Quem tem medo da progressão continuada?
Quem tem medo da progressão continuada? Ou melhor
A quem interessa o sistema de reprovação e exclusão social?
Profa. Dra. Rose Neubauer
Integrante da cadeira nº13 da Academia Paulista de Educação
Texto apresentado no IV Congresso Saber 2000 – Mesa Redonda – “A busca da qualidade de ensino no próximo século”, 30/9/2000.
Uma breve retrospectiva
No início do século XX, já era evidente que as escolas não poderiam continuar convivendo com relações pedagógicas tão autoritárias como as até então existentes, herdadas de modelos pedagógicos absolutamente ultrapassados. O que elas pressupunham? Que a criança não passava de um homúnculo com todas as habilidades e competências de um adulto sendo, portanto, responsável pelo seu processo de aprendizagem. Para essas velhas teorias, o centro da aprendizagem era o professor, o rei-sol, onisciente, e os alunos, passivos e mudos, deveriam gravitar ao seu redor. A disciplina em sala de aula deveria ser mantida a qualquer preço e os castigos físicos, a palmatória, a genuflexão sobre o milho, bem como as humilhações psicológicas, as famosas orelhas de burro colocadas no aluno que ia mal, imitavam as relações autoritárias e antidemocráticas existentes entre o poder e os seus súditos, assim como entre pais e filhos. Este clima de terror era coroado com a famosa reprovação. O bom professor, pasmem, era aquele que reprovava muitos alunos e a escola, bem como o professor, eram eximidos de qualquer responsabilidade pelo fracasso escolar. Esse comportamento punitivo chegava mesmo às raias do exagero de reprovar um aluno por um simples décimo, inviabilizando, muitas vezes, toda a vida escolar futura de um jovem ou de uma criança. Mais do que se sentir rei-sol, isto certamente consolidava no professor um sentimento quase divino de poder dispor, a seu bel-prazer, do destino de seus alunos, que se tornavam joguetes nas mãos do acaso.
Como uma concepção tão às avessas sobrevivera durante séculos? Ora, para todos aqueles que leram o livro O Nome da Rosa de Umberto Eco, ou assistiram ao filme do mesmo nome, a explicação é clara. O saber era propriedade de uma pequena elite que queria tornar o acesso ao mesmo o mais difícil e inóspito possível. Afinal, como o livro bem mostra, saber é poder. A melhor forma de atingir tal objetivo, isto é, afastar a massa ignara do saber, era tornar a escola insuportável e inatingível, tratando o aluno da forma mais rígida possível, desestimulando-o da aventura do conhecimento reservada a uns poucos.
A partir do início do século XX, com o fim das monarquias européias, a adoção de modelos democráticos de governo nos países ocidentais, o impacto do desenvolvimento industrial e urbano que levou a um enorme crescimento da classe média e do proletariado, as classes dirigentes foram obrigadas a aceitar o compromisso de democratização da informação e do saber, proposto já desde a Revolução Francesa. Nesse processo, a escola passa a desempenhar um papel fundamental, principalmente para os grupos mais pobres da população que só terão condições de acesso ao saber sistematizado, através dos serviços públicos ofertados pelo Estado no papel de compensador das desigualdades sociais.
No decorrer do século, a concepção de escola do passado começa a ruir, a ser demolida, violentamente, graças a diferentes contribuições científicas. Foram os avanços da Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, da Neurologia, da Epistemologia Genética, da Pedagogia Moderna, do Sócio-construtivismo que mostraram, com enorme ênfase, que a aprendizagem das crianças tem características próprias, diferentes da dos adultos; que o processo de aprendizagem é progressivo e cumulativo e nem sempre ocorre de forma linear, mas sim por saltos; e que o medo e a passividade não geram aprendizagem inteligente, ao contrário, são seus inimigos.
Assim, ao modelo de relação pedagógica autoritário, elitista e excludente, até então existente, irá contrapor-se um radicalmente novo, onde o ser que aprende – o aluno – passará a ser o centro do processo de aprendizagem que deverá estimular a participação, atividade, pesquisa e comportamento crítico.
