Discurso de Posse do Acadêmico José Augusto Dias.
ACADEMIA PAULISTA DE EDUCAÇÃO
Discurso de Posse do Acadêmico Titular
JOSÉ AUGUSTO DIAS
21/11/1989
Senhor Presidente da Academia Paulista de Educação
Senhores Acadêmicos
Senhoras e Senhores
A magnanimidade da Academia Paulista de Educação, trazendo-me para desfrutar seu agradável convívio e participar de suas nobres atividades, constitui para mim motivo de desvanecimento e gratidão. Desvanecimento, porque vejo aqui reunidas algumas das mais expressivas figuras do magistério paulista, que, mercê de atuação fecunda em favor da educação, souberam merecer a admiração e o respeito de todos. Sinto-me também agradecido por ter recebido a honra de poder inscrever-me nos quadros da Academia.
Neste momento marcado pela emoção, procurando justificar perante mim mesmo uma distinção tão significativa, que nunca imaginei merecer, eu rememoro estes anos, que já vão longos, em que estive vinculado às lides do magistério. E assim, de maneira quase automática, irresistível, minha mente se volta para minhas origens e eu me ponho a recordar os anos de Escola Normal, a formação básica recebida na terra natal, Santa Cruz do Rio Pardo. Para minha imensa satisfação, verifico que a simples menção a esta cidade não é indiferente para muitos de meus colegas acadêmicos. Santa Cruz do Rio Pardo faz parte da história de vida de nosso Presidente Samuel Pfromm Netto, que mais de uma vez me confidenciou o carinho com que se recorda dos tempos em que lá esteve; faz parte também do currículo de Décio Grisi – de quem fui aluno em Santa Cruz -, de Carlos Corrêa Mascaro, como também de outros que já não se encontram entre nós, como Antonio d’Ávila e Alberto Rovai. Estou seguro de que a velha Escola Normal de Santa Cruz do Rio Pardo pode ser incluída entre as instituições que inspiram, nesta Academia, o generoso movimento no sentido de restabelecer o ensino normal no Estado de São Paulo, com a nobre esperança de revigorar a formação para o magistério de 1º grau, tão desfigurada pela recente legislação do ensino. Aquela venerável escola, que teve a felicidade de contar com colaboradores tão ilustres, formou e deu a São Paulo alguns educadores expressivos que se têm destacado no magistério paulista com seu trabalho profícuo nas salas de aula ou em outras posições da carreira e até mesmo em postos de alta responsabilidade na administração superior do ensino.
Nesta rememoração de minha formação básica, permitam-me um momento de homenagem a duas pessoas a quem muito devo: Benedicto Demétrio Dias e Emília Casteletti Dias, meus pais. Não se trata apenas de tributo afetivo de filho agradecido: posso afiançar-lhes que é, muito mais que isto, uma questão de justiça, Benedicto Demétrio, posso invocar o testemunho dos Acadêmicos Mascaro e Grisi, que o conheceram, foi um homem extraordinário pela inteligência, pela honradez, pelo altruísmo e pelo espírito de liderança. Não tivesse tão cedo problemas de saúde e não tivesse morrido tão moço, com pouco mais de quarenta anos de idade, certamente teria podido destacar-se na vida pública, que era sua inclinação natural. Minha mãe, deixada viúva com cinco filhos menores, soube mostrar-se forte no momento em que a vida dela tanto exigiu. Antes tão frágil, tão tímida, marcada por aquela sólida formação religiosa que atribui à mulher uma postura de recato e recolhimento, afrontou a dura tarefa de assumir o comando da família em circunstâncias terrivelmente adversas e se desdobrou em esforços e sacrifícios, até entregar a São Paulo quatro professores e um sacerdote. A meus pais, a quem devo enobrecedores e indeléveis lições de vida, deixo aqui registrado esta singela e comovida homenagem.
