Artigo – Ensino Médio: Reforma da Reforma
O Acadêmicos Cordão, Palma e Nacim e o professor José Carlos Mendes Manzano assinam artigo com reflexões sobre o Ensino Médio brasileiro e observações relativas às finalidades e conteúdos desta etapa do ensino.
por Francisco Aparecido Cordão, João Cardoso Palma Filho, José Carlos Mendes Manzano e Nacim Walter Chieco
Introdução
O ensino médio brasileiro encontra-se em situação insólita e decisiva. A maioria das Unidades da Federação implantou currículos diferenciados de ensino médio, de acordo com a realidade de cada sistema de ensino. A consulta pública realizada pelo MEC aponta para uma outra direção de organização curricular do ensino médio, com redução da oferta dos itinerários formativos.
Em 2017, por meio de Lei federal, foram estabelecidas as regras do novo ensino médio (NEM). Entre as mudanças introduzidas, destacam-se a ampliação da carga horária de 2.400 para 3.000 horas e a criação de cinco itinerários formativos. Da carga horária total, 60%, ou seja 1.800 horas, são destinadas à formação comum básica e 40%, 1.200 horas na fase final, completam a etapa com itinerário de livre escolha de cada aluno. A implantação esbarrou em inúmeros obstáculos e dificuldades, com honrosas exceções. Falta de condições materiais e tecnológicas, despreparo dos professores e demais profissionais do ensino, oferta parcial e fragmentada dos itinerários. Para culminar, muita insatisfação dos alunos e famílias com a redução de aulas e de conhecimentos requeridos para o ingresso no ensino superior, aspiração de grande parte da sociedade quanto à qualidade e equidade da educação.
Diante desse quadro, o MEC determinou, no início deste ano, uma avaliação por meio de consulta aos diretamente afetados: alunos, professores, gestores, famílias e comunidades. Em função dos dados dessa consulta, o MEC anuncia a proposição de projeto de lei em setembro de 2023. Duas relevantes mudanças estariam sendo cogitadas: 80%, ou seja 2.400 horas, seriam reservadas para a formação comum básica e 20%, 600 horas, ficariam para escolha dos alunos entre dois percursos de aprofundamento, linguagem e suas tecnologias e ciências humanas e sociais aplicadas (história, geografia, sociologia e filosofia) e ciências da natureza e matemática (física, química e biologia) ou uma formação profissional ou técnica. Simplificação sensata e condizente com as demandas e
com as condições operacionais das redes e escolas. Trata-se, pois, de reforma da reforma, aproveitadas as boas práticas e os bons resultados obtidos.
A razão primordial de tais reformas, segundo incontestáveis resultados de avaliações nacionais e internacionais, é a persistente má qualidade do nosso ensino médio. Em paráfrase ao renomado escritor modernista Mário de Andrade, podemos dizer que:
Exclusão, desigualdade, precariedade, fracasso e evasão, os males do ensino médio brasileiro são.
Como estamos em fase de discussão e elaboração de um novo projeto, com base na nossa experiência acumulada de planejamento, docência e gestão de sistemas, escolas e redes públicas e privadas de ensino, apresentamos algumas sugestões e ideias sob os pressupostos de simplificação e eficiência. São propostas preliminares para debate, organizadas em três eixos complementares e interligados, a saber:
- finalidades e currículo do ensino médio;
- formação profissional e técnica no ensino médio;
- bolsa ensino médio.
Finalidades e currículo do ensino médio
O atual ensino médio já foi denominado colegial, secundário e segundo grau. Grandes mestres abordaram a delicada questão da finalidade dessa etapa do ensino. Para Abgar Renault, o ensino secundário deveria ser autotélico, ou seja, ter sentido nele próprio, desvinculando-se de seu estigma de ser apenas preparatório para os processos seletivos de acesso aos cursos superiores. Nessa linha, José Mário P. Azanha afirma que “o grande problema é o atrelamento de todo o ensino médio aos exames vestibulares. Nessas condições o seu objetivo próprio é substituído pelo êxito no vestibular como meta única” (Educação: temas polêmicos. São Paulo, Martins Fontes, 1995, p. 35).
O legislador de 1996 busca superar esse dilema ao dispor no artigo 35 da Lei nº 9.394, de diretrizes e bases da educação nacional:
Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades:
I – a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II – a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III – o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV – a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
Sob a égide das finalidades legalmente preceituadas, a organização curricular do ensino médio precisa levar em conta, entre outros, os seguintes fatores:
- as demandas atuais e futuras dos jovens, da sociedade e do mercado de trabalho;
- as condições operacionais das redes e escolas;
- a formação e disponibilidade de professores e gestores;
- as políticas de desenvolvimento sustentável do país;
- as políticas de preservação ambiental;
- as políticas de combate à desigualdade econômica e social.