Importantes educadores e estudiosos contribuíram para a sua construção. Vale lembrar aqui: Montessori, Decroli, Freinet, Dewey, Piaget, Wallon, Anísio Teixeira, Bourdieu e Passeron, Ana Maria Poppovic, Paulo Freire, Emília Ferreiro entre vários outros. Propõem eles uma escola democrática marcada por relações pedagógicas de inclusão, troca, respeito e estimulação. O aluno deve ser respeitado, suas características biopsicossociais levadas em conta no processo de planejamento, desenvolvimento e avaliação do ensino. Ao professor é atribuído o importante papel de mediador, facilitador do processo de aprendizagem, isto é, o de criar as condições necessárias e adequadas de exposição e apropriação do conhecimento pelos alunos. O papel do professor não será menos importante do que era no passado, mas implicará maior responsabilidade: zelar e garantir a aprendizagem do educando. Não basta ensinar. Condição necessária à função do professor, estabelecida inclusiva na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, será o de levar o aluno a aprender. Da mesma forma, a direção escolar e o sistema de supervisão do ensino tornam-se solidariamente responsáveis com o professor pela garantia da aprendizagem das crianças e jovens.
Logo após a segunda guerra mundial, vários países perceberam a necessidade urgente de adotar um novo modelo de educação e mudar radicalmente a cultura autoritária e seletiva de suas escolas. Independente das dificuldades do pós-guerra romperão com o modelo anterior adotando um sistema de progressão continuada da aprendizagem para melhor assegurar a permanência com sucesso das crianças na escola e a formação de cidadãos críticos e criativos. Esta mudança tem algumas premissas básicas fundamentadas nas ciências modernas de nossos dias. São elas:
? o ser humano, desde o início de sua vida, apresenta ritmos e estilos significativamente diferentes para realizar toda e qualquer aprendizagem – andar, falar, brincar, comer com autonomia, ler, escrever, desenvolver projetos, etc.;
? toda aprendizagem, inclusive a cognitiva, é um processo contínuo, que ocorre em progressão e não pode nem deve ser interrompida ou sofrer retrocessos, pois isto implica prejuízos enormes, tanto no que respeita à auto-imagem do aprendiz como na sua motivação para aprender;
? toda criança normal, sem traumas ou problemas mentais, quando exposta a situações motivadoras de ensino, é capaz de aprender e avançar em relação a seus padrões anteriores de desempenho;
? aprendizagens cognitivas exigidas pela escola podem ocorrer com maior ou menor rapidez em função das características e estimulação dos ambientes sociais de onde as pessoas provêm;
? o desempenho cognitivo e acadêmico de crianças e jovens de diferentes extratos sociais tende a atingir, nos anos iniciais de escolaridade, patamares médios bastante semelhantes, se respeitadas as dificuldades e obstáculos iniciais dos alunos, e garantida a aprendizagem continuada com reforço e orientação para aqueles com maiores dificuldades.
De acordo com esta nova filosofia educacional torna-se, por exemplo, inadmissível à escola, ao final de um ano escolar, ou melhor, de meros 10 meses, considerar um aluno como inepto total porque não aprendeu o que era “idealmente” esperado, num intervalo de tempo teoricamente “ideal”. Ela exige respeito aos diferentes ritmos de aprendizagem, característica própria dos seres humanos.
Será impossível, pois, para a nova escola, aceitar a concepção do passado de que o aluno deve ser reprovado, se não dominou bem divisão, mesmo que tenha aprendido tudo em português, ciências, história e geografia. Para o novo modelo de escola, existe uma incompatibilidade total, uma conciliação impossível entre as idéias de respeito ao educando de Paulo Freire, por exemplo, ou a de aprendizagem sócio-construída de Emília Ferreiro com a prática escolar existente em relação à reprovação. Ou seja, no caso do aluno reprovado toda aprendizagem dos inúmeros conteúdos curriculares feitas por ele durante um ano é praticamente desconsiderada, como se “apagada” de sua memória e ser refeita no ano seguinte. Trata-se esse aluno como se ele fosse uma peça defeituosa numa linha de montagem industrial mecanizada e, uma vez rotulado “repetente”, o aluno passa a personificar o fracasso para a escola e para a família, impossibilitado de desfrutar essa aventura maravilhosa que é aprender. No ano seguinte, é apontado como mau exemplo para os outros alunos da classe e, afastado pelos professores, senta-se no fundo da sala. Assim estigmatizado, acaba acreditando neste papel e virando um fracasso real – uma profecia que se auto-realiza. Muitas vezes esse alunos tem apenas 8 ou 9 anos.
