Artigo – Mais um crime em escola
Por Hubert Alquéres
Riobaldo, personagem imortalizado por Guimarães Rosa na obra Grande Sertão Veredas, dizia que viver é perigoso. Parafraseando o grande escritor, dar aula passou a ser perigoso diante da onda de problemas com a saúde mental que invadiu o ambiente escolar, agravados no período da pandemia.
O mais recente episódio aconteceu na tarde desta terça-feira, quando um aluno de 14 anos da Escola Profissional Dom Bosco, em Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais, foi morto a facadas e outros três ficaram feridos. O ataque foi realizado por um ex-aluno do colégio e o crime aconteceu no horário de saída dos estudantes. A escola tem turmas de ensino infantil, fundamental e médio, além de cursos técnicos de eletrotécnica, mecânica e enfermagem.
Segundo policiais, o autor do ataque teria afirmado que aproveitou a movimentação de estudantes e pais no local e saiu “esfaqueando aleatoriamente”.
O ataque desta terça é o 5o com mortes registrado em instituições de ensino neste ano de 2023.
Em 19 de junho, um ataque a tiros no Colégio Estadual Professora Helena Kolody, em Cambé, no norte do Paraná, deixou dois alunos mortos, um casal de adolescentes. O autor do ataque, um ex-aluno de 21 anos, foi encontrado morto dias depois na prisão.
Na manhã de 5 de abril, um homem de 25 anos invadiu a creche Cantinho Bom Pastor, em Blumenau, Santa Catarina, e matou quatro crianças. As vítimas são três meninos e uma menina, com idade entre 5 e 7 anos. Uma machadinha e um canivete foram usados na ação.
Em 27 de março deste ano, na Escola Estadual Thomázia Montoro, Vila Sônia, em São Paulo, ocorreu outro crime chocante com o assassinato a facadas da professora Elizabeth Tenreiro por um adolescente de 13 anos. O jovem deixou um rastro de sangue, ferindo mais três professoras e dois alunos.
Elizabeth morreu no ambiente que dava sentido à sua vida: a sala de aula. Aos 71 anos e aposentada como ex-funcionária do Instituto Adolpho Lutz, decidiu ser professora há uma década. Não por necessidade financeira, mas para adotar a nova profissão como sacerdócio.
Necessário traçar um paralelo entre essas tragédias com o massacre acontecido há quatro anos na Escola Raul Brasil, em Suzano, na qual dois ex-alunos assassinaram cinco estudantes e dois funcionários da escola, suicidando-se em seguida.
É como se houvesse uma cadeia interligando tragédias. Os dois jovens de Suzano se inspiraram no massacre da escola de Columbine, no estado americano de Colorado.
Segundo a psicóloga Vera Iaconelli, diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, agressões, assassinatos e suicídios nas escolas “são fatos epidêmicos no ambiente escolar nos Estados Unidos que o Brasil parece querer mimetizar”.
Vera enxerga uma sociedade que marcha para a autodestruição, com as escolas “tendo de dar conta do que nenhum outro espaço parece estar sendo capaz de escutar”. E a escola não pode falhar na sua missão de escuta, de ser um espaço de diálogo e de disseminação da cultura da paz.
Os fatos lhe dão razão. Nos últimos quatro anos, foram dez tragédias similares no país, sem falar em agressões a professores e funcionários. A banalização da violência, um fenômeno presente na sociedade, invadiu o espaço escolar, impondo novos desafios e novas missões a gestores, educadores e demais profissionais da educação.
Seria injusto desconhecer a enorme dedicação de tais profissionais, bem como o esforço das redes públicas de ensino e escolas privadas no sentido de acolhimento e de desenvolvimento de competências socioemocionais fundamentais para a superação do trauma deixado por cada tragédia e para evitar que novas tragédias aconteçam.
Dou um testemunho pessoal. Como então presidente do Conselho Estadual de Educação estive na Raul Brasil nos dias seguintes ao atentado. E, no segundo semestre do ano passado, três anos após o massacre, voltei a visitar a escola, agora como Secretário Estadual da Educação.
Impossível não se emocionar ao constatar que a escola tinha dado a volta por cima, respirando um clima de paz, de convivência, e, sobretudo, de pertencimento, de comunhão de destino. Percebi isso não apenas entre seu corpo de educadores e gestores, mas também entre os alunos e funcionários.
Isto só foi possível porque todos somaram esforços: a comunidade próxima a escola, a sociedade, o Estado, as universidades, profissionais de diversas áreas, todos com o mesmo propósito: dar suporte para que a Raul Brasil fizesse a travessia e se reencontrasse com seu ethos de centro de formação de futuros cidadãos, capacitados a prosseguir em seu percurso acadêmico.
A Secretaria da Educação teve papel fundamental neste processo: investiu em atividades para melhorar a convivência escolar e ofereceu serviços focados na saúde mental.
Sim, é possível superar o luto e a dor. Mas com muito empenho e planejamento. No caso da escola de Suzano, ela também passou por uma grande reforma na sua infraestrutura física, adquiriu cores vivas e tudo, absolutamente tudo, foi pensado para criar um ambiente de concórdia e de empatia.
Nesse sentido, é uma experiência a servir de exemplo para que a Escola Profissional Dom Bosco, de Poços de Caldas, também supere sua dor e pais de alunos, professores e funcionários se reencontrem em torno do bem comum.
Nas tragédias, as perdas são irreparáveis. Mas também nelas afloram a grandeza humana. Na Raul Brasil. a merendeira Silmara Moraes, então com 49 anos, se agigantou quando ouviu tiros no pátio. Abriu a porta da cozinha, botou o rosto para fora e gritou para as crianças: “entrem, entrem”. Em seguida, empurrou o freezer para fechar a porta e fez uma barricada para os assassinos não invadirem a cozinha e a dispensa. Com isso salvou a vida de mais de 60 alunos.
Nas outras 4 escolas com crimes neste ano, o número de mortos só não foi maior graças à ação de professores que imobilizaram os agressores. São heróis e heroínas, exemplos do que há de melhor como ser humano.
E é no resultado do trabalho educacional de todos eles que nos fazem crer que ainda viveremos em um mundo no qual professores e estudantes nunca mais serão assassinados dentro de uma sala de aula.
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Hubert Alquéres é membro da Academia Paulista de Educação, do Conselho Estadual de Educação e da Câmara Brasileira do Livro. Foi Secretário de Estado da Educação em São Paulo.