A Educação, a Politica e a Administração: reflexões sobre a prática do diretor de escola.
A Educação, a Política e a Administração:
reflexões sobre a prática do diretor de escola?
Vitor Henrique Paro.
Resumo
À luz de um conceito de administração (ou gestão) como mediação para a realização de fins e de uma concepção de política como convivência (conflituosa ou não) entre sujeitos, e tendo presente o caráter necessariamente democrático da educação para a formação de personalidades humano-históricas, este artigo apresenta subsídios teóricos para se discutir como se configura a ação administrativa do diretor de escola básica (com enfoque especial no ensino fundamental) diante dos fins da educação e da especificidade do processo de produção pedagógico. Tendo por base a literatura científica sobre administração escolar, o trabalho traz à discussão uma concepção conservadora, mais identificada com o senso comum educacional, que advoga métodos e princípios idênticos aos aplicados na administração empresarial capitalista, e a confronta com uma concepção de cunho progressista, que leva em conta a condição cultural e histórica do trabalho pedagógico. Ao adotar o ponto de vista desta última concepção, o texto examina a direção escolar tanto em sua condição técnica, ligada à condição de utilização racional de meios, que precisa ser consentânea com o caráter educativo de seu produto, quanto em sua condição política, ligada (do mesmo modo) a seu produto, mas principalmente à forma de relação social, que se impõe como relação democrática.
Palavras-chave: Diretor Escolar – Escola Pública – Escola e Democracia – Gestão Escolar Democrática.
Introdução
“Nenhum problema escolar sobrepuja em importância o problema de administração.” Com estas palavras, A. Carneiro Leão (1953, p. 13) iniciava, em 1939, o prefácio à primeira edição de sua obra Introdução à administração escolar, um dos estudos pioneiros sobre a matéria no Brasil. Desde então, a valorização da administração das escolas no ensino básico tem-se verificado continuamente nas mais diferentes formas e instâncias.
No meio acadêmico, não apenas os estudos específicos sobre administração escolar – desde os trabalhos de José Querino Ribeiro (1938, 1952, 1968) e de M. B. Lourenço Filho (1972) – mas também os textos que tratam da educação escolar de modo geral enfatizam a relevância da organização e da gestão das escolas. Nos meios políticos e governamentais, quando o assunto é a escola, uma das questões mais destacadas diz respeito à relevância de sua administração, seja para melhorar seu desempenho, seja para coibir desperdícios e utilizar mais racionalmente os recursos disponíveis. Também na mídia e no senso comum acredita-se de modo geral que, se o ensino não está bom, grande parte da culpa cabe à má administração das nossas escolas, em especial daquelas mantidas pelo poder público.
Embora sejam várias as motivações para essa valorização da administração escolar – e não faltam aqueles que são a favor de uma maior “eficiência” da administração escolar com a única ou precípua preocupação com os custos do ensino –, a justificativa comum é a de que o ensino é importante, e é por isso que se deve realizá-lo da forma mais racional e eficiente; portanto, é fundamental o modo como a escola é administrada.
Essa justificativa, expressa ou tacitamente, supõe a administração como mediação para a realização de fins. É com este sentido que utilizarei o conceito de administração (ou de gestão, e tomo essas palavras como sinônimos); ou seja, “administração é a utilização racional de recursos para a realização de fins determinados” (Paro, 2010a, p. 25). Assim, parece óbvio que, quanto maior é a relevância dos objetivos, maior a importância das mediações para se conseguir realizá-los.
Esse conceito de administração deve nos alertar para seu caráter sintético e geral, que permite abarcar toda e qualquer administração, qualquer que seja seu objeto e que, por isso, precisa fazer abstração dos objetos específicos de cada administração concretamente considerada. Isto é, administração é sempre utilização racional de recursos para realizar fins, independentemente da natureza da “coisa” administrada: por isso é que podemos falar em administração industrial, administração pública, administração privada, administração hospitalar, administração escolar, e assim por diante.
Tal conceito diz respeito também a toda a administração, o que inclui os vários “setores” da empresa, ou os vários locais ou momentos do processo a que ela se refere. Isso nos permite falar em administração de pessoal, administração de material, administração financeira, assim como administração de atividades-meio, administração de atividades-fim etc.
De acordo com esse conceito mais abrangente de administração a mediação a que se refere não se restringe às atividades-meio, porém perpassa todo o processo de busca de objetivos. Isso significa que não apenas direção, serviços de secretaria e demais atividades que dão subsídios e sustentação à atividade pedagógica da escola são de natureza administrativa, mas também a atividade pedagógica em si – pois a busca de fins não se restringe às atividades-meio, mas continua, de forma ainda mais intensa, nas atividades-fim (aquelas que envolvem diretamente o processo ensino-aprendizado).
Este tema será desenvolvido mais adiante. Por ora, é importante destacar que a noção de administração do senso comum, deixando de captar o que há de administrativo no processo pedagógico (ao limitar a administração às normas e procedimentos relativos à organização e funcionamento da escola), acaba por valorizar aquele que é o responsável direto pelo controle das pessoas que devem cumprir essas normas e realizar esses procedimentos: o diretor escolar.
Essa valorização do diretor de escola segue paralela à valorização da administração no ensino básico, já que ele é considerado o responsável último pela administração escolar. Enfim, é o diretor que, de acordo com a lei, responde, em última instância, pelo bom funcionamento da escola – onde se deve produzir um dos direitos sociais mais importantes para a cidadania.
Para os estudos da administração (ou gestão) escolar, o que surpreende não é a existência do discurso que valoriza a figura do diretor, pois, como vimos, ele vem-se repetindo há muito tempo. O que intriga é a relativa escassez, no âmbito das investigações sobre a realidade escolar no Brasil, de estudos e pesquisas a respeito da natureza e do significado das funções do diretor de escola à luz da natureza educativa dessa instituição.