Durante todo o século passado, educadores ilustres nos legaram uma literatura educacional abundante mostrando que um aluno assim humilhado, desrespeitado e cognitivamente violentado passaria a comportar-se ou como um pequeno robô, amedrontado e passivo de quem a escola altera o crescimento intelectual de forma perversa, ou como um marginal revoltado que, saudavelmente, para proteger sua auto-estima agride e abandona esta escola que personaliza o mais odioso tipo de autoritarismo.
No entanto, este modelo já questionado no início do século XX – por valorizar o medo, o sofrimento, a humilhação, o fracasso – continuou a ser muito apreciado e aplicado na chamada “boa” escola brasileira dos anos 50. Ele, certamente, foi um dos maiores responsáveis pelo fato chocante, que parece não fazer parte da memória dos educadores e dos meios de comunicação de massa, de que o Brasil, nos anos 50, tinha somente 36% da população de 7 a 14 anos na escola. A tão propalada boa escola de antigamente era aquela em que a maioria ficava fora e a que ficava dentro fracassava em massa. Perdas de 60% ou mais (evasão e reprovação) eram consideradas absolutamente normais. E há um certo cinismo quando, atualmente, alguns educadores ou autoridade se admiram com as altas taxas de analfabetismo da população brasileira com 40 anos ou mais.
Precisamos, no Brasil, ter coragem de examinar o passado, sem saudosismos elitistas. Parece-me oportuno parafrasear, aqui, o educador português Rui Canário que numa de suas passagens pelo Brasil afirmou em entrevista dada ao jornal O Estado de São Paulo (em 29/09/00): “as pessoas criticam a educação hoje achando que ela foi melhor um dia”. Concordo absolutamente com ele, pois com as informações que temos hoje, só é possível defender que o modelo de escola excludente do passado era bom por desinformação ou má-fé.
Nas três últimas décadas do século XX, a população brasileira “arrombou” as portas da escola. O crescimento das matrículas foi estrondoso. No entanto, por mais esforços que alguns educadores tenham feito, haverá muita dificuldade em mudar a cultura dessa escola elitista, autoritária, herdada do século XIX e serão usados todos os subterfúgios e práticas para afastar os alunos do acesso ao saber. E a mais avassaladora e eficiente entre elas será a reprovação, instrumento por excelência a serviço da ignorância e da exclusão social. Em relação ao acesso ao saber pode mesmo ser comparada aos fornos crematórios do III Reich.
Nos início dos anos 80, foram abundantes os estudos e pesquisas mostrando os efeitos perversos e pouco producentes da reprovação. Sérgio Costa Ribeiro, físico e ilustre pesquisador, precocemente afastado de nós, foi autor de alguns dos trabalhos mais significativos na área denunciando que o acesso finalmente conseguido pela população às escolas públicas era enganoso, pois a soma das taxas de evasão e reprovação continuavam tão ou mais altas que às dos anos 50. A diferença, dizia ele, é que, agora, ao invés de milhares, eram milhões de alunos, ano a ano, sistematicamente afastados das escolas. Os estudos de Ribeiro mostraram, com clareza, que a evasão era o subproduto das múltiplas repetências a que as crianças e jovens eram submetidos, ou seja, eles revelavam que 50% da população escolar abandonava, evadia-se da escola depois de ter ficado de 6 a 8 anos “estacionada” na segunda ou terceira série do ensino fundamental e que de cada 100 crianças, menos de 10 completavam o ensino fundamental em 8 anos.
