Artigo – A quem interessa o sistema de reprovação?
Este artigo da Acadêmica Titular Rose Neubauer foi publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
ROSE NEUBAUER
Desde o início do século 20, ficou evidente que as escolas não poderiam continuar convivendo com relações pedagógicas tão autoritárias como as até então existentes. Para as velhas teorias, o centro da aprendizagem era o professor, onisciente, e os alunos, passivos e mudos. Esse clima era coroado com a reprovação. O bom professor, pasme, era aquele que reprovava muitos alunos. O saber era propriedade de uma elite. O caminho para atingi-lo era o mais inóspito possível. Se um aluno fosse reprovado, toda a aprendizagem feita no ano era desconsiderada.
A “boa” escola brasileira dos anos 50 era assim. Somente 36% da população de 7 a 14 anos estava na escola. O propalado “ensino de qualidade” era aquele em que a maioria ficava fora e os que ficavam dentro fracassavam em massa. Perdas de 60% (evasão e reprovação) eram consideradas normais. Parece cínico nos admirarmos com as taxas de analfabetismo da população de 40 anos.
Essa concepção de escola começa a ser questionada. Ao modelo pedagógico autoritário, elitista e excludente, contrapõe-se um onde o aluno torna-se o centro do processo. Com a adoção de modelos democráticos nos países ocidentais e o crescimento da classe média e do proletariado, as elites foram obrigadas a aceitar o compromisso de democratização da informação e do saber. Ao professor é atribuído o importante papel de facilitador do processo. Não basta ensinar, é preciso levar o aluno a aprender.
Esse modelo traz premissas básicas fundamentadas cientificamente: o ser humano apresenta ritmos e estilos diferentes para realizar a aprendizagem; esta não pode ser interrompida ou sofrer retrocessos, pois implicaria prejuízos tanto à auto-imagem do aprendiz quanto à sua motivação para aprender; toda criança, quando exposta a situações motivadoras, é capaz de aprender.
Enquanto a escola mudava em muitos países, aqui o modelo do medo ainda era aplicado. Estudos desenvolvidos em todo o mundo, inclusive no Brasil, mostram os efeitos perversos da reprovação: na década de 80, 50% dos alunos abandonavam ou evadiam-se da escola depois de ter ficado de 6 a 8 anos “estacionados” na segunda ou terceira série do ensino fundamental; de cada 100, menos de 10 crianças completavam o ensino fundamental em oito anos. É possível crer que toda a população escolar do país estivesse retardada mentalmente?
Ainda em 1995, mais da metade de toda a população escolar brasileira de 7 anos era reprovada na primeira série. Nenhum outro país da América Latina tinha estatísticas tão perversas. Entretanto convivíamos tranquilamente com a situação. Se a reprovação fosse tão boa, deveríamos ser um país de sábios.
É verdade que algumas tentativas foram feitas. Em 1968, pelo professor da USP, liberal e democrata José Mario Pires Azanha, colaborando com Ulhoa Cintra na Secretaria da Educação; em 1984, pelo governador Montoro; e no início dos anos 90, na administração da educação municipal, com Paulo Freire. Creio que essas figuras não são passíveis de ser identificadas como malandros. Nem o educador Darcy Ribeiro, inspirador da nova Lei de Diretrizes e Bases Nacionais. É nela que está claramente proposta a aprendizagem em progressão continuada na forma de ciclos.
A fórmula, na rede estadual paulista, foi a de garantir, a partir de 1996, as condições necessárias ao sucesso dos ciclos: ampliação da jornada escolar de 720 horas para 1.000 horas, para 90% dos alunos do diurno, e para 800 horas, no período noturno; recuperação paralela para todos os alunos com dificuldades; o pagamento de horas de trabalho na escola, fora da sala de aula, para capacitação e orientação dos professores etc.
Só depois dessas mudanças e após a confirmação das quedas drásticas nos índices de evasão e reprovação, o Conselho Estadual de Educação propôs, em 1998, para o ensino fundamental, a adoção da progressão continuada em ciclos. O modelo talvez ainda assuste alguns setores da sociedade. Afinal, a quem incomoda a mudança?
A verdade é que o sistema de ciclos desvela a incompetência da escola e do sistema. A progressão continuada não permite mais a punição unilateral, impede a farsa. Na reprovação, a marca do fracasso era do aluno; na progressão continuada, a marca do fracasso é da escola, da falta de trabalho coletivo.
É esse o caminho que precisamos buscar e que devemos ter coragem de trilhar. Continuar com o discurso e a prática da reprovação é cômodo, mas resvala no imoral. A reprovação continua sendo o instrumento, por excelência, para afastar os alunos da escola. Com relação ao acesso ao saber, pode ser comparada aos crematórios do Terceiro Reich. A quem interessa atribuir ao sistema de ciclos a idéia de caos? Aos professores? Certamente não. Eles sabem que o domínio do medo facilita o controle, mas não garante a aprendizagem.
Já estamos com uns cem anos de atraso. Resta acreditar, como diz o educador português Rui Canário, que “a idade de ouro da educação está por vir”.