Entretanto, como já destaquei em várias ocasiões (por ex., Paro, 2010a, 2008b, 2000a), o diretor ocupa uma posição não apenas estratégica, mas também contraditória na chefia da escola — o que estaria a merecer maior número de análises e estudos aprofundados. É com a intenção de contribuir para o preenchimento dessa lacuna que apresento estas reflexões, as quais discutem a natureza das atividades do diretor escolar e as possíveis adequações e contradições dessa prática diante do caráter político-pedagógico da escola.
Administração como mediação
Tradicionalmente, os estudos sobre a atuação do diretor de escola costumam ater-se a uma concepção de administração diversa do conceito amplo utilizado neste trabalho, razão pela qual restringem a ação administrativa dos diretores apenas às atividades-meio, dicotomizando, assim, as atividades escolares em administrativas e pedagógicas.
Embora sirva ao propósito de tornar clara a distinção entre a atividade pedagógica propriamente dita e as atividades que a esta servem de pressuposto e sustentação, tal maneira de tratar o problema acaba por tomar as atividades pedagógicas e administrativas como mutuamente exclusivas — como se o administrativo e o pedagógico não pudessem coexistir numa mesma atividade —, encobrindo assim o caráter necessariamente administrativo de toda prática pedagógica e desconsiderando as potencialidades pedagógicas da prática administrativa quando se refere especificamente à educação.
Para melhor compreender essa questão, torna-se necessário elucidar melhor a concepção de administração aqui adotada, retomando, em certa medida, o que já expus em trabalho anterior (2010a).
A administração entendida como a utilização racional de recursos para a realização de fins configura-se “como uma atividade exclusivamente humana, já que somente o homem é capaz de estabelecer livremente objetivos a serem cumpridos” (Paro, 2010a, p. 25); quer dizer, só o homem é capaz de realizar trabalho, em seu sentido mais geral e abstrato, como “atividade orientada a um fim” (Marx, 1983, p. 150, v. 1, t. 1).
Os fins a que se propõe advêm de sua “valoração” da realidade em que se encontra, ou seja, derivam dos valores criados pelo homem em sua situação de não indiferença diante do mundo (Ortega y Gasset, 1963). É pelo trabalho que o homem faz história (e se faz histórico), na medida em que transforma a natureza e, com isso, transforma a sua própria condição humana no mundo. Para além de sua situação de mero animal racional, realiza-se, com o trabalho, sua condição de sujeito, isto é, de condutor de ações regidas por sua vontade.
Deriva daí a importância da ação administrativa em seu sentido mais geral, porque ela é precisamente a mediação que possibilita ao trabalho realizar-se da melhor forma possível. Isso significa que o problema de mediar a busca de fins é um problema que permeia toda a ação humana enquanto trabalho, seja este individual ou coletivo.
Considerada a escola como uma empresa , sua administração, ao cuidar da utilização racional dos recursos, supõe que tal utilização seja realizada por uma multiplicidade de pessoas, mas sem ignorar que, em cada um dos trabalhos (que concretizam essa realização), está presente o problema administrativo, ou seja, a necessidade de realizá-lo da forma mais adequada para a consecução do fim que se tem em mira.
Os recursos envolvidos na busca dos objetivos de uma empresa podem se apresentar sob as mais variadas formas. Numa tentativa de síntese, podemos considerá-los como parte de dois grupos interdependentes: os recursos objetivos e os recursos subjetivos.
Entre os primeiros incluem-se, por um lado, os objetos de trabalho e os instrumentos de trabalho, isto é, os elementos (materiais ou não) que são objeto de manipulação direta para a confecção do produto; por outro, os conhecimentos e técnicas que entram como mediação nessa produção, ou seja, os recursos conceptuais ou simbólicos de um modo geral. Assim, os recursos objetivos, como o próprio nome sugere, referem-se às condições objetivas presentes na realização do trabalho ou dos trabalhos que concorrem para a realização dos fins da empresa ou organização.
Já os recursos subjetivos dizem respeito à subjetividade humana, ou seja, à capacidade de trabalho dos sujeitos que fazem uso dos recursos objetivos. Capacidade de trabalho ou força de trabalho é toda energia humana disponível para o processo de produção, ou seja, “o conjunto das faculdades físicas e espirituais que existem na corporalidade, na personalidade viva de um homem e que ele põe em movimento toda vez que produz valores de uso” (Marx, 1983, p. 139, v.1, t. 1).
Dada sua força ou capacidade de trabalho, o recurso subjetivo de cada trabalhador consiste, assim, em seu esforço na realização de ações que concorram para a concretização do objetivo. Convém lembrar que, na administração de uma empresa, não se trata do esforço de um indivíduo isolado, mas do esforço humano coletivo, ou seja, da multiplicidade de habilidades, forças, destrezas, conhecimentos, enfim as mais diferentes capacidades presentes nos diferentes componentes humanos da organização.
Esses dois grupos de recursos sugerem dois amplos campos da administração, certamente não separados um do outro, pois a aplicação dos recursos objetivos e subjetivos só tem sentido se esses forem considerados integradamente. O primeiro desses campos, por envolver a utilização racional dos recursos objetivos na realização do trabalho, podemos chamar de racionalização do trabalho. Sua preocupação e escopo é a articulação ótima entre recursos e processos de trabalho, empregando os primeiros da forma mais racional possível – em processos que sejam concebidos e executados do modo mais adequado para o fim que se tem em mira e para os recursos de que se dispõe. O segundo campo diz respeito à utilização racional dos recursos subjetivos e pode chamar-se coordenação do esforço humano coletivo, ou simplesmente coordenação. (Cf. Paro, 2010a)
Esses dois campos da administração são consideravelmente amplos e, mesmo nas empresas menores e mais simples, envolvem uma multiplicidade de determinações e crescentes complexidades, dependendo da natureza e dimensão dos recursos e dos objetivos. Um aspecto relevante é a interdependência entre os campos. Racionalização do trabalho e coordenação se cruzam precisamente no processo de trabalho, do qual depende a realização dos objetivos da empresa. A racionalização do trabalho, por mais que se atenha à utilização dos recursos objetivos, não pode desconsiderar que tais recursos são manipulados por pessoas, e que só “funcionam” associados aos recursos subjetivos. De igual modo, a coordenação, por mais que se ocupe da utilização do esforço humano coletivo, não pode ignorar que o escopo principal para a realização dos objetivos é a integração desses recursos aos recursos objetivos de que se dispõe.
