governos dos últimos 60 anos, em meio a epidemia da Covid e de duas guerras que afetaram o mundo.
Com relação ao Brasil, um ano antes das eleições de 2022, o governo Biden pressionou políticos e militares para respeitarem o resultado da eleição. E, logo após a derrota de Bolsonaro, Biden declarou que seu governo não apoiaria nenhuma incursão golpista ou qualquer retrocesso democrático em nosso país.
A melhor homenagem à sua personalidade veio da revista The Economist que, mesmo tendo defendido de forma aguerrida a sua renúncia como candidato à reeleição, escreveu em editorial: “a carta de despedida do presidente falou de suas próprias conquistas, e elas são muitas, entre elas a política climática, uma economia forte e seu apoio à Ucrânia. Seu período no cargo é digno de ser lembrado”.
E é a própria Economist que conclui: “O tempo é curto. Biden deu aos democratas uma segunda chance de vencer uma disputa que parecia fora de seu alcance. Eles não devem desperdiçá-la.”
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Hubert Alquéres é presidente da Academia Paulista de Educação.