Durante minha trajetória na vida escolar, quer como estudante, quer como profissional do magistério, tenho tido o privilégio de receber a influência de grandes educadores, desde minha primeira professora, d. Armandina d’Ávila Santos, irmã do inesquecível Acadêmico Antonio d’Ávila. Na pessoa de d. Armandina, que guiou meus primeiros passos na vida escolar, quero aqui prestar minha homenagem a todos os meus mestres da Escola Primária. No Ginásio e na Escola Normal pude contar também com professores competentes e dedicados, entre os quais posso incluir, como já disse, o eminente Acadêmico Décio Grisi. Nessa mesma época a Escola Normal era dirigida por um educador enérgico e culto e que certamente tem também sua parcela de influência em minha formação: Alberto Rovai.
No curso de Pedagogia, da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP tive a honra de receber ensinamentos de eminentes professores universitários, dentre os quais destaco muito especialmente os Professores José Querino Ribeiro e Carlos Corrêa Mascaro. Além de meus professores no curso de Pedagogia, Querino e Mascaro passaram a ser meus orientadores na incipiente carreira do magistério superior, no então Setor de Administração Escolar e Educação Comparada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Depois de alguns anos, nosso grupo foi enriquecido com a presença do Professor João Gualberto de Carvalho Meneses, cuja jovialidade e inteligência sempre me impressionaram e a quem desde então me sinto ligado pelos laços de sólida e gratificante amizade. Às incontáveis gentilezas de que lhe sou devedor, devo acrescentar agora esta de ser saudado por ele no dia de minha posse na Academia. O Professor Querino, que tem sido para mim um insubstituível mentor espiritual, deu-me orientação muito segura, no momento em que isto significava elemento decisivo para meu destino profissional. Quando cheguei ao Setor que ele dirigia com espírito aberto e democrático, numa época em que a Cátedra conferia poderes quase ilimitados, o Professor Querino recebeu-me com as seguintes palavras, que, descobri depois, dirigia a todos os novos assistentes: “Leia os meus escritos. Não espero que você concorde com minhas ideias, quero apenas que você saiba o que penso.” Presenteou-me também com um exemplar de sua tese de Cátedra, a que apôs a seguinte dedicatória: “Ao José Augusto, com muita estima e muita esperança”. Não sei até que ponto pude corresponder às esperanças do mestre, mas ele continua sendo para mim uma constante fonte de inspiração e estímulo.
Também deve muito ao Professor Mascaro, que, ocupando importantes cargos na Secretaria da Educação do Estado e no Ministério da Educação, sempre me convocou para tarefas que me valeram experiências preciosas. Ele, com sua largueza de espírito, nunca fez a menor referência a isto, mas estou seguro de que devo ao Professor Mascaro minha condução ao Conselho Estadual de Educação.
A passagem pelo Conselho Estadual de Educação foi para mim uma rara oportunidade de enriquecimento espiritual e profissional. Pude ali conviver com eminentes educadores paulistas. Guardo dos anos que passei no Conselho as mais gratas recordações, quer pela oportunidade de informar-me melhor a respeito das complexas questões que envolvem o funcionamento do sistema escolar, quer pelo agradável convívio com ilustres representantes da escola pública e da escola particular de todos os níveis.
A maior parte de minha vida profissional foi dedicada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Sempre considerei um privilégio incomparável trabalhar naquela Instituição e naquele campus universitário, num ambiente social e num ambiente físico extremamente agradáveis e estimulantes. Quando entrei para o Departamento, no início da década de 60, este funcionava ainda na rua Maria Antonia e passou a ter, com a minha chegada, quatro docentes, para o atendimento de pouco mais de uma centena de alunos do curso de Pedagogia. Hoje, o Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação assumiu novas responsabilidades e tem um corpo docente bem mais numeroso. Do convívio com estes colegas ilustres guardo as mais ricas experiências. Mas não posso e não devo deixar de mencionar também o intercâmbio vivo e enobrecedor mantido, semana após semana, semestre após semestre, com meus alunos. É no esforço para ensinar que mais aprendemos, é no afã de tornar claras nossas ideias que estas se tornam mais significativas para nós mesmos, mas é sobretudo o perquirir constante de nossos alunos que nos obriga à renovação e ampliação de nossos próprios horizontes.