Acrescente-se que, a esse respeito, a coordenação cerca-se de uma complexidade adicional: em primeiro lugar, porque o recurso de que cuida – o esforço humano coletivo – é atributo de sujeitos, ou seja, de seres providos de vontade, cuja ação não admite a mesma previsibilidade possível no caso dos recursos objetivos. Um segundo elemento de complexidade é que a ação dos sujeitos não se restringe ao momento do trabalho, mas espalha-se por todas as relações dentro da empresa.
Essas características da coordenação do esforço humano coletivo remetem obrigatoriamente ao seu caráter necessariamente político. Ao se adotar um conceito suficientemente amplo de política – como a produção da convivência entre grupos e pessoas (Cf. Paro, 2010b, p. 26-27), ou seja, entre entes que, em sua dimensão subjetiva, possuem vontades e interesses próprios que podem ou não coincidir com os interesses dos demais —, percebe-se então o caráter nitidamente político da coordenação do esforço humano coletivo no interior de determinada empresa ou organização.
Embora sejam múltiplos e variados os interesses e valores normalmente em jogo em toda organização (porque vários são os sujeitos que a organização usualmente abriga), a questão de maior importância quanto à abordagem de vontades diversas e à solução de conflitos é a atinente à relação entre os objetivos a serem atingidos e os interesses dos que despendem seu esforço na consecução de tais objetivos. Trata-se de uma questão política de primeira grandeza que condiciona em grande medida a própria forma como se desenvolve a coordenação.
Quando os interesses dos que executam os trabalhos coincidem com os objetivos a serem alcançados, a coordenação pode se revestir de um caráter mais técnico, pois atém-se muito mais ao estudo e à implementação de formas alternativas para alcançar objetivos que interessam a todos. Não deixa de ser política, mas pode mais facilmente fazer-se democrática .
Quando, entretanto, há divergência entre os interesses dos trabalhadores e os objetivos a se realizarem, a coordenação ganha um caráter marcadamente político, tornando-se muito mais complexas suas funções e as formas de empregar o esforço humano coletivo. Ela não prescinde dos elementos técnicos, mas tem de ocupar-se mais intensamente dos interesses em conflito. Neste último caso, os que detêm o poder de estabelecer os objetivos a serem alcançados também são os que possuem o poder político dominante, e que se apropriam da função coordenadora.
Outro ponto relevante a assinalar é que, contrariamente ao que se acha difundido no senso comum, a coordenação não precisa ser feita sempre a partir de um coordenador unipessoal que determine a conduta de grupos e pessoas. Esta tem sido a regra em nossa sociedade, em que as empresas, tanto públicas quanto privadas, lançam mão de chefes, supervisores, feitores, gerentes, inspetores, superintendentes etc. para coordenarem as ações de seus subordinados. Mas a coordenação pode também ser realizada coletivamente – em especial por aqueles mesmos que emprestam seu esforço para a realização dos objetivos da empresa —, quer diretamente quer por meio de conselhos e representantes.
Direção e Diretor
Em princípio, a palavra direção pode ser utilizada indistintamente como sinônimo de chefia, comando, gestão, governo, administração, coordenação, supervisão, superintendência etc. Aqui nos interessa a identificação que comumente se faz entre direção escolar e administração escolar; ou entre diretor escolar e administrador escolar. Essa identificação fica bastante visível na exigência, que normalmente se faz, de que o diretor de escola tenha uma formação em administração escolar (ou gestão escolar).
Na maioria dos sistemas de ensino, quando se fala em administrador escolar, pensa-se logo na figura do diretor de escola – embora haja exceções, em que existe a figura do diretor e a do administrador com funções distintas. Também na literatura sobre administração escolar, é generalizado (embora não exclusivo) o uso indistinto de administrador (ou gestor) escolar e de diretor escolar com o mesmo significado.
Entretanto, parece ser quase unânime a preferência pela expressão “diretor escolar”, quando se trata de denominar oficialmente, por meio de leis, estatutos ou regimentos, aquele que ocupa o cargo hierarquicamente mais elevado no interior de uma unidade de ensino. Mesmo entre a população usuária, quando alguém se refere ao cargo, é ao de diretor que se reporta, não ao de administrador; e praticamente ninguém vai à escola à procura do administrador, mas sim do diretor escolar.
Parece que, quando tratados genericamente, ou seja, “a olho nu”, os termos administração e direção escolar se confundem, mas quando se trata de exigir rigor e especificidade, a direção se impõe como algo diverso da administração. E não parece descabido que isso aconteça. Quando se trata da direção da escola e do responsável por ela, pretende-se uma maior abrangência de ação e um ingrediente político bastante nítido, que a administração, muito mais técnica, parece não conter: o diretor é aquele que ocupa a mais alta hierarquia de poder na instituição.
Quem faz boa análise a respeito desse assunto é José Querino Ribeiro (1968). O autor que, mais de uma vez, identifica em suas obras direção e administração, faz questão de deixar nítida a diferença entre ambas:
[…] Assim, por exemplo, considere-se que uma cousa é ser diretor, outra é ser administrador. Direção é função do mais alto nível que, como a própria denominação indica, envolve linha superior e geral de conduta, inclusive capacidade de liderança para escolha de filosofia e política de ação. Administração é instrumento que o diretor pode utilizar pessoalmente ou encarregar alguém de fazê-lo sob sua responsabilidade. Por outras palavras: direção é um todo superior e mais amplo do qual a administração é parte, aliás, relativamente modesta. Pode-se delegar função administrativa; função diretiva, parece-nos, não se pode, ou, pelo menos, não se deve delegar. (p. 22)
Essa contribuição de Ribeiro ajuda a pautar a diferença que pretendo estabelecer entre administração e direção, além de elucidar o papel que cabe a esta última na organização da escola básica. Esse ponto de vista assume que a direção, em certo sentido, contém a administração e simultaneamente lhe é mais abrangente. A direção engloba a administração nos dois momentos desta, de racionalização do trabalho e de coordenação, mas coloca-se acima dela, em virtude do componente de poder que lhe é inerente. Podemos dizer que a direção é a administração revestida do poder necessário para fazer-se a responsável última pela instituição, ou seja, para garantir seu funcionamento de acordo com “uma filosofia e uma política” de educação (Ribeiro, 1952).