É possível acreditar que a maioria da população escolar deste país fosse mentalmente retardada mentalmente frente às demandas das escolas? Ainda em 1995, mais da metade de toda população brasileira de 7 anos era reprovada na primeira série. Nenhum outro país, ainda que entre os mais pobres da América Latina tinha estatísticas educacionais tão perversas. Entretanto, convivíamos cínica e tranqüilamente com essa situação de perdas enormes de auto-estima nacional, de desenvolvimento intelectual, de capital humano e financeiro que deprimiam cada vez mais a situação educacional do país.
É inacreditável que o Brasil tenha mantido ainda na segunda metade do século XX uma grande parte de sua elite tão cega e pouco criteriosa, incapaz de reconhecer os estragos desastrosos que esse modelo provocou na educação, principalmente dos que mais necessitavam a ela ter acesso, e sua responsabilidade na “fuga à educação” e na marginalização de grandes contingentes populacionais.
Em meados dos anos 80 e os anos 90 também foram férteis em pesquisas sobre o rendimento escolar dos alunos associadas a um conjunto enorme de variáveis escolares e socioeconômicas. Tive o privilégio, como pesquisadora universitária e professora doutora na área de currículo e de avaliação, de participar de várias delas, juntamente com pesquisadoras ilustres como Ana Maria Poppovic, Bernardete Gatti, Guiomar Namo de Mello, entre outros. Pesquisas com alunos das escolas públicas mostravam em São Paulo, bem como em outros Estados do Brasil, que a cada repetência, a maioria dos alunos desempenhava cada vez pior, em função das situações desestimuladoras a que eram submetidos e da diminuição significativa da sua autoconfiança como aprendiz. Em contraposição, grande parte das pesquisas na área apontava de forma redundante que os fatores realmente determinantes do desempenho do sucesso dos alunos eram de outra natureza , tais como períodos escolares com duração não menor que 5 horas de aula por dia; assiduidade dos professores, existência de materiais didáticos presentes na sala de aula e não simplesmente na escola; garantia de coordenadores pedagógicos nas escolas; assim como garantia de aulas sistemáticas de recuperação e reforço escolar. Estes sim eram fatores cuja presença ou ausência contribuíam de forma significativa para o fracasso ou sucesso dos alunos.
Entretanto, raras vezes, ocorreu às elites ou administradores que dirigiam o sistema educacional apostar nesses aspectos e questionar o sistema secular de reprovação. Afinal, se ela fosse tão boa deveríamos de pois de tantos séculos de reprovação em massa ser um país de sábios. Somente na rede estadual paulista, no início da década de 90, cerca de 1.5 milhão de alunos, a cada ano, eram expulsos ou fracassavam na escola. Desde o final dos anos 80, os índices de evasão haviam atingido patamares absurdamente altos. E isto ocorria no mais rico e pujante Estado da América Latina, onde cerca de 90% dos professores já tinham formação universitária. No restante do país esses indicadores eram muito mais altos.
É preciso lembrar, porém, algumas tentativas feitas no Brasil, já no final do século passado, para superar este quadro calamitoso, ainda que elas tenham enfrentado muitas resistências. Em 1968, o emérito professor da USP, liberal e democrata, José Mário Pires Azanha, colaborando com Ulhoa Cintra, na Secretaria da Educação, implanta pela primeira vez no Brasil, no curso primário das escolas estaduais paulistas, os chamados nível I e II, ou seja, a passagem da primeira para a segunda série sem reprovações, assim como da terceira para a quarta séries. Ainda eliminam o malfadado exame de admissão para entrada no antigo ginásio. Estávamos no apagar das luzes de um período democrático e, por coincidência, o Gabinete cai por ser considerado subversivo.
Em 1984, respirando os novos ares de democracia, o Governador Montoro implanta o ciclo básico nas escolas estaduais paulistas, no que é imitado por outros Estados, inclusive Minas Gerais. O objetivo? Dar à criança a possibilidade de completar sem retrocessos seu processo de alfabetização. Há forte resistência dos professores que acreditam perder a autoridade de sua classe por não poder reprovar criancinhas de sete anos e o Governo por pressão política e das entidades de classe, não dá continuidade ao processo de ciclos, como propusera inicialmente.