Este arrolamento de influências que fizeram de mim o que sou seria incompleto se eu não mencionasse também o quanto devo à minha esposa, Alba, cuja presença carinhosa tem sido para mim uma fonte inestimável de estímulo, compreensão e apoio. A ela e a nossos dois filhos, Maria Sílvia e José Augusto, devo o agradável convívio de um lar no sentido pleno da palavra, refúgio certo para todos os momentos.
Hoje inicio oficialmente minha participação na Academia Paulista de Educação. Agradeço de todo coração aos nobres Acadêmicos, que, com seu voto, abriram-me as portas da Academia. Tal como aquela fundada por Platão nos jardins de Academo, esta é também, antes de tudo, uma escola e aqui tenho certeza de que continuarei aprendendo. Sinto-me muito honrado em poder juntar minhas forças às de meus ilustres companheiros na defesa de ideias tão justas quanto as que constam da pauta da Academia, especialmente, a da valorização e restabelecimento da dignidade do magistério. Nunca o professor foi tão maltratado como nos dias atuais. Uma sociedade que aspire a prosperidade e o crescimento não pode permitir-se dispensar tratamento tão inadequado aos trabalhadores da educação. Assim sendo, é altamente meritória a luta da Academia no sentido de exigir para o professor um tratamento condigno e com muito empenho e com muita esperança junto-me a ela nesta empreitada.
Voltando à influência recebida durante minha formação, devo mencionar ainda dois autores cujas obras eram adotadas na velha Escola Normal e nas quais encontrei ensinamentos utilíssimos. Refiro-me a Antonio d’Ávila, com suas Práticas Escolares e a Almeida Júnior, autor de Anatomia e Fisiologia Humanas.
Considero uma distinção muito acima de meu merecimento ocupar agora, nesta Academia, a Cadeira nº 10, que tem por patrono Almeida Júnior.
Almeida Júnior
Com inteira justiça, o nome de Antonio Ferreira de Almeida Júnior é incluído na galeria dos grandes educadores brasileiros, ao lado de figuras do porte de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho, que, aliás, têm em comum, dentre outros, o fato de serem todos eles signatários do célebre Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova.
Almeida Jr. impressiona pela amplitude de seus conhecimentos e pela riqueza de sua experiência. Após breve início no magistério primário, foi logo convocado para outras atividades docentes, tendo, ao longo de sua vida, lecionado francês, pedagogia, biologia, higiene, fisiologia do trabalho, medicina legal. No magistério ocupou cargos que vão de professor primário até catedrático da Universidade de São Paulo, passando pelos postos administrativos de diretor de escola secundária, diretor do Serviço Médico-Hospitalar do Estado de São Paulo, Diretor Geral do Ensino do Estado de São Paulo, Secretário da Educação e Saúde do Estado e membro do Conselho Nacional de Educação.
Observador e crítico arguto de nossa realidade educacional, participou entusiasticamente de atividades tendentes à procura de melhores condições para a educação. Além de assinar o Manifesto dos Pioneiros, colaborou efetivamente em vários projetos de reforma do ensino, tais como a reforma Sampaio Dória, de 1920; reforma Fernando de Azevedo, de 1933; organização da Universidade de São Paulo, criada em 1934; estudos preliminares para o projeto do Plano Nacional de Educação; projeto de diretrizes e bases da educação nacional.
Merece destaque a rica bibliografia produzida em função de sua vivência dos problemas de educação e saúde. Para mencionar apenas os trabalhos voltados para o ensino, podemos incluir: Cartilha de Higiene (1922), Noções de Puericultura (1927), A Escola Pitoresca (1934), Anatomia e Fisiologia Humanas (1939), Os objetivos da escola primária rural (1944), Biologia Educacional (1948), Problemas do Ensino Superior (1956), A repetência na escola primária (1956), Tradições acadêmicas – de Bologna ao Largo de São Francisco (1957), E a Escola Primária? (1959). Em todos estes escritos, Almeida Jr. deixou registrada, de maneira indelével, a marca de seu gênio e de seu profundo senso de humanidade.