Ribeiro, ao falar sobre “filosofia e política de ação”, afirma que estas se colocam “acima e fora da área administrativa e dentro da área mais geral e superior da direção do empreendimento” (1968, p. 31). Observe-se que o diretor de determinada empresa está na situação de quem estabelece os fins da organização, ou é investido do poder de fazê-los realizar-se, ou ambas essas atribuições ao mesmo tempo. No âmbito da administração há, pois, o emprego do esforço humano coletivo; há inclusive a coordenação desse esforço — coordenação esta que pode referir-se, ora ao todo, ora a partes do empreendimento. Mas isso não impede que essas atividades sejam subsumidas pela direção, da qual depende, em última instância, o “rumo” ou a “orientação” que deve seguir o empreendimento em termos de seus fins.
O mais frequente em nossa sociedade é que a direção esteja nas mãos de poucos, que estabelecem os objetivos e determinam que eles sejam atingidos, restando à grande maioria executar as ações necessárias ao cumprimento dos fins da empresa por meio de seu esforço. Mas isso não impede de se pensar numa hipótese em que os fins sejam estabelecidos pelos próprios indivíduos que despendem esforço em realizá-los e que se investem também da função de zelar diretamente por seu cumprimento. O que temos, então, é uma “sobreposição” da administração e da direção, cada uma, porém, mantendo sua função característica.
Situação contraditória do diretor escolar
É esse mesmo conceito de direção, pelo menos em suas linhas mais gerais, que vige em nossos sistemas de ensino com relação ao papel do diretor de escola. Este é, em geral, não apenas o encarregado da administração escolar, ao zelar pela adequação de meios a fins – pela atenção ao trabalho e pela coordenação do esforço humano coletivo —, mas também aquele que ocupa o mais alto posto na hierarquia escolar com a responsabilidade por seu bom funcionamento.
Além disso, a concepção que se tem do diretor escolar não costuma diferir da concepção de diretor de qualquer outra empresa da produção econômica. Assim, o espírito que rege o tratamento dado ao diretor de escola e as expectativas que se tem sobre ele são cada vez mais semelhantes ou idênticos ao modo de considerar o típico diretor da empresa capitalista. (Cf. Félix, 1984, Paro, 2010a.)
Se considerarmos a necessária adequação entre meios e fins para a efetivação da administração, e contrastarmos os fins que se buscam na empresa tipicamente capitalista com os objetivos da escola básica, em especial a escola fundamental, vem à tona a seguinte indagação: é possível, em termos políticos ou técnicos, igualar a direção de uma escola à direção de uma empresa capitalista, desconsiderando o que há de específico na empresa escolar em termos de seu objetivo e da maneira de alcançá-lo?
Em outras palavras: se a administração (subsumida pela direção) é mediação para a realização de fins, será razoável que fins tão antagônicos quanto os da empresa capitalista (apropriação do excedente de trabalho pelo capital) e o da escola (construção, pela educação, de sujeitos humano-históricos) sejam obtidos de forma idêntica, ou semelhante, sem levar em conta a especificidade do processo de produção pedagógico nem questionar os efeitos deletérios de uma coordenação do esforço humano coletivo na escola nos moldes do controle do trabalho alheio inerente à gerência capitalista?
Estas indagações estão no centro da questão aqui examinada, qual seja: dados o caráter político da direção da escola fundamental, sua subsunção da administração escolar e a necessária adequação entre meios e fins como princípio administrativo, como se configura a ação administrativa do diretor de escola fundamental, diante dos fins da educação e da especificidade do processo de produção pedagógico?
Os termos desse problema envolvem uma variedade de temas que merecem ser examinados, mas, em suma, há que se considerar os determinantes que interferem no comportamento do diretor da escola pública fundamental. Investido na direção, ele concentra um poder que lhe cabe como funcionário do Estado, que espera dele cumprimento de condutas administrativas nem sempre coerentes com objetivos autenticamente educativos. Ao mesmo tempo é o responsável último por uma administração que tem por objeto a escola, cuja atividade-fim, o processo pedagógico, condiciona as atividades-meio e exige, para que ambas se desenvolvam com rigor administrativo, determinada visão de educação e determinadas condições materiais de realização que não lhe são satisfatoriamente providas quer pelo Estado quer pela sociedade de modo geral.
Educação escolar: fins e meios
O estudo da prática administrativa do diretor escolar se justifica, num primeiro momento, pela necessidade de se estudarem maneiras de o diretor contribuir para uma maior competência administrativa da escola fundamental. Isso é relevante porque a escola brasileira, de modo geral, não logra alcançar minimamente os objetivos a que se propõe. É de conhecimento público que, salvo exceções, as escolas fundamentais no país não conseguem passar à imensa maioria de seus frequentadores sequer os mínimos rudimentos de conhecimentos e informações que são objeto das “avaliações” externas feitas pelos sistemas de ensino. E isso ao custo de pelo menos oito anos de dispêndio em recursos tanto objetivos quanto subjetivos.
Em termos administrativos, isso equivale a um fracasso no empreendimento escolar, na medida em que os recursos, ou sua utilização, ou ambos os fatores, não estão adequados ao objetivo estabelecido. Trata-se, portanto, da negação do princípio fundamental da boa administração que requer a adequação entre meios e fins.
