Um bate-papo com Padre Vieira
Um bate-papo com Padre Vieira
Vieira é quase unanimidade. A maioria se refere a ele como tendo sido o maior expoente da nossa língua, tanto na arte de falar quanto na arte de escrever. Mesmo os que o colocam em pé de igualdade e até em posição inferior a um seu contemporâneo, o autor de ‘Nova floresta’, Padre Manuel Bernardes, não deixam de reconhecer seus méritos.
O filólogo Silveira Bueno, com quem tive o privilégio de conviver durante seus últimos anos de vida, ao se referir à excelência dos textos produzidos por Rui Barbosa, disse: ninguém escreveu melhor que Rui Barbosa, somente o Padre Vieira, que foi o professor dele.
Há pessoas que valeria a pena ter conhecido. Sem dúvida o Padre Antonio Vieira é uma delas. Imagino como seria instigante trocar dois dedos de conversa com esse gênio da oratória sacra. Com base em sua obra e sua biografia resolvi imaginar essa conversa. As respostas, com algumas “licenças poéticas”, estão em seus próprios escritos.
Polito – Algumas pessoas julgam que o senhor tenha nascido no Brasil, porque fazem essa confusão? Quem foram seus pais?
Vieira – Talvez pelo fato de eu ter vindo ainda menino para o Brasil. Nasci em Lisboa no dia 6 de fevereiro de 1608 e vim para o Brasil quando ainda não havia completado 8 anos. Sou filho de Cristovão Vieira Ravasco e de D. Maria de Azevedo.
P – Como nasceu sua vocação para o sacerdócio?
V – Iniciei meus estudos no colégio da Companhia de Jesus, na Bahia, e encontrei ali campo fértil para despertar minha vocação. Na verdade, descobri de um momento para outro que esta seria a vida que desejava. Em 1623 ouvi uma pregação do Padre Manuel do Carmo, que falava sobre as penas infernais, e fiquei encantado. Naquele momento senti que seria sacerdote.
P – Como foi o início de seus estudos para se tornar sacerdote?
V – Entrei para a Companhia de Jesus aos 15 anos de idade. Não foi fácil porque meus pais foram muito resistentes a essa minha decisão. Tive de fugir para ingressar no Colégio dos Jesuítas, e pude professar ainda jovem, com 17 anos, no dia 6 de maio de 1625.
P – Seu gosto pela oratória também começou cedo?
V – Aos 18 anos atuei como professor de retórica em Olinda. Escolhi como tema das minhas aulas as obras de Sêneca e Ovídio. Confesso, entretanto, que não me sentia bem com essa atividade fechada em sala de aula, meu anseio era o de me envolver com a vida missionária. Ao contrário do meu contemporâneo Manuel Bernardes, que sempre foi mais contemplativo, eu desejava ação.
P – Não vejo o Padre Manuel Bernardes como sendo um homem apenas contemplativo.
V – Eu não disse que ele foi apenas contemplativo, mas sim que foi mais contemplativo. E estava fazendo essa observação apenas para tentar esclarecer a vida que escolhi para mim.
P – Quando se tornou padre?
V – Os jesuítas pediram que eu ficasse na Bahia para concluir os estudos de Filosofia e Teologia. Assim, pude ser ordenado padre em 1635. Sempre gostei do púlpito. Em 1640 proferi um dos meus sermões preferidos, Sermão contra os holandeses – Bom sucesso das armas de Portugal contra a Holanda.
P – Não foi nesse sermão que o senhor confrontou e interpelou Deus?
V – Absolutamente. Meu objetivo foi o de levantar o ânimo da nossa gente, usando argumentos legítimos para persuadir Deus a nos ajudar. Jamais poderia confrontar Deus sendo eu um de seus servos mais fieis.
P – O senhor disse, entretanto, nesse sermão – ‘Não hei de pregar hoje ao povo, não hei de falar com os Homens, mais alto hão de sair as minhas palavras ou as minhas vozes: a vosso peito Divino se há de dirigir todo o sermão’.