Que falar a respeito de Almeida Jr. de maneira a retratá-lo com fidelidade? Sua grandeza escapa a esta minha frágil tentativa de fazer-lhe justiça. Felizmente existem algumas páginas de seu livro A Escola Pitoresca que podem ajudar-me de forma esplêndida nesta tarefa. Em capítulo que intitulou “Página de memórias”, Almeida Jr. registrou, sob forma de perguntas e respostas, alguns episódios mais significativos de sua carreira e no-los apresenta de maneira magistral, permitindo-nos aquilatar o imenso valor de sua nobre personalidade. Peço licença, pois, para ler este verdadeiro autorretrato do homenageado:
Por onde começou o exercício do magistério?
Pelo melhor começo, ou seja, pelo ensino primário, que representa uma escola de humildade. Foi em Santos, na Ponta da Praia (bairro de pescadores), em abril de 1910. Tinha eu então pouco menos de dezoito anos. Ordenado: 240 mil réis, e dele devia tirar minhas despesas pessoais, o transporte diário entre a cidade e a escola e o aluguel da sala de aulas. Os alunos, meninos paupérrimos, mal nutridos, de aspecto doentio, vinham descalços e esfarrapados. Esse mesmo quadro encontrei-o, posteriormente, no Estado todo, quando vim a exercer funções administrativas; e creio que ainda hoje representa o panorama de boa parte do Brasil. Aliás, surge ele sempre à minha lembrança quando vejo o luxo de certas escolas públicas de grau médio ou superior, ou quando ouço o clamor de uns tantos grupos de estudantes universitários que, embora já favorecidos por um sem-número de privilégios proporcionados à custa do erário público, querem ainda mais, sem se compenetrarem de seus deveres em relação à comunidade.
Que influências o conduziram através da carreira?
Devo dizer que fiquei pouco tempo em Santos: menos de dois meses. Passado esse prazo, recebi telegrama do diretor da Escola Normal da Capital, chamando-me a São Paulo. Por que me convocaria com tanta urgência Rui de Paula Sousa, que durante o curso se havia tomado de grande amizade por mim? No Alto da Serra comprei um jornal do dia e tive a explicação: Lá estava, na terceira página, em lugar de destaque, minha nomeação para uma cadeira considerada, àquele tempo, de alta categoria profissional, a da Escola Modelo Isolada, anexa à Escola Normal da Praça da República, e ocupada até então por um mestre notável, o prof. Teodoro de Morais. Foi um deslumbramento e, como primeiro impulso, levantei-me do duro banco de madeira de segunda classe, para saltar fora do trem e correr com destino a São Paulo. Felizmente a porta do vagão estava trancada… Voltei ao meu banco e, precisando abrir-me com alguém, exibi a grande notícia ao meu vizinho de banco – um italiano velho e gordo, de bigodeira branca e cachimbo à boca. O homem custou a entender; mas, ao consegui-lo, bateu-me familiarmente no ombro e exclamou: Molto bene! Benissimo!
Outras nomeações se sucederam a essa dentro em pouco: Escola Complementar, Escola Normal Primária de Pirassununga, Instituto Disciplinar, auxiliar de Diretor Geral do Ensino, etc… Se somar todas elas até 1962, serão talvez umas trinta. Pode-se pensar que eu era um moço bem apadrinhado. Puro engano. Não tive parente rico ou influente na política; e o único cargo importante exercido por meu pai foi o de prefeito municipal, isso mesmo num Município pobre até hoje. Não tive protetores, a não ser meus próprios mestres ou diretores, que notaram meu gosto pelo trabalho. Também nunca pedi nomeações para mim, quer diretamente, quer por interposta pessoa. Por vezes nomearam-me à minha revelia e vários convites que recebi foram recusados. Digo isso, não por jactância ou para condenar os que solicitam nomeações e sim para assinalar aos jovens que, entre os diferentes modos de emprego, existe um que só os espertos (como eu) conhecem: é a dedicação ao trabalho.