No início dos anos 90, já com a consolidação democrática, a Prefeita da Cidade de São Paulo, Luiza Erundina, juntamente com a Secretaria Municipal de Educação dirigida por Paulo Freire, introduz, semelhante ao que pretendia o governador Montoro, o sistema de progressão continuada em 3 ciclos no ensino fundamental das escolas da capital paulista, que vinha ocorrendo também em outras capitais como Florianópolis. É possível constatar, portanto, que a política de introdução de ciclos surge e se fortalece nos raros momentos de democracia que tem ocorrido neste país. Talvez isto justifique o seu atraso. Acredito que as eminentes figuras acima apontadas que propuseram a aprendizagem em progressão continuada por ciclos não são passíveis de serem identificadas como demagogos ou malandros como tentam alguns fazer parecer.
Os desafios do século XXI
Nos últimos anos do século XX, sob o impacto das enormes mudanças ocorridas na sociedade, do avanço da tecnologia e dos meios de comunicação de massa, da constatação cada vez mais óbvia de que a sociedade do futuro será a do conhecimento e de que este determinará a riqueza das nações, é promulgada uma nova Lei de Diretrizes e Bases Nacionais (LDB), aprovada em 1996, sob a inspiração do educador Darcy Ribeiro. A nova LDB, exaustivamente debatida por educadores e pela sociedade, trouxe os primeiros ventos de modernização e real democratização para o sistema educacional brasileiro recebendo a aprovação do Congresso Nacional, das entidades de classe e de todos os diferentes partidos políticos.
É, portanto, na LDB de 1996 que estão inscritas e garantidas as diferentes formas de organização do ensino ampliando as possibilidades de avanço e respeito à aprendizagem dos alunos. É nela que está claramente proposta a aprendizagem em progressão continuada na forma de ciclos. Lá estão apontadas, também, as formas de fazê-lo com sucesso: ampliação da jornada escolar, a recuperação paralela e contínua dos alunos com dificuldades de aprendizagem, as horas de trabalho coletivo remunerado do professor para avaliação e capacitação; a proposta de projetos de aceleração de aprendizagem para alunos multi-repetentes com grande defasagem idade-série; além do direito à reclassificação de estudos para todos aqueles que conseguiram aprender independentemente da freqüência às escolas. Uma lei revolucionária que buscava provocar enormes mudanças no sistema educacional brasileiro, na medida em que refletia o espírito democrático de seu patrono: criar condições de acesso ao conhecimento para toda a população, o que até então a escola brasileira fora incapaz de fazer.
No caso específico de São Paulo, em 1996, durante o período de discussão da LDB, algumas de suas propostas já começaram a ser postas em prática. Assim, desde o início de 1996 foram garantidas na rede estadual paulista algumas condições básicas para a melhoria do ensino, ou seja, ampliação da jornada escolar de 720 horas para 1000 horas para 90% dos alunos do diurno, e para 800 horas no período noturno; duas novas modalidades de recuperação paralela para todos os alunos com dificuldades de aprendizagem, ou seja, tanto a semanal, de 3 horas fora do horário regular de aulas, para corrigir prematuramente deficiências de aprendizagem, como a recuperação ao final do ano, no mês de janeiro, com 100 de duração, para os alunos faltosos ou com maiores dificuldades. Ao lado dessas medidas, foi instituído para todos os professores o pagamento de horas de trabalho tanto fora da escola como na escola mas fora da sala de aula, para momentos de capacitação e orientação pedagógico com ênfase especial no trabalho de reforço escolar. Para que isto ocorresse, todas as escolas passaram a contar com um ou dois coordenadores pedagógicos, antiga reivindicação do magistério, de modo a acompanhar o trabalho dos professores juntamente com a equipe das Oficinas Pedagógicas, órgãos descentralizados de capacitação. O trabalho das Oficinas foi enriquecido, a partir de 1997, com os resultados do sistema de avaliação do rendimento escolar dos alunos da rede estadual de São Paulo (SARESP) feito por instituições externas à administração. Estes resultados enviados a cada uma das escolas, para cada uma das séries avaliadas, serviram de suporte e tomada de decisão sobre a natureza e conteúdo dos investimentos (30 milhões de reais em 1997) em cursos de capacitação de professores ofertados pelas universidades paulistas aos professores da rede estadual paulista.