Nesse contexto, parece ser muito adequada a intenção de substituir os cinco itinerários pelos dois percursos de aprofundamento e pela formação profissional e técnica. Pertinente também as 3.000 horas de carga horária mínima.
Diante da possibilidade de aprofundamento, a distribuição da carga horária poderia ser mais simples, tanto para a gestão quanto para a vida escolar dos alunos. Assim, sugerimos que dois terços, ou seja 2.000 horas, 66,66% da carga horária mínima, sejam destinados à formação comum básica, com forte predomínio de português e matemática. Nessa fase, o currículo poderia ser integralizado com outros dez componentes curriculares, disciplinas, áreas de conhecimento ou outro nome que se queira adotar: língua estrangeira moderna, história, geografia, física, química, biologia, sociologia, filosofia, artes e educação física.
A desejada e necessária interdisciplinaridade seria promovida pelas escolas e professores, desde a interação em projetos ocasionais até a integração curricular de dois ou mais componentes no planejamento, na prática docente e na avaliação. Devem ter abordagem interdisciplinar temas transversais, tais como: empreendedorismo; preservação ambiental; respeito à democracia, aos direitos humanos, às minorias e aos grupos vulneráveis; segurança no trânsito; combate às drogas, à violência, à discriminação e à intolerância; respeito à escola e aos que nela trabalham; proteção à vida e combate ao crime; construção da paz doméstica e universal; valorização da ciência, da tecnologia e da arte; respeito à soberania nacional e à autodeterminação dos povos e nações etc. Tudo desenvolvido em consonância com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com a proposta pedagógica de cada escola e com a iniciativa e criatividade dos docentes.
Nesse formato, seriam cinco horas diárias, 25 semanais em 40 semanas e 1.000 horas ao ano. Ainda não seria jornada integral, mas caminharia para tal.
As 1.000 horas do terceiro ano teriam a seguinte distribuição: 20%, 200 horas, de parte nuclear da formação comum básica com: português, matemática, língua estrangeira moderna, artes e educação física, mais fundamentos de informática. As 800 horas restantes continuariam com português e matemática e foco, segundo a escolha de cada aluno, em um dos dois percursos de aprofundamento.
Para viabilizar o ensino médio noturno, 20%, isto é 600 horas, correspondente a quatro horas diárias e 20 semanais, poderiam também ser oferecidas a distância, em conformidade com as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
Os cursos de ensino médio passariam, gradativamente, a ter carga horária de 3.600 horas e 1.200 anuais.
Os formandos das áreas de aprofundamento desse ensino médio, organizado e competentemente implementado, estarão preparados para os estudos superiores, para a vida e para o trabalho, de acordo com o disposto no art. 205 da Constituição Federal.
Formação profissional e técnica no ensino médio
Um pouco de história. A reforma da Lei nº 4.024, de 1961, pela Lei nº 5.692, de 1971, que alterou as diretrizes e bases para o ensino de 1° e 2° graus, tornou compulsória a profissionalização no 2° grau. Fracasso total. Não havia essa demanda e tampouco condições de oferta. A compulsoriedade foi revertida em 1982, com a Lei nº 7.044.
Até 1997, grandes instituições e redes ofereciam os cursos de habilitação profissional plena, os denominados HPs, em tempo integral, um turno de educação geral, geralmente de 2.400 horas, e outro turno de formação especial técnica, também em torno de 2.400 horas. Total aproximado: 4.800 horas. Era um exagero, em relação à demanda do mercado e aos recursos despendidos para a realização dos cursos.
Em 2007, o MEC deu início a um trabalho de reestruturação dos títulos, dos perfis profissionais, dos currículos e das cargas horárias dos cursos técnicos. Como sempre acontece nos estudos e discussões de reformas educacionais, o ponto crítico foi o da definição de cargas horárias. Com base em consultas a profissionais do mercado e na experiência de especialistas em educação profissional, chegou-se a um rol de 185 títulos, dos quais 21 eram privativos das Forças Armadas, distribuídos em cargas horárias mínimas de 800, 1.000 e 1.200 horas. Com ajustes e aprimoramentos, esse padrão funciona até hoje. A quarta e última edição do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos entrou em vigor em 2020, com 215 títulos.