Mas a análise do problema não pode restringir-se ao exame e responsabilização dos meios, e sua utilização, sem relacioná-los aos fins que se pretende alcançar. Em outras palavras, trata-se de se estabelecer, antes, se estamos diante de um problema apenas administrativo (inadequação entre meios e fins), ou se, mais do que isso, a questão a elucidar não se encontraria no âmbito de uma filosofia e de uma política da educação, a que a administração escolar necessariamente deve servir (Ribeiro, 1952). Isso significa que, em termos da qualidade do ensino fundamental, mais do que abordar a administração dos meios, é preciso questionar o próprio fim da escola e da educação, quando mais não seja, para saber se ele é de fato factível e até mesmo desejável.
A esse respeito, pode-se dizer que, de modo geral, vigora nos sistemas de ensino e nas políticas públicas educacionais uma concepção estreita de educação, disseminada no senso comum, de que o papel único da escola fundamental é a passagem de conhecimentos e informações às novas gerações. Apesar de a Lei proclamar que a educação “tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Art. 2º da Lei 9394/1996), quando se trata de concretizar tal finalidade por meio do oferecimento de educação escolar, essa intenção geral se retrai drasticamente. As medidas na direção do “pleno desenvolvimento do educando” se reduzem à tentativa de passagem de conhecimentos, expressos nas disciplinas escolares.
Mas, se, à luz de uma concepção radicalmente democrática de mundo, admite-se que os homens nascem igualmente com o direito universal de acesso à herança cultural produzida historicamente, então, a educação – meio de formá-lo como humano-histórico – não pode restringir-se aos conhecimentos e informações, mas precisa, em igual medida, abarcar os valores, as técnicas, a ciência, a arte, o esporte, as crenças, o direito, a filosofia, enfim, tudo aquilo que compõe a cultura produzida historicamente e necessária para a formação do ser humano-histórico em seu sentido pleno.
Supondo que o Estado e a sociedade tivessem êxito em transmitir pelo menos os conhecimentos que compõem as disciplinas escolares e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), ou mesmo a versão minguada desse conteúdo aferida pelas “avaliações” externas como Saeb, Prova Brasil, etc., ainda assim estaria muito distante de lograr um mínimo de “preparo para o exercício da cidadania”. Ocorre que, mesmo estando os sistemas de ensino e toda a política educacional supostamente estruturados para esse objetivo, ele não é obtido, o que se pode constatar por meio de contato com os egressos do ensino fundamental que, em geral, retêm apenas uma pequena parcela dos conhecimentos que compõem os currículos e programas das disciplinas escolares.
Isso acontece porque a pequenez desse objetivo não tem implicações apenas políticas – subestimação do que é necessário em termos educativos para o exercício da cidadania – mas também técnicas, sendo que estas guardam uma estreita dependência das implicações políticas.
O componente técnico, sistematicamente ignorado pela imensa maioria dos responsáveis por políticas públicas em educação, refere-se à própria natureza do ato educativo, isto é, ao modo como o educando se apropria da cultura. Sendo a educação a maneira pela qual se constrói o homem em sua historicidade, a realização concreta da educação precisa inapelavelmente levar em conta essa peculiaridade.
Isto significa que o processo pedagógico deve tomar o educando como sujeito, quando mais não seja para não ferir o princípio de adequação de meios a fins: se o fim é a formação de um sujeito, o educando, que nesse processo forma sua personalidade pela apropriação da cultura, tem necessariamente de ser um sujeito. Portanto, ele só se educa se quiser. Disso resulta que o educador precisa levar em conta as condições em que o educando se faz sujeito. Não basta, portanto, ter conhecimento de uma disciplina a ser ensinada.
Educar não é apenas explicar a lição ou expor um conteúdo disciplinar, mas propiciar condições para que o educando se faça sujeito de seu aprendizado, levando em conta seu processo de desenvolvimento biopsíquico e social desde o momento em que nasce.
Querer aprender não é uma qualidade inata, mas um valor construído historicamente. Levar o aluno a querer aprender é o desafio maior da Didática, a que os grandes teóricos da educação têm-se dedicado através dos séculos. Por isso, hoje, com todo o desenvolvimento das ciências e disciplinas que subsidiam a Pedagogia, é inadmissível que os assuntos da educação ainda permaneçam nas mãos de leigos das mais diferentes áreas (economistas, matemáticos, publicitários, jornalistas, sociólogos, empresários, estatísticos, etc. etc.), os quais pouco ou nada entendem da educação dirigida às crianças e aos jovens na idade de formação de suas personalidades.
O que resulta é a educação ser tomada como uma atividade qualquer, passível de ser exercida sem o necessário conhecimento e competência técnica, pois dos próprios professores não se exige (nem se oferecem condições para) um conhecimento razoavelmente profundo de Pedagogia e uma prática didática razoavelmente competente.
A ignorância pedagógica e a adoção de um conceito de educação que não se eleva acima do senso comum tem feito com que se tome a educação de crianças e jovens como mera comunicação, análoga à que se dá na leitura de um livro ou jornal, ou no ato de assistir a um filme ou ver televisão. Por isso, a escola é vista como mera repassadora de conhecimentos e informações como acontece com as demais agências de comunicação. Entretanto, muito mais que isso, educar envolve uma relação política entre sujeitos empenhados na construção de personalidades.
O caráter sui generis dessa relação é que precisa ser considerado, se queremos que ela se realize de modo pleno. A primeira observação a ser feita é que essa relação constitui um processo de trabalho, ou seja, “uma atividade orientada a um fim” (Marx, 1983, p. 150, v. 1, t. 1). Como tal, há o trabalhador, ou produtor, e há o objeto de trabalho a ser transformado em produto. O primeiro é o educador, que mantém uma relação com o segundo, o educando, aquele cuja personalidade se forma ou se transforma como fim da educação. É aqui que entra a peculiaridade da educação como trabalho. Nos processos de trabalho que se dão usualmente na produção material da sociedade, há uma relação de exterioridade entre produtor e objeto de trabalho: o produtor age sobre o objeto de trabalho que simplesmente “sofre” aquela ação de transformação. No caso do processo pedagógico, todavia, uma relação desse tipo redundaria na negação da educação e a impossibilidade do aprendizado. Aqui, o objeto de trabalho (o educando) é também sujeito, o que inviabiliza a ação unilateral do educador. Este, para ensinar, para transmitir cultura, precisa, antes, obter o consentimento do outro, daquele que aprende. É, pois, uma relação de convivência entre sujeitos, ou seja, uma relação autenticamente política. Mais do que política, é uma relação democrática, pois a ação que se passa resulta na afirmação de ambos como sujeitos.