Tais medidas provocaram quedas drásticas nas taxas de evasão, deixando claro que os alunos e suas famílias percebiam que valia a pena não se evadir nesse novo modelo de escola porque o aluno tinha maiores chances de se recuperar, aprender e ter sucesso. Foi somente então, no início de 1998, que o Conselho Estadual de Educação de São Paulo, órgão normativo do sistema, propôs, em função das mudanças ocorridas, a adoção da aprendizagem em progressão continuada para o sistema de ensino paulista, público e privado. A proposta só abrangeu o ensino fundamental cujos oito anos deveriam ser organizados em dois ciclos, com reprovações ocorrendo ao final de qualquer ano escolar, somente no caso de faltas em excesso ou abandono da escola. Enfatizava o Conselho Estadual a importância de avaliações freqüentes e contínuas da aprendizagem para embasar as aulas de recuperação paralela ou nas férias. Ao final de cada um dos dois ciclos, caso o aluno apresentasse ainda sérios problemas de aprendizagem, deveria ficar retido mais um ano no ciclo para um trabalho cuidadoso e planejado de recuperação. Essa proposta, que é a atual, objetivou garantir às crianças paulistas a possibilidade de sucesso na escola e o respeito ao seu desenvolvimento intelectual e emocional.
No entanto, por que a organização da escola em ciclos assusta e ameaça alguns setores da sociedade? Sabemos sobejamente que a organização seriada, da escola do passado que alguns persistem em preservar, não levava a maioria dos alunos a aprender. As críticas a esse modelo de escola eram contundentes e as perdas, fantásticas. Nos dias atuais nenhum educador de prestígio é capaz de defender ou de recomendar a reprovação como uma medida pedagógica positiva. A quem incomoda, portanto, a mudança para os ciclos de aprendizagem? Em nome de quem ela pode ser condenada e quais subterfúgios ainda serão usados para atacar o sistema de ciclos?
É preciso concordar, em primeiro lugar, que causa estranheza o fato de que fazer uma criança continuar aprendendo, progredindo de onde parou, que é o normal para toda e qualquer aprendizagem, só na escola é encarado como uma aberração. Por que será que isto ocorre? Será que isto ocorre por simples perda de poder quando não temos mais a arma da reprovação para usar ao bel prazer ou porque a sua prática responsável demanda uma sistemática mais trabalhosa, detalhada, cuidadosa e criteriosa de avaliação? Esta última sempre aparece como um dos principais motivos.
No entanto, a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo desde 1984, ou seja, desde a introdução do ciclo básico havia desenvolvido uma série de instrumentos, publicações, fichas detalhadas, programas de TV e vídeo – consubstanciados no famoso Projeto Ipê – para auxiliar escolas e professores na avaliação, acompanhamento e recuperação dos alunos. Pode-se questionar se existiam condições para esse tipo de avaliação. Porém, desde 1996 elas existem. São os horários de recuperação paralela semanal e ao final do ano. São as horas de trabalhado remuneradas do professor na escola, mas fora da sala de aula. É a jornada ampliada em 40% para a maioria dos alunos, bem como a capacitação dos professores feita pelas Universidades e escolhida pela própria Diretoria de Ensino e suas escolas
Por que quando o aluno multirrepetente ficava vários anos estacionado numa mesma série ninguém se incomodava? Será porque era mais fácil camuflar o fato de que, após 5 ou 6 anos de passagem pela escola, ninguém havia, com seriedade, se responsabilizado pela aprendizagem desse aluno? Ora, haviam sido responsáveis por ele pelo menos cinco professores, um diretor, um vice-diretor, um coordenador pedagógico, um supervisor escolar, três a quatro assistentes pedagógicos da Oficina Pedagógica local e um dirigente regional de ensino. Um pequeno exército de profissionais, mas o aluno é quem era indubitavelmente considerado por todos o responsável pelo seu fracasso e, portanto, o único a ser penalizado pela repetência. A escola eximia-se de qualquer culpa, que sempre acabava sendo atribuída à vítima, ao aluno, o ponto mais fraco da relação pedagógica.