V – Sim, disse. Foi apenas um recurso retórico para chamar a atenção daqueles que me ouviam. Se na verdade eu desejasse apenas que Deus me ouvisse faria sozinho uma prece silenciosa, não um sermão.
P – Acho difícil entender.
V – Entenderia melhor se você estivesse lá no ano de 1640, diante de uma batalha.
P – O senhor foi acusado de misturar religião com política. Em algum momento suas atividades favoreceram os poderosos?
V – Essa é uma invencionice daqueles que nunca se conformaram com a sinceridade das minhas pregações. No Sermão dos Escravos, que preguei no ano de 1653, em São Luis do Maranhão, para a 1ª Dominga da Quaresma, enfrentei os mais poderosos pleiteando que libertassem os índios do cativeiro, pois considerava pecado mortal escravizá-los.
E respondendo diretamente à sua pergunta uso as palavras que disse nesse mesmo sermão: ‘Subir ao Púlpito para dar desgosto, não é de meu ânimo, e muito menos a pessoas a quem eu desejo todos os gostos, e todos os bens. Por outra parte, subir ao Púlpito e não dizer a verdade é contra o ofício, contra a obrigação, contra a consciência; principalmente em mim, que tenho dito tantas verdades, e com tanta liberdade, e a tão grandes ouvidos. Por esta causa resolvi trocar um serviço de Deus por outro: e ir-me doutrinar os índios por essas aldeias’. Se disser o que eu disse com tanta coragem é ser político, então eu fui um político.
P – Embora, de certa forma, a nossa conversa não esteja ligada apenas a arte de falar em público, gostaria de ser mais específico neste assunto. Lendo seus sermões será possível aprender a falar em público?
V – Não produzi os sermões com essa finalidade. O objetivo das minhas pregações sempre foi o de levar às pessoas a palavra de Deus. Por outro lado, não posso ser hipócrita e ficar com falsa humildade dizendo que não. Os sermões que proferi, embora tenham sido respaldados na verdade e na sinceridade, foram elaborados no que pude encontrar de melhor na arte oratória. A leitura criteriosa e crítica poderá dar ao leitor um bom caminho para o aprendizado da comunicação em público.
P – O senhor recomenda algum em especial?
V – O mais apropriado para essa finalidade é o Sermão da Sexagésima, que preguei na Capela real em 1655. Nessa pregação mostrei aos padres como deveriam agir para planejar e proferir seus sermões. Foi na verdade uma aula de oratória. Trato ali de todos os aspectos relevantes sobre o orador, o tema e os ouvintes. A respeito do orador analiso suas cinco ‘circunstâncias’: a Pessoa, o Estilo, a Ciência, a Matéria e a Voz.
P – O senhor julga que esses princípios pregados há mais de 300 anos teriam aplicação prática nos dias de hoje?
V – Tenho certeza que sim. Quer algo mais apropriado para os dias de hoje que o trecho desse sermão?: ‘Sabem, Padres Pregadores, por que fazem pouco abalo os nossos sermões? Porque não pregamos aos olhos, pregamos só aos ouvidos. Por que convertia o Batista tantos pecadores? Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava aos olhos.’
Diga-me, será que existe matéria mais atual que essas palavras? Já pensou se os nossos políticos, governantes, educadores, pregadores, todos, enfim, seguissem esses mesmos conselhos?!
P – O senhor poderia deixar rápidas orientações para quem deseja aprender a falar em público?
V – Com prazer. Vou selecionar frases do Sermão da Sexagésima.
• Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras.
• O estilo há de ser muito fácil e muito natural.
• O Sermão há de ter um só assunto e uma só matéria.
• O que sai só da boca, para nos ouvidos; o que nasce do juízo penetra e convence o entendimento.
• E como os brados no mundo podem tanto, bem é que bradem algumas vezes pregadores, bem é que gritem.
Reinaldo Polito é Mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor de Oratória e escritor. Membro titular e diretor bibliotecário da Academia Paulista de Educação. Publicou 20 livros sobre a arte de falar em público.