Devo, entretanto, para ser rigorosamente exato, abrir uma exceção. Ensinei Francês durante quatro anos (1911-1914) na Escola Normal de Pirassununga, por indicação de meu professor dessa disciplina, Rui de Paula Sousa. Pirassununga, atualmente uma bela e progressiva cidade da Estrada de Ferro Paulista, era àquele tempo de grosseira politicagem, o feudo de um grupo retrógrado e façanhudo, que com frequência se utilizava de capangas para atacar os desafetos. Esse grupo controlava todas as nomeações para os cargos públicos e procurava disciplinar até mesmo as relações sociais de servidores como o juiz de direito, o promotor público, o delegado e os professores. Com a inexperiência de meus dezoito anos e com o imenso desejo de servir honestamente ao ensino, não tomei em consideração aquelas condições anômalas e pus-me a trabalhar na Escola Normal sem preocupar-me com os mandões da terra. Fui advertido pelos cabos políticos; fui ameaçado; mandaram-me convites para que renunciasse ao cargo. Permaneci surdo a tudo isso e mantive invariavelmente a mesma linha de conduta; consegui desse modo levar ao cansaço e ao desânimo o mandonismo local. Só depois disso, só depois de sentir durante um ano que minha posição já não estava ameaçada, foi que decidi remover-me. Tendo sido fundada a Faculdade de Medicina de São Paulo, pareceu-me possível apresentar-me às suas provas vestibulares e frequentá-la, desde que obtivesse uma cadeira primária, noturna, na Capital. Foi então que, por intermédio de Rui de Paula Sousa, fiz ao deputado representante da zona o primeiro e único pedido de minha carreira docente: disse-lhe que me demitiria da Escola Normal se ele me conseguisse uma escola noturna em São Paulo. “Até duas…” foi a resposta do deputado.
Refiro o episódio de Pirassununga porque julgo que ele muito contribuiu para fortalecer a minha capacidade de resistência. “Robusteceu-me o caráter”, diriam os psicologistas de nossa Penitenciária. Minha timidez constitucional como que se revestiu desde aí de uma carapaça impenetrável. É por isso que considero o quatriênio de Pirassununga como o “período heroico” de minha vida.
E outras influências?
Uma delas, e das melhores, foi a de um estágio de seis meses na Europa, em 1913, com demora especial na Cidade-Luz. As economias miúdas deixadas por minha mãe, e que meu pai me entregara aos dezoito anos, juntei outras, de Pirassununga. Tudo reunido deu pouco mais de seis contos de réis. Pedi seis meses de licença e decidi a viagem. Preço da passagem de ida e volta, pela Mala Real Inglesa, em primeira classe: 820 mil réis. Passaporte? Não se exigia… Em Paris fui assessorado pelo Prof. Georges Dumas, que, segundo sua “bonne”, gostava muito dos brasileiros. (Contei-lhe isso vinte anos mais tarde, quando em sessão solene, falando em nome do Conselho Universitário Paulista, o saudei ao lhe ser conferido o título de professor honorário). Indo em viagem direta de Pirassununga a Paris, tomei um verdadeiro banho de civilização.
Esta modalidade de lavagem cerebral, que me ensejou a abertura de novos horizontes, pesou bastante em meu espírito para fazer-me esquecer as turras de Pirassununga. Ou para entendê-las melhor. E me convenceram da conveniência de mudar-me para a Capital, onde poderia tentar o vestibular da Faculdade de Medicina. Foi o que fiz em setembro de 1914.
Desempenhou algum cargo administrativo de seu especial agrado?
Sim, desempenhei, e se não o tivesse feito, creio que me sentiria infeliz: fui diretor geral do ensino paulista, no governo de Armando de Sales Oliveira. Não pedi esse cargo a ninguém, nem nunca manifestei a quem quer que fosse o desejo de ocupá-lo. Mas pressentia que mais cedo ou mais tarde ele me viria às mãos. Quem me convidou e apresentou-me ao Governador foi o prof. Cantidio de Moura Campos, Secretário da Educação e meu antigo mestre na Faculdade de Medicina. Exerci com verdadeiro amor a honrosa missão, da qual só me desliguei quando a ditadura de 1937 se instalou façanhuda, na administração pública. Tudo quanto pude fazer naquele cargo, em que fui ajudado sobretudo por um excelente estado-maior de delegados regionais de ensino, ficou registrado em dois volumosos Anuários do Ensino que então publiquei: o de 1935 e o de 1936. Foi essa, sem dúvida, a função pública que mais me agradou. E com ela cheguei “ao meio do caminho da minha vida” profissional.