O sistema de aprendizagem continuada em ciclos desvela a incompetência da escola e do sistema para ensinar e impedir o abandono a que certos alunos eram relegados, fato que a reprovação mascarava. Ele não permite mais a punição unilateral, impede a farsa “professor finge que ensina e aluno não aprende porque não é capaz”. A progressão continuada, por outro lado, exige maior trabalho coletivo da equipe escolar para garantir o sucesso dos alunos. Por quê?
O sistema seriado, com repetência ano a ano, pressupõe o trabalho do professor como se as classes fossem homogêneas, pois se o aluno repete, o professor da série seguinte “zera” tudo o que ele aprendeu no ano anterior e parte do princípio de que, naquela série, todos são iguais, ou seja, ninguém conhece nada do conteúdo a ser desenvolvido. A grande vantagem dessa homogeneização artificial é a de facilitar o planejamento das aulas e tornar o trabalho do professor o menos diversificado possível. Na progressão continuada o professor, no início do ano deve levar em conta o que cada um aprendeu, em qual etapa se encontram, examinar as avaliações e as fichas de acompanhamento dos professores das séries anteriores e saber organizar os alunos em diferentes grupos, com a noção de que, alguns deverão ser mais estimulados e reforçados para conseguirem alcançar um desempenho médio semelhante à média dos alunos da classe. Isto obriga toda a equipe escolar – professores, diretor, coordenadores – a organizarem, com mais critério, o planejamento pedagógico e as aulas de reforço e recuperação. Ao final desse processo, os resultados compensam os esforços demandados.
Na reprovação, a marca do fracasso é do aluno, na progressão continuada em ciclos, a marca do fracasso é da equipe da escola, da organização do sistema de ensino que deverá ser questionado, repensado e seus pontos frágeis revistos. A cada final de ano, ou o aluno conseguiu avançar, aprender mais, ou a escola ficou para trás e deixou de cumprir o seu papel.
É este o caminho que devemos ter coragem de trilhar. Ser capaz de enfrentar o velho e ultrapassado mito de que a reprovação é positiva e lutar por um modelo de escola capaz de ensinar e não simplesmente de excluir. Com as informações que possuímos atualmente, continuar com o discurso e a prática antiga de reprovar e culpar o aluno é, no mínimo, cômodo para não dizer imoral.
No ensino médio, por exemplo, onde estudam adolescentes e adultos, as faixas escolares mais questionadoras, o sistema de ciclos em progressão continuada nunca foi instituído. Os jovens constituem hoje a maior parcela da nossa população e apresenta sérios problemas de marginalidade, criminalidade e envolvimento com drogas. A escola de ensino médio, portanto, necessita mais do que nunca buscar mecanismos que motivem o jovem a nela permanecer para preparar-se a enfrentar o contexto complexo da sociedade atual e a crescente violência social que a maioria desse grupo vivencia no seu dia a dia. Além de aceitar o desafio de ensinar a parcela de excluídos que, até recentemente nem sequer adentrava suas portas, a escola hoje se depara com uma juventude cada vez mais livre, autônoma e independente, características muito mais complexas para o ato de educar.
Vale lembrar que nos final dos anos 90 ocorre, em São Paulo, um fenômeno surpreendente. Enquanto a rede particular de ensino médio para de crescer, estaciona ao redor de 300 mil alunos, a rede pública estadual cresce em cerca de 1 milhão de alunos, ou seja, expande-se em 3 redes particulares de ensino médio, atingindo a cifra de 2 milhões de estudantes nesse nível de ensino. O que facilitou essa explosão e mesmo a concorrência com a rede privada não foi tão somente o aumento de vagas, a garantia de acesso, mas a prática de uma política educacional alternativa para os jovens.