A natureza, os termos e as implicações dessa peculiaridade da relação pedagógica para a organização dos processos de ensino-aprendizado têm sido objeto de estudos, pesquisas e práticas por parte de importantes teóricos da educação, especialmente no decorrer do último século, os quais têm reiteradamente demonstrado a necessária presença desse elemento dialógico e têm chamado a atenção para suas implicações práticas.
Uma dessas implicações é que, por mais que se insista, os conhecimentos e informações não se transmitem sozinhos, isolados de outros elementos da cultura. Isto porque, para querer aprender, a criança ou o jovem deve pronunciar-se como sujeito, deve envolver sua personalidade plena, colocando em jogo os demais elementos culturais componentes dessa personalidade (valores, crenças, emoções, visões de mundo, domínio da vontade etc.).
Por mais que essa característica da autêntica ação pedagógica tenha sido provada e comprovada cientificamente no decorrer de várias décadas, e por mais que sua consideração seja determinante para a configuração de um processo ensino-aprendizado eficaz, verifica-se que ela ainda não produziu influência relevante sobre a organização da escola e sobre a composição de currículos e programas entre nós. Os sistemas de ensino estruturam suas unidades escolares como agências de comunicação de conhecimentos, ignorando quaisquer medidas que se orientem para fazer da escola um centro educativo com o fim de formar personalidades humano-históricas e em que, por isso, quer nos métodos, quer nos conteúdos, a cultura seja contemplada em sua plenitude.
Na situação de ensino, em sala de aula, predomina o professor “explicador”, que, só mesmo nessa função minguada, pode ser substituído por computadores ou por meios de comunicação a distância. Na composição de currículos e programas, o ideal tem sido a produção de respondedores de testes, para passar no vestibular ou para responder às “avaliações” externas, em que só os conhecimentos são contemplados. Mas, como o conhecimento não é passível de ser assimilado isoladamente, dissociado de outros elementos culturais, ao tentar passar só conhecimentos, nem isso a escola passa, consubstanciando seu fracasso, que é o fracasso do padrão de administração utilizado.
Administração escolar e o caráter específico do trabalho pedagógico
Assim, temos por um lado a busca de um objetivo extremamente modesto, que omite das novas gerações seu direito de acesso pleno à cultura; por outro, uma mediação (administração) inadequada à obtenção mesmo desse modesto objetivo. E isso não é recente, pois a maneira de administrar a escola é praticamente centenária no Brasil. Ocorre que, antes, quando a escola pública só atendia a uma pequena elite, sua incompetência era escamoteada, a partir da “seleção” que a escola fazia de sua “clientela”, acolhendo em seus bancos escolares apenas os filhos das famílias mais privilegiadas economicamente. Essas crianças e jovens já possuíam, em seu meio familiar e social, acesso mais amplo à cultura elaborada historicamente e já iam à escola “querendo aprender” e portavam em sua formação extraescola elementos culturais que as ajudavam a aprender mesmo numa escola ocupada apenas em “passar” conhecimentos. Aqueles que, porventura, não exibiam esses predicados eram barrados pela reprovação, forma encontrada para pôr nos alunos a culpa pelo fracasso da escola.
Todavia, a escola pública fundamental de hoje que, por dever constitucional, precisa receber as crianças e jovens de todas as camadas sociais, não pode esconder-se atrás do sucesso de poucos; por isso, o seu fracasso aparece. A tendência generalizada, diante desse fracasso, tanto na academia quanto nas instâncias do Estado e da sociedade em geral, é lançar sua responsabilidade sobre os meios e sua utilização. Busca-se, então, a causa do mau ensino, ora na escassez ou mau emprego dos recursos (condições inadequadas de trabalho, baixos salários, falta de material didático etc.), ora na má qualidade do corpo docente (formação deficiente, falta de compromisso profissional, etc.), ora em causas ligadas aos próprios usuários da escola (desinteresse do aluno, violência, falta de empenho dos pais em estimular seus filhos a aprender etc.).
Em verdade, todos esses fatores estão presentes de alguma forma na realidade escolar brasileira; mas o problema central é que a escola tem-se estruturado a partir de um equívoco em seu objetivo e na forma de buscá-lo, porque adota uma visão estreita de educação. Essa concepção impede que se perceba a especificidade do trabalho escolar e a necessidade de uma administração que corresponda a essa especificidade.
Ao se ignorar a especificidade do trabalho pedagógico, toma-se o trabalho escolar como outro qualquer, adotando medidas análogas às que têm sido tomadas em outras unidades produtivas. Como as demais unidades produtivas, no sistema capitalista, se pautam, em geral, pelo modo de produção e de administração capitalista, esse equívoco leva a administração da escola a orientar-se pelos mesmos princípios e métodos adotados pela empresa capitalista, que tem objetivos antagônicos ao da educação.
A intenção de aplicar na escola os princípios de produção que funcionam nas empresas em geral não é recente, mas tem-se exacerbado ultimamente, configurando um crescente assalto da lógica da produtividade empresarial capitalista sobre as políticas educacionais e, em especial, sobre a gestão escolar. Assim, apesar de importantes medidas ad hoc, levadas a efeito nas últimas décadas com o intuito de democratizar a escola e sua direção (eleição de diretores, conselhos de escola etc.), a escola básica, em sua estrutura global, continua organizada para formas ultrapassadas de ensino e procura se “modernizar” administrativamente, pautando-se no mundo dos negócios com medidas como a “qualidade total” ou como a formação de gestores – capitaneada por pessoas e instituições afinadas com os interesses da empresa capitalista e por ideias e soluções transplantadas acriticamente da lógica e da realidade do mercado.