Aqui Almeida Jr. encerra sua página de memórias. Não pude resistir à ideia de lê-la, por entender que apresenta, de forma espontânea e magnífica, a rica personalidade deste extraordinário educador. De sua imensa contribuição à causa da educação seriam muitos os aspectos a serem destacados. Para encerrar, gostaria de mencionar, de modo especial, sua magnífica defesa da escola primária.
Almeida Jr. foi entusiástico e aguerrido defensor da escola primária, que apontava como elemento de “importância primordial”. Seu livro E a Escola Primária?, publicado em 1959, é um vigoroso libelo contra o descaso em relação a um ensino que é básico para a construção da nacionalidade. Dizia ele, no prefácio:
Sugiro simplesmente que esse título – “E a Escola Primária?” – seja lido, não em tom de pergunta vadia, como se o leitor pretendesse satisfazer uma simples curiosidade, mas com a ênfase temperada de irritação e censura, de quem indaga reclamando contra grave e demorado esquecimento, capaz de alterar para pior, irremediavelmente, a vida de um homem ou os destinos de uma Nação.
Ao mesmo tempo, pois, em que esclarece a maneira como deve ser interpretada a pergunta que dá título ao livro, Almeida Jr. aponta-nos as graves consequências da omissão em relação a um nível de ensino que tem sido a “gata borralheira” da “família educacional brasileira” (Estou agora reproduzindo expressões suas à página 33 do livro). E adverte:
De que vale, por exemplo, dar às Universidades uma organização perfeita, se continua mau no país o ensino primário? Numa democracia, sem ensino primário generalizado e eficiente não pode haver ensino médio que valha. Sem este, o ensino superior não alcançará justificar o nome que lhe damos. É a lição da experiência (p. 12-13).
Mais adiante, acrescenta, de forma enfática:
Cuidemos a sério da escola primária (p. 177).
Pois bem, não podemos deixar cair por terra esta bandeira que Almeida Jr. defende de forma tão convicta e veemente. Passados trinta anos desde a publicação de seu livro, se algo mudou foi apenas a nomenclatura pedagógica: chamamos de ensino de 1º grau o que antes se denominava ensino primário. Quanto ao mais, a situação é a mesma, talvez pior. Nota-se o mesmo descaso, a mesma negligência para com um nível de ensino em que se assentam as bases da formação de um povo.
Em artigo publicado em abril deste ano (1989) no jornal O Estado de São Paulo, chamávamos a atenção para o fato de que nos últimos anos vêm decrescendo as matrículas no ensino de 1º grau. Isto constitui um fato sumamente grave, se levarmos em conta que ainda existem muitos milhões de brasileiros fora do ensino fundamental. Esta situação exige providências enérgicas e imediatas, sob pena de termos agravadas, de forma inconcebível e injustificável, as condições culturais de nosso país. A queda da matrícula no ensino de 1º grau significa, inexoravelmente, o aumento do índice de analfabetismo nos anos futuros. Corremos o sério risco de chegar ao ano 2000, que já está perto, com uma taxa de analfabetismo maior ainda que a atual, que já nos envergonha. Eventuais campanhas de alfabetização serão tão ineficazes quanto as já tentadas no passado. Somente a disseminação de escolas de 1º grau alcançará o efeito duradouro e legítimo de que precisamos.
Senhores, saibamos ouvir Almeida Jr. Não sei de melhor homenagem que se lhe possa prestar que a de atentar para sua voz prudente e sábia apontando-nos o bom caminho.
Muito obrigado.
Auditório do Centro do Professorado Paulista, 21/11/89