Certamente foram decisivas algumas modificações introduzidas de 1996 em diante, como a recuperação nas férias e a matrícula por disciplina, a oferta de cursos profissionalizantes pós-médio. A matrícula por disciplina possibilitou, por exemplo, a um jovem reprovado em duas disciplinas não ter que refazer aquelas nas quais fora aprovado. No ano seguinte ele avançava e só refazia as duas nas quais teve desempenho insatisfatório. É um sistema semelhante ao que ocorre nas universidades. O fato dos jovens não se sentirem reprovados, já em setembro, por dificuldades encontradas em uma ou outra disciplina e poderem contar com a recuperação nas férias de janeiro para melhorar o seu desempenho e aumentar suas chances de sucesso, foi fundamental para mantê-los na escola, bem como aproximá-los da mesma. Conseqüentemente, a taxa de evasão na rede estadual caiu de 25% para 12%, tornando-se a mais baixa do país.
Talvez alguns até considerem este jovem, que trabalha 8 horas por dia e estuda à noite, despreparado quando comparado com aqueles poucos que só estudavam no diurno (até porque não existia curso noturno público) na chamada “boa” escola “pública” do passado, de quase 100 anos atrás, paga por muitos e usufruída por uns poucos. Mas, por mais que interesse a alguns setores desqualificar esse jovem, ele está extremamente melhor preparado do que os milhões de jovens que na sua idade, ainda em passado recente, nunca haviam adentrado uma escola de ensino médio e nem sequer tinham chances de estudar e enfrentar a odiosa exclusão social deste país.
Finalmente, é preciso perguntar a quem interessa atribuir ao sistema de ciclos a ideia de caos e aumento da violência na escola? Aos professores? Certamente não. Os bons educadores já sabem muito bem que o domínio do medo e o fantasma da reprovação podem auxiliar o controle da disciplina da classe de um ou outro professor cujas aulas são desinteressantes e pouco motivadoras, mas de nenhuma forma garantem a aprendizagem. Quaisquer que sejam os medos e fantasmas das elites e seus prepostos, não é mais possível conviver com o modelo de escola e ensino que herdamos do passado.
O século XXI exige uma nova escola – inclusiva, dinâmica e radicalmente diferente – que, além de transmitir o conhecimento, tenha como papel primordial possibilitar a socialização e o respeito mútuo, o desenvolvimento de valores éticos e a solidariedade, principalmente do nosso jovem, exposto hoje a uma sociedade muito mais competitiva e individualista. Na escola, ele também aprenderá o saber socialmente sistematizado, embora no futuro, graças à tecnologia moderna, poderá até fazer a opção de aprendê-lo, de forma inteligente, à distância, fora da escola. Consequentemente, a escola assim como o professor, principalmente o da escola pública, necessitam abandonar a posição de arautos do fracasso. Uma postura assim elitista e antidemocrática não terá mais lugar no século XXI e, se levada às últimas consequências, poderá ser, de forma antropofágica, o próprio fim da escola e da profissão. Como qualquer bom médico, que cura os seus pacientes, ou um bom advogado, que ganha as causas dos seus clientes, o professor terá que rechaçar radicalmente a posição de que é bom reprovar, ou seja, de que não é capaz de fazer aquilo que dele se espera e para o qual foi preparado – ensinar.
Essas são mudanças de cultura, de postura, difíceis de serem ultrapassadas devido ao teor altamente ideológico e emocional que possuem, pois implicam uma aparente perda de poder. Mas elas devem ocorrer, com urgência, se quisermos preparar nossos jovens para este novo século. Já estamos com uns 100 anos de atraso. Resta ter coragem para deixar de usar a escola como instrumento de elitização e exclusão do saber. Resta não ter medo do desafio de ensinar os antes excluídos que agora estão chegando na escola. Resta acreditar com Rui Canário em que “a idade de ouro da educação ainda está por vir“. E isto vale principalmente para nós, no Brasil, que só no apagar do século XX conseguimos colocar a totalidade de nossas crianças e jovens nas escolas.