Essa mesma lógica tem predominado na concepção e no provimento do ofício de diretor escolar. No imaginário de uma sociedade onde domina o mando e a submissão, a questão da direção é entendida como o exercício do poder de uns sobre outros. Por isso, se destaca sempre a figura do diretor, do chefe, daquele que enfeixa em suas mãos os instrumentos para “mandar”, em nome de quem detém o poder. Nas empresas em que os objetivos a serem perseguidos não são aqueles que atendem aos interesses dos produtores (como é o caso da empresa capitalista, em que os objetivos a se realizar são os dos proprietários dos meios de produção, sintetizados no lucro), é cômodo destacar diretor ou diretores, que comandam em nome dos proprietários. Os objetivos a serem perseguidos são os do proprietário, não os dos produtores. Então, as ações do diretor, para serem coerentes com os objetivos perseguidos, não precisam estar de acordo com os interesses dos comandados, desde que sejam do interesse do proprietário. Neste caso, o conceito de autoridade restringe-se à obediência dos comandados, independentemente de suas vontades.
Já, do ponto de vista democrático, a autoridade tem outra significação. Embora se trate de uma relação de poder – visto que há a determinação de comportamento de uma das partes pela outra —, a autoridade democrática supõe a “concordância livre e consciente das partes envolvidas” (Paro, 2010b, p. 40). Segundo essa acepção,
a autoridade é um tipo especial de poder estabilizado denominado ‘poder legítimo’, ou seja, aquele em que a adesão dos subordinados se faz como resultado de uma avaliação positiva das ordens e diretrizes a serem obedecidas. Apenas nessa […] acepção pode-se dizer que a autoridade se insere numa forma democrática de exercício do poder, na medida em que a obediência ocorre sem prejuízo da condição de sujeito daquele ou daqueles que obedecem. (p. 39)
Toda negação dessa condição democrática de autoridade deve ser interpretada como autoritarismo, que é o modelo predominante na prática de nossas escolas. Nestas, o tipo de autoridade que costuma prevalecer é uma em que, quer na coordenação do esforço humano coletivo exercida pelo diretor, quer no processo de produção pedagógico, supõe-se a obediência às ordens, resultante de um poder externo, cujas normas de procedimento foram estabelecidas sem a participação ou a concordância dos que devem obedecer.
Mas, como vimos, a educação formadora de personalidades humano-históricas requer uma relação democrática, aquela em que tem vigência a autoridade democrática. Por isso é tão difícil educar em sociedades (como a capitalista) que não tenham como seu pressuposto básico a democracia em seu caráter radical. É que o método educativo por excelência é contraditório a essas sociedades. Se a educação se realiza de fato, realiza-se em alguma medida a democracia, ou seja, a constituição de sujeitos.
Talvez por isso, a escola tradicional resista tanto aos métodos pedagógicos mais avançados, com base científica, e encontre tanta dificuldade em aplicá-los. Conforme foi sugerido, as descobertas das ciências (especialmente a Psicologia e a Psicologia da Educação) têm permitido compreender cada vez melhor no decorrer da história o modo como a criança pensa e aprende, e perceber cada vez mais nitidamente como seu processo de desenvolvimento biopsíquico depende de sua condição de sujeito, de autor. Os métodos daí decorrentes, desde a Escola Nova (e mesmo antes), exigem relações de colaboração entre quem ensina e quem aprende. Mas esses métodos conflitam com a forma cotidiana de ser de uma sociedade calcada no mando e na submissão. Por isso os professores e educadores escolares de modo geral, acostumados a agir numa relação de verticalidade (em que alguém dá e alguém recebe passivamente), sentem dificuldade com os métodos não impositivos. Quando não é apenas isso, é a própria escola que é estruturada para esse modo impositivo de agir.
É preciso estar atento a essa conduta que usualmente compõe a personalidade das pessoas formadas sob uma sociedade autoritária, e que consiste em tratar o outro, o diferente, como inferior. E o diferente assume inúmeras condições: da mulher diante do homem, do negro diante do branco, do homossexual diante do heterossexual, do empregado diante do patrão (ou preposto do patrão), do pobre diante do rico, do deficiente físico diante do “normal”, do imigrante diante do nativo, do analfabeto (ou desescolarizado) diante do erudito, do rural diante do urbano, e assim por diante.
A sociedade vem superando, historicamente, muitos dos preconceitos e vencendo muito do autoritarismo envolvido nessas relações. Deixando de considerar aqueles países onde ainda vigem regimes autoritários, boa parte deles amparados no poder religioso, parece que no chamado mundo ocidental, de modo geral, e no Brasil, em especial, foi bastante considerável o efetivo avanço em termos de direitos que tivemos a esse respeito nas últimas décadas, embora ainda haja muito a ser caminhado. Na escola, cruzam-se algumas dessas dicotomizações autoritárias. Mas existe uma dominante, da qual a sociedade parece tomar ainda menos conhecimento do que as outras: trata-se da relação da criança diante do adulto, que assume, na maioria dos casos, a do aluno diante do professor: de “quem não sabe” diante de “quem sabe”.
Direção escolar democrática
Todas essas considerações chamam a atenção para a maneira como é concebida a direção da unidade escolar. Se, como vimos, a direção está imbuída de uma política e de uma filosofia de educação, sintetizam-se nela, e, por decorrência, na função do dirigente escolar, os próprios objetivos que cumpre à escola alcançar. Fica evidente, portanto, a relevância de se refletir a respeito da prática do diretor da escola de ensino fundamental. Por isso, devem estar em pauta duas dimensões que se interpenetram mutuamente: de um lado, a explicitação e a crítica do atual papel do diretor, e de como a direção escolar é exercida; de outro, a reflexão a respeito de formas alternativas de direção escolar que levem em conta a especificidade político-pedagógica da escola e os interesses de seus usuários.