A Lei nº 9.394, de 1996, de diretrizes e bases da educação nacional – a segunda LDB – contempla a educação profissional em capítulo próprio, o Capítulo III do Título V. Nas discussões e fundamentação, ficou claro que essa modalidade é complementar à educação básica. Educação profissional de boa qualidade, portanto, tem como pressuposto educação básica igualmente de boa qualidade.
A proposta de manutenção da formação profissional e técnica na parte final do ensino médio é inteiramente adequada e deve ser fortemente expandida, a exemplo de países desenvolvidos. Os cursos técnicos, definidos no Catálogo do MEC, previamente escolhidos pelos alunos, poderiam ser desenvolvidos desde o início do terceiro ano do ensino médio. O ensino médio profissionalizante estaria integralizado com 2.800 horas, no caso de curso técnico de 800 horas, com 3.000 horas, no caso de curso técnico de 1.000 horas, e com 3.200 horas, no caso de curso técnico de 1.200 horas. Nesta última hipótese, a instituição de ensino deve buscar condições para a realização das 200 horas adicionais.
As estratégias de oferta de curso técnico continuariam sendo as seguintes:
- integrado, com matrícula e certificação únicas no mesmo estabelecimento; quando a oferta ocorre em estabelecimentos parceiros e distintos, as matrículas também são distintas e as certificações únicas e conjuntas, assinadas pelas autoridades dos dois estabelecimentos;
- concomitante, com matrículas e certificações distintas, em estabelecimentos distintos;
- subsequente, após a ensino médio concluído, em estabelecimento especializado.
Ficaria mantida a concepção presente na reforma de 2017 de que a profissionalização no ensino médio não se restringe aos cursos técnicos constantes do Catálogo do MEC ou mesmo experimentais. Poderiam ser oferecidos e escolhidos cursos de formação inicial ou qualificação profissional, incluída a aprendizagem profissional, com duração mínima de 200 horas. Neste caso, as instituições de ensino deveriam completar as 3.000 horas com componentes curriculares da formação comum básica.
Bolsa ensino médio
Há, basicamente, duas grandes dificuldades para uma nova reforma do ensino médio no Brasil. Uma delas é a condição em que se encontram as escolas para a oferta do ensino médio com as duas áreas de aprofundamento e a formação profissional e técnica. Para ilustrar essa situação, há casos de convívio, no mesmo prédio em precárias condições, de ensino fundamental municipal do 1° ao 5° ano, ensino fundamental estadual do 6° ao 9° ano e ensino médio estadual. Essa situação precisa ser superada por meio de vigorosa e permanente política de reforma, aprimoramento e ampliação das redes físicas.
Outra dificuldade, causadora do não ingresso e da evasão no ensino médio, consiste na baixa condição socioeconômica de vasto contigente de adolescentes na faixa de 15 a 17 anos de idade. Muitos jovens abandonam a escola ou nem mesmo nela ingressam por dificuldades financeiras, passando a trabalhar para ajudar no orçamento familiar. Os dois eixos anteriormente abordados – finalidades e currículo do ensino médio e formação profissional e técnica – são extremamente importantes para uma política de universalização do ensino médio de boa qualidade. Entendemos, porém, que o êxito de uma nova reforma requer a criação de condições absolutamente necessárias para o ingresso, a permanência e a conclusão do ensino médio na idade certa.
Propomos a criação de bolsa ensino médio, para apoio aos jovens considerados economicamente vulneráveis, de forma a assegurar a frequência à escola, preferencialmente no período diurno. Havendo disponibilidade, após o horário regular dos cursos, as escolas passariam a oferecer atividades extracurriculares para os próprios alunos e para a comunidade.
A bolsa por si só não soluciona todos os problemas do ensino médio. Há outros relevantes fatores em jogo, destacando-se a formação e valorização do magistério e a ampliação e melhoria da base física. Sem a bolsa, porém, não há possibilidade, em hipótese alguma, de que tal solução aconteça.
A bolsa, na linha de outras políticas públicas de combate à desigualdade e de melhoria da qualidade da educação com equidade, constitui requisito mínimo indispensável para a realização do almejado ensino médio de excelência para todos.
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Francisco Aparecido Cordão –Membro da Academia Paulista de Educação e ex-Presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo e da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação
João Cardoso Palma Filho –Membro da Academia Paulista de Educação e ex-Secretário Adjunto da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo
José Carlos Mendes Manzano –Membro do Fórum da Educação Profissional do Estado de São Paulo e ex-Auditor Educacional do Senai de São Paulo
Nacim Walter Chieco –Membro da Academia Paulista de Educação e ex-Presidente dos Conselhos Estadual e Municipal de Educação de São Paulo
Setembro de 2023