Essas dimensões fundamentam-se em razões técnicas e políticas, embora seja muito difícil distinguir umas das outras – porque as razões técnicas estão impregnadas de conotações políticas, e as razões políticas não podem ser dissociados de suas implicações técnicas. Assim, é por motivos políticos (convivência entre sujeitos com interesses diversos) que desejamos um diretor cuja ação esteja articulada ao bom desenvolvimento de um ensino fundamental comprometido com a construção de personalidades humano-históricas, e que seja a base da formação do cidadão; mas são as razões técnico-administrativas (adequação entre meios e fins) que nos convencem da necessidade do caráter dialógico-democrático (convivência entre sujeitos que se afirmam como tais) das relações que se dão no processo pedagógico, o qual determina e é determinado pela ação do diretor.
A explicitação e a crítica das atuais funções do diretor devem ter presente a contradição que consiste em se ter um diretor cuja formação, atribuições e atuação prática foram concebidas para um papel de simples gerente, sem nenhuma explicitação nem reflexão a respeito de sua característica de agente político, diante do ofício de administrar uma instituição cujo fim é prover educação, a qual é por excelência uma ação democrática. Em termos críticos, essa instituição exige, para realização de seu objetivo, uma mediação administrativa sui generis, tanto em termos de racionalização do trabalho quanto de coordenação do esforço humano coletivo.
Como vimos, o processo de trabalho pedagógico, por ser uma relação entre sujeitos que se afirmam como tais, é uma relação necessariamente democrática e assim deve ser tratada em sua concepção e execução. Em igual medida, a coordenação do esforço humano coletivo não admite formas que não sejam de afirmação da subjetividade dos envolvidos, portanto, também democráticas. Isso toca na outra dimensão de particular importância, que é a da reflexão a respeito de formas alternativas de direção escolar, a qual, ao levar em conta a especificidade da escola, não pode deixar de contemplar os interesses de seus usuários.
No que concerne à figura do diretor, trata-se de se questionar a atual situação em que este acaba-se constituindo mero preposto do Estado na escola, cuidando para o cumprimento da lei e da ordem ou da vontade do governo no poder. (v. Paro, 2010a, 2000a, 2001a, 2008b)
Pela peculiaridade democrática e pública de sua função, o dirigente escolar precisa ser democrático no sentido pleno desse conceito, ou seja, sua legitimidade advém precipuamente da vontade livre e do consentimento daqueles que se submetem a sua direção. Nesse sentido, há que se pensar em formas de escolhas democráticas que superem o anacrônico processo burocrático de provimento por concurso bem como a clientelística nomeação político-partidária, as quais costumam, ambas, impingir aos trabalhadores e usuários da escola uma figura estranha a sua unidade escolar e a seus interesses mais legítimos.
A esse respeito, já existem vários estudos e pesquisas que demonstram a importância da participação do pessoal da escola, alunos e pais na escolha democrática do diretor. Um diretor cuja lotação e permanência no cargo dependa, não apenas do Estado, mas precipuamente da vontade de seus liderados, tenderá com muito maior probabilidade a se comprometer com os interesses destes e a ganhar maior legitimidade nas reivindicações junto ao Estado porque estará representando a vontade dos que o legitimam e não exercendo o papel de mero “funcionário burocrático” ou de apadrinhado político.
Finalmente, no que concerne a novas alternativas de direção, é preciso contemplar maneiras de conceber a direção escolar que transcendam a forma usual de concentrá-la nas mãos de apenas um indivíduo que se constitui o chefe geral de todos. Não que a hierarquia seja nociva em si, pois aquele que se coloca no escalão hierárquico superior pode muito bem estar investido de um tipo de autoridade democrática a que me referi anteriormente, aquela que supõe a concordância livre e consciente daqueles que obedecem as ordens, que têm sua subjetividade preservada e mesmo afirmada na relação.
Ocorre que, por motivos técnicos e políticos como sugerido em alguns estudos (Paro, 1995, 2001b, 2008a) e confirmado pela aplicação na prática, como o caso do sistema municipal de ensino de Aracaju (Aracaju, 2006), parece vantajoso a direção ser exercida por um colegiado diretivo, formado por três ou quatro coordenadores, que dividem entre si os encargos da direção, sem que nenhum seja o chefe absoluto do colegiado ou da unidade de ensino.
Tal sistema tem, por um lado, a vantagem política de manter a direção da escola menos sujeita a represálias dos escalões superiores quando há conflito de interesses entre a escola e as determinações do Estado, e em que a direção apresenta suas reivindicações. É mais fácil pressionar um indivíduo (o diretor) com processos e outros instrumentos burocráticos do que atingir uma instituição coletiva, formada por coordenadores que representam a vontade dos integrantes da escola que os elegeram e os apoiam. Por outro lado, o sistema tem também uma razão de ordem mais nitidamente técnica, porque está mais de acordo com o próprio tipo de trabalho que é realizado na escola.
Se os educadores escolares são, por característica do próprio ofício, promotores do diálogo que viabiliza a educação, parece justo e razoável que a eles caiba um papel determinante na coordenação do trabalho na escola. Por isso, parece procedente, quando se questiona a atual estrutura da escola, indagar se não seria proveitoso, sem prejuízo do atual conselho de escola, propor um conselho diretivo composto por educadores escolares, que seriam, não chefes, mas coordenadores das atividades da escola. (Paro, 2008a, p. 25)
Em síntese, diante da atual configuração administrativa e didática da escola básica, que se mantém presa a paradigmas arcaicos, tanto em termos técnico-científicos quanto em termos sociais e políticos, é preciso propor e levar avante uma verdadeira reformulação do atual padrão de escola, que esteja de acordo com uma concepção de mundo e de educação comprometida com a democracia e a formação integral do ser humano-histórico – e que se fundamente nos avanços da Pedagogia e das ciências e disciplinas que lhe dão subsídios.
Assim sendo, qualquer que seja o caminho que venham a tomar as políticas públicas dirigidas à superação da atual escola básica, há que se ter como horizonte uma administração e uma direção escolar que levem em conta a educação em sua radicalidade, contemplando sua especificidade como processo pedagógico e sua dimensão democrática como práxis